a margem espiral

                     lAERTE antonio

                 parte 1

 

 

Se você permitir que estes poemas sejam você próprio conversando consigo mesmo, aí terá valido a pena tê-los lido. Somos bem mais semelhantes em nossa falta que diferentes no que nos sobra. Daí que nossa maior falta será sempre falta de ser. E assim será enquanto não aprendermos a pronunciar Eu Sou.

       Que a nossa espiral se expanda e se funda com Aquela... que é Deus em nós, isto através de nos conhecermos sempre um pouco mais, mediante o mudar de  nossa existência para novos enfoques de consciência  por veredas   de  nos irmos transcendendo. A pessoa renasce do seu sonho, ovo cuja casca se quebra dentro da vontade de Deus... e então se aprende a ousar o vôo.

      Um abraço. E boa viagem!

                                                                   Laerte Antonio

 

 

 

 

 

 

A Margem Espiral

 

A rosa é a rosa,

o resto é flor.

A vida será escalada

com a razão desconstruída,

o sentimento re-sentido

e a intuição reinventada

a partir de não se partir

a não ser de pontos-zero

e se chegar senão a nada:

o ser vendo-se ser em ser-se —

numa reconstrução

sem o cimento da idéia

plantada entre partir-chegar.

O homem precisa achar

a margem espiral

do rio que flui em si —

a sua libertação

do esquerdo e do direito.

LA 00/09

            

 

 

 

 

 

            Pretexto

 

Mudamos bem mais rápido

em nosso pensar

do que em nosso sentir.

O pensamento

é a água em que nos lavamos

e regamos o nosso crescimento.

Só podemos ser livres

( ou felizes )

de pensamento em pensamento.

Pensamos, logo somos

um texto no contexto

que reescrevemos.

O Outro há de florescer

quando caírem nossas folhas.

LA 00/09     

           

 

 

 

 

 

 

            No Sórdido Real... 

          

              No sórdido real de cada dia

o que fazer com tal perversidade,

senão trocá-la pela irrealidade

que se pode inventar por companhia?

 

Não é nesse irreal em que se cria

o real de uma não-realidade,

o feliz de uma não-felicidade

e o triste se traveste em alegria?

 

Que fazer com a verdade da inverdade

que a cada hora a mídia nos enfia

nos poros com risível seriedade?

 

Que fazer, senão rir dessa mania

de querer reinventar toda a verdade

no sórdido real de cada dia?

LA 00/09

 

 

 

 

 

Busca E Desengano

 

Vivemos indagando

dos sofrimentos dos outros:

“Sofrem demais ( um horror! ), não merecem...

O que fizeram, senão ser bons?

Ah, isso é pra confundir —

e pra desanimar!...

Por quê? Pra quê? Que é quê?...

Coitadinho! Coitadinha!”

O ego ressentido, em autodó:

“Não mereciam não, não mereciam!

................................................................

Mas que fazer

em nossa sempre impotência?

Que fazer,

senão o que o pastor e o padre

nos ensinaram:

‘Seja feita a vontade Dele!

Amém, irmãos?!

Amém!!’

............................................................................

É aí que me lembro de Jó —

que tem por tema

nada menos que o seguinte:

Se você tentar saber

por que alguém sofre tanto,

ou o porquê de qualquer desgraça —

saiba que estará sempre

    no mínimo — errado.

LA 00/09

 

 

 

 

 

 

 

Alteragente

 

Enquanto farfalharmos folhudos,

criando sombras à nossa volta,

como é que o Outro em nós pode florir,

frutificar seus frutos

para além da parábola do jardim?

 

Ouves o vento?

O que é o vento,

senão o semeador

do real reproduzido?

E o invento, o que é?

Não é transubstanciarmos

o real em transreal

pela vontade

e por força de sonhá-lo assim

em nosso imaginá-lo —

até que tenha um corpo

à nossa mão ou em nós?

 

Muito do que somos,

somo-lo

pelo ousar-querer-imaginá-lo —

enquanto o Outro nos reconstrói...

E aí então colhemos

o irreal do real realizado.

LA 00/09

Deletei, Por Descuido...

 

Deletei, por descuido, o eu em mim,

de sorte que ficou-lhe vago o assento

que procurei preencher com o pensamento

de que o outro ( me ) viesse à tona, enfim.

 

O outro veio e passou-me o dom e o fim

de eu pensar o que digo em sentimento

e sentir o que penso pelo vento

que entre chamas me diz seu não por sim...

 

Ergui o véu da moça que rezava:

vi — assustado — que ela era eu

em tempos de que já nem me lembrava...

 

O padre, ainda bem, não percebeu

que era minh’alma que ao meu lado orava

para salvar em mim o corpo seu.

LA 00/09

 

 

 

 

 

 

 Elegia Do Homem Global

 

Quando eu tinha uma casa, e então saía

para o emprego que tinha, eu me sentia

entre pontos em mim de ir-voltar:

havia Norte e Afeto a me situar.

 

Havia braços me esperando, havia

o hábito gostoso: amor-mania

fluindo em seu afeto a se doar —

sabor de herói-heroína a confiar...

 

Havia o real tornado irrealidade

vertida em mítica felicidade —

o sonho feito coisa de pegar.

 

Havia consciência da existência

num plano de existência da consciência:

a esperança a zelar pelo viver-sonhar.

LA 00/09

 

 

Tuas Mãos

 

Inundavas de raros sons e opalas

o silêncio irial de flavas salas:

tuas mãos floresciam charmes-sonhos

aperolando sons, brilhos inconhos...

 

Teus dedos — bailarinos — deslizavam

sobre o claro das teclas que cantavam

em cascatas de claros, raros tons

num cortejo imperial de sonhos-sons...

 

Ferias almas com o perfume brando

de notas irisadas  entre os vãos

de sentimentos e emoções ecoando...

 

Hoje o teclado é mudo ( o tempo vence-o... ),

mas lema o opalescer de tuas mãos

e os sonhos tropeçados no silêncio.

LA 00/09

 

 

 

 

 

              Entre Os Faunos Da Orla...

 

Entre os faunos da orla e as sereias,

o que é mesmo, compadre, que acontece?

Dizem os pescadores que as areias

andam revoltas desde que anoitece...

 

Um fuá danado: pelas luas cheias,

entre a maré com o vento que enlouquece,

todo um belo bordel se estabelece

de ondinas, faunos, sátiros, nereidas...

 

Bosques e águas se juntam num marulho,

num farfalhar e sôfrego barulho

de dar água na boca e cócegas nas tripas...

 

E a fauna desse contubérnio vário

só se esconde por dentro do cenário

quando o sol vem beber o licor das tulipas.

LA 00/09

Sempre Amarrada Por Um Fio...

 

Sempre amarrada por um fio, a paz.

Entre casais, amigos e nações

ou sejam lá que outras relações —

basta um nada, e seu laço se desfaz.

 

Ao marulhar de suas emoções,

por muito que o homem mostre-se capaz

de navegar por seu azul fugaz —

é sempre um navegar de inquietações.

 

Parece que a consciência exige atritos,

que a harmonia se faz de feros gritos...

e os opostos se fundem numa margem

 

que não é a direita nem a esquerda —

mas margem interior, um ganho e perda...

e o mais é viagem dentro de outra viagem.

LA 00/09

 

 

 

 

 

 

O Colar

 

Estava ali o colar

( de uma princesa egípcia ),

feito, segundo um sensitivo,

por um ourives atlante.

Pérolas, pedras, ouro

e opalescências raras.

Estava ali numa redoma

no Museu dos museus —

ante uma fila ordeira:

três minutos de contemplação

para cada pessoa.

Na redoma,

um clima de catedral:

charme-magia-transcendência

de luzes-cores-sombras-sonhos —

um orgasmo suspenso

de gozo eterno.

Ríctus de silêncio,

céus de abismos.

Sedas raras cobrindo seios

sob olhos em bruxuleios...

...................................................................

Uma atração tamanha —

um vetusto, prístino chique,

piramidal glamour

a causar um frisson

de umedecer a alma

de um santo.

LA 00/09

 

 

 

 

 

 

Os Silêncios Gritavam...

 

Os silêncios gritavam de assustados:

traficantes trocavam estampidos

com policiais especializados —

conversa de mocinhos com bandidos.

 

Máquina de fazer desajustados

e marginalizados e excluídos —

é isso a sociedade: gera os brados

de heróis que logo mais serão bandidos.

 

Gera desempregados e nepotes

que se devoram, trocam os seus botes —

porque o esquema que os gera é a iniqüidade:

 

que reparte a pobreza  e centra o ouro —

mamíferos de luxo e os besouros...

A irrealidade excreta a realidade.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Dizem Que A Vida Sempre...

 

Dizem que a vida sempre vale a pena

de seus vôos: uma vez que suas alas

façam o irial do sonho das opalas

tornar a dor um pouco mais amena.

 

Dizem que a tempestade já serena

se — de repente — as asas da falena

vêm queimar-se nas lâmpadas da sala...

Dizem que, então, a tempestade cala.

 

Dizem que pra curar-se de um amor —

só outro amor ( mais popozudo! ); de uma

ressaca, — um outro gole: um bom licor.

 

E dizem tantas coisas, que se alguma

nem verdadeira for, a gente até

perdoa, e nem por isso perde a fé.

LA 00/09

 

 

 

 

 

            Cena Por Dentro

 

Uma calma bonita

andorinha pela tarde

e diz que a vida vale a pena

do seu vôo.

 

A criançada brinca

no chafariz

e assim — livre-esquecida —

molha os pés e é feliz.

 

O mais é gente atenta:

conversando inteligente...

passando a desesperança a limpo.

Precisam de filosofia

e muitos “ias”( com divãs ),

ou mesmo fé e metafísica —

e muito humor, bastante riso,

muita ironia

para ‘agüentarem’ a vida.

Neles, a realidade

é rebatida com a realidade,

o que produz chispas heróicas...

Já as crianças enfrentam

a realidade com a irrealidade,

e como o sonho ( nelas ) vence —

são felizes

em meio à não-felicidade.

LA 00/09

 

 

 

 

 

De Tudo, O Que Restou...

 

De tudo, o que restou? Ficou o guizo

que fazia cantante o andar da cabra,

dois pés bem velhos de jabuticaba

e de Mariazinha o medo-siso

 

( que lhe virou, talvez, em prejuízo

de não se ter doado a nenhum cabra

que lhe desse aliança, casa e a magra

vidinha, pendurada num sorriso...).

 

De tudo, o que restou? Sobrou a hera

nas paredes da casa que sonhou

o que não foi, mas que em sonhando era...

 

De tudo, o que restou foi a lembrança

da vida toureada com a esperança —

capa rubra que nunca descansou.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Abdicação

 

Nós, os machinhos, já não agüentamos

com esse arreio sobre as nossas costas.

Queira a Deus — breve — já não recorramos

às vossas xotas cheias de propostas...

 

Como antes não dá mais: já nos cansamos

de vos ser escudeiros nas apostas

de vossas lealdades... Hoje estamos

sem moinhos de vento... e de mãos postas

 

( não em vossas xiranhas ) mas na bússola

do norte do amor-próprio e do auto-escrúpulo.

Chega, pois, de sorrir bebendo absinto.

 

Muitos, senhoras, nem mais somos homens —

abdicamos: nem cornos-lobisomens,

nem veados, nem machões: um nó no pinto.

LA 00/09

 

 

 

 

 

C. C. & S. C.

( A Leveza De Um Ex- )

 

Quando me separei de Aparecida,

passei a degustar algo tão bom

como voltar à infância em sobretom:

em tom de liberdade e bem mais vida.

 

Foi tão bom, que escrevi pra minha ex-Cida:

Se soubesse que sem o teu batom

fosse tão lindo, então quisera, com

mais pressa, vê-la desAparecida.

 

O que com Cida era bom, sem ela,

virou divino: hoje saboreio

minha segunda infância, sem chinela...

 

Hoje há C. C. e S. C. na minha vida:

o ( todo em prata ), com Cidinha, arreio...

e a leveza da vida, sem a Cida .

LA 00/09

 

 

 

 

 

Candelabro Central

 

Candelabro central da catedral,

trabalhado em cristal, rubis e opalas —

vibrações-brilho lidas no mental,

traduzidas em gamas-sonhos-falas...

 

Um vento... chego à porta, mas não abro...

Brilha o silêncio nesse mineral,

e a prata, e o ouro, e os sóis do candelabro

reverberam nas vozes do coral...

 

Luzes, agulhas-reverberações

tecem, retecem sons em sobretons...

e murmuram, ondulam orações...

 

Entre os lumes-magia dos vitrais

cantam do candelabro as luzes-sons

em múrmuras visões celestiais...

LA 00/09

 

 

 

 

Viver Faz Bem

 

Viver faz bem:

vai nos mostrando

o mundo e a nós.

Viver desenrijece,

torna mais brando —

vai dispondo a cerviz

na horizontal.

Vai transformando o riso, o ricto

em sorriso...

 

Viver faz bem:

vai ensinando a paciência

com a gente e com os outros.

Ensina que, se dói,

dói para todos.

Se é bom —

é assim com todos.

Viver ensina que eu tu ele

são vigas daquela ponte

( dentro de cada um )

que temos de atravessar.

 

Viver faz bem:

vai revelando

que isto não é assim,

mas de outros e muitos modos.

Que não é isto ou aquilo,

mas sobretudo isto e aquilo.

Que o outro só atrapalha

a quem não quiser se ver:

o outro é espelho,

não raro, incômodo.

 

Viver faz bem:

vai nos metabolizando

a realidade

em visões de realidades —

a tal ponto que o sonho

se torna o cais singrante

do nosso sempre outro

partir-chegar:

um modo de navegar

através e por dentro

do real re-sonhado.

 

Viver faz bem:

vai nos tornando claro

que o pão da vida é a alegria,

e que a sua farinha

deve ser repartida —

para que seja completa.

Viver nos diz que odiar é fácil —

basta maldade e ignorância.

Viver nos diz que amar

é ainda mais fácil —

basta alguém fazer de modo

como se fizesse pra si.

 

Viver faz bem:

vai nos contando que somos

tão diferentemente iguais,

que deveríamos

nos suportar bem mais.

Viver nos vai preparando

pra sermos donos de nada...

Pois não somos nossos corpos,

tampouco a vida é nossa:

mas graça que nos foi dada

para por ela atravessarmos

para além do nosso engano

LA 00/09

 

            Há Exceções: Sossegue

 

Tenho escondido de mim

muitas coisas espantosas,

mas os outros, com certeza,

sabem de quase todas.

 

Nossos sigilos

e dissimulações

são tão ruidosos,

que se fazem visíveis —

não obstante tenhamos

apagado todas as luzes.

 

O primeiro que se engana

é sempre aquele “eu mesmo”,

logo em seguida,

aqueles “uns aos outros”.

Em nossa capacidade

mais alta de fingir

é que pensamos

estar nosso valor.

LA 00/09

 

 

 

 

 

O Saldo De Viver...

 

O saldo de viver é aprender

que a vida morre sempre noutra vida

e a morte é luz na alma renascida

no difícil ofício de viver.

 

O que é que a vida ganha com morrer,

a não ser a esperança anoitecida

de que cedo estará amanhecida

em seu glorioso reacontecer?

 

O saldo da árvore serão seus frutos,

o dos frutos serão suas sementes,

o das sementes, — árvores: tributos...

 

Elos de vida e morte coniventes —

condições que jamais podem durar

já porque o caminho tem que andar.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Por Achados E Enganos

 

O homem sente

que algo fundamental lhe falta,

e que deve ir buscá-lo.

A sua inteligência

sócio-programada,

seu caminho profetizado...

seu ir em frente ininterrupto —

nem se quisesse

o homem não poderia mais parar:

uma força profunda o impulsiona —

o homem sente, sabe

que não está em seu lugar

e que precisa chegar lá.

 

Por achados e enganos,

sabe que ter não lhe basta:

precisa ser —

ser o que quer

e que — depois de sê-lo —

precisa transformar

a sua essência em ser-se:

em ser autogerado —

num recordar-se

que é puro esquecimento,

aquém e além de ser.

LA 00/09

 

 

 

 

 

 

Explicação

 

Eu, por mim, meu amigo,

escolhi o desabrigo

( e tenho pago o preço... )

do telhado social —

um modo só de viver

( com sua maluquez )

o meu prazer de ser

em solidão transcendental.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Fusos Ilusos

 

Parti amanhã,

cheguei hoje —

estava em Sidney.

Trago estas flores

que te colhi do futuro.

Põe-nas no vaso

feito da argila

dos amanhãs.

Teu coração

por certo sabe

onde ele está:

ou terá quebrado

o nosso vaso?

LA 00/09

 

 

 

 

 

Porre, Porres?

 

Não temas:

fizemos nossos teoremas

com a calma geometria

de quem o tempo todo,

entre as estrelas e o lodo —

foi um barro constelado

e animado pela poesia.

 

Quem viveu nesse porre

( na corola dessa aurora ) —

só tem que agradecer,

não pelo viver-morrer,

mas pelo morrer-viver...

Quando chegar a hora,

cala, confia... e morre.

Quem sabe a morte

também não é um porre

do melhor vinho?

Pensar que sim

não dá brilho ao banquete?

Claro, claro que dá! —

já que morrer

é um nascer do avesso.

LA 00/09

 

 

 

 

 

 

Da Série: Poemas Bobos

 

O real se traveste em sonho

que se desveste em construções —

talvez uma questão de

morfologia mental:

a coisa, a descoisa

e a realização dela mesma —

em outras gamas de ser.

É assim que a realidade se transforma

e vai se transmudando em consciência.

Todo o Universo é um tobogã

do Não para o Sim cosmológico —

cabe ao Ser a tarefa

de conscienciá-Lo.

LA 00/09

 

 

 

 

 

 

 

 

A fé move as nossas águas,

faz nosso barco singrar

em direção ao que gestamos

lá em nosso psíquico —

então colhemos nosso desejo:

porque o querer

das atividades psíquicas

foi focado nesse desejo,

e já podemos caminhar

por sobre as nossas águas.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Aqui Foi Um Lugar...

 

Aqui foi um lugar de horas macias,

tardes andorinhadas e trissantes,

bocejos constelados, calmas vias

com mulheres do amor: as pluri-amantes.

 

Aqui foi um lugar de horas esguias —

lisas pelos silêncios porejantes

de haver em alma sonhos-geometrias,

modulados por luzes coagulantes...

 

Aqui foi um lugar de horas-amoras —

roxas dentre as corolas das auroras,

fluindo em depiladas cicatrizes...

 

Aqui foi um lugar de horas felizes,

horas ciciadas de iriais demoras

molhando os pés em frescos chafarizes.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Lindo Era Ter Você...

 

Lindo era ter você, sabendo nada

possuir nas mãos, a não ser nuvem, ar.

As tardes mornas de domingo, a aguada

dos chiados de dezembro a goteirar...

 

A floresta a gemer bem compassada

na grande, enorme cama a resmungar.

A penumbra de seda, entre almofadas,

madrugadas uivando em rude farfalhar.

 

O saber que era pouco tudo isto,

mas não querer senão saborear

o aquoso entrelaçado em oaristo...

 

E sentir o quão pobre era a riqueza,

quão maltrapilha toda realeza —

nessa dor de saber, mas a cantar...

LA 00/09

 

 

 

 

 

A Distância Era Longe...

 

A distância era longe, bem mais longe

que tudo aquilo de que foge um monge.

Naquele tempo o coração não tinha

noção de como andar por sua vinha...

 

Sabia catecismo, inglês, francês,

grego, latim... mas nada de amorês.

A emoção sempre verde é que o empurrava

para os longes do mar ou selva brava.

 

Hoje não. Fez mestrados em enganos,

doutorados com tese em perdas-danos,

e aprendeu a sentir com a razão.

 

De sorte que, safado entre safados,

de nada lhe valeram doutorados —

logrou mudar o tom, não a intenção.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Direito? Esquerdo? Apenas...

 

Direito? Esquerdo? Apenas divergido.

Pensado por si mesmo entre o estourar

de pipocas com sonho dirigido...

Maria vai? Não. Hoje, vai ficar.

 

Sereias cantam, cantam seu comprido

canto aos marujos pelo mar... o mar

do vende-vende até deixar vendido

o comprador incauto a soçobrar.

 

Nem direita, nem centro, nem esquerda:

mas por cima, por baixo ou pelo ar —

contanto que nem isto nem aquilo.

 

Quem sabe ser faquir ou ser psilo

a pregar, despregar e repregar...

rabos de cobras, não! Que é isso, ó merda?!

LA 00/09

 

 

 

 

 

Olá, Meu Coração...

 

Olá, meu coração, que é que te falta?

Olá, minh’alma, derrubaste a pauta

e já não sabes a canção que um dia

era teu vinho e pão, tua alegria?

 

Será que um dia, coração, teremos

um décimo de tudo o que quisemos?

E quanto a ti, minh’alma, essa loucura

pela vida, é isso bom, tem isso cura?

 

Virão dias, sosseguem, virão dias

com outras gamas, outras geometrias

( que sabemos mentais ) e dons inconhos...

 

E em alma-coração, teremos clima

de realizar a mística vindima

para dar de beber aos nossos sonhos.

LA 00/09

 

 

 

 

Com O Pensar Tocamos...

 

Com o pensar tocamos o futuro,

mas é com nossas mãos que nós o unimos

ao barro do passado ( o barro escuro )

e ao do presente, e nos reconstruímos.

 

Mister amolentar o barro obscuro

em alma-coração, e a ele adirmos

a fé que faz o sonho nascituro

e a esperança que é a força de construírmos.

 

Com a fé programamos, e o que somos

são programas de ontem que transpomos

de lá para o hoje e, no hoje, os remoldamos...

 

A esperança faz ver o sonho pronto,

como num conto em perenal reconto, —

o pensado daquilo que pensamos.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Amor? Amor!

 

O amor, suas mumunhas e alfazemas.

Sempre armando intricados teoremas.

Solvê-los como? Pela inteligência

ou pelo coração? Por qual ciência?

 

O amor tem mil e um estratagemas —

lisos para furar quaisquer esquemas:

dribla, faz gol em clara frangolência,

passando a perna em toda competência.

 

Para entender o amor, — só não querendo...

Isto é: só confundindo o dividendo

com o resto... e sem fazer da conta muita conta.

 

Assim, de amor se entende sem a sede

de querer entendê-lo. Diz que a lontra,

após comer o peixe, fura a rede.

LA 00/09

 

 

 

 

O Vento Dá Os Últimos...

 

O inverno dá os últimos retoques:

desfolha a xantofila e vai semeando

o que a planta moldou e foi criando,

em sono-sonho, ao vento em seus remoques...

 

Vem a chuva e carrega esses estoques

de sementes pra longe, e os vai molhando,

vai entregando ao sol que, aos tatos-toques

de luz, os vai abrindo e germinando...

 

O relógio interior do sabiá

lhe diz que é hora de cantar, que é hora

de construir e amar, que o frio se fuera...

 

Setembro põe no peito o seu crachá:

luz-flores-cores em mil tons, agora

num renascer chamado primavera.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Para O Ego Se Despir...

 

Para o ego se despir da auto-importância

deve ser tão difícil quanto ver-se

cavalgar sua insólita arrogância —

cavalo e cavaleiro a entreter-se.

 

Nesse doping de si a entontecer-se,

nessa self-beleza e bel-fragrância,

como é que pode um homem transcender-se

se a autopulsão é bem maior que a ânsia?...

 

No entanto apregoamos, aos bramidos,

que outros são os drogados, os vencidos,

outros os doentes em seus débeis esmos...

 

Dizemos uns dos outros coisas tristes,

e as coisas que dizemos não são chistes —

são aquilo que temos em nós mesmos.

LA 00/09

 

 

            Casarão

 

Parecia um bocejo o casarão,

fechado há muito e muito. Altas paredes

unhadas e escorridas: largos risos

( banguelos ). Picumãs, carunchos, poeira.

 

Ainda havia passos, falas, sonhos,

gemidos, gritos, solidões doídas

vibrando aqui, ali, além: do teto

ao chão, fantasmas tristes... sem seus donos.

 

Fora, a escada de mármore, o muro,

a hera, a dor de dálias, — sentinelas

fiéis e muito exaustas, mas sorrindo...

 

Um vento ( só ) pelas varandas ermas...

Um tilintar mental ( de taças? ) e a lembrança

ainda tinta de alegria e vinho.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Belos Os Temporais...

 

Belos os temporais, as tempestades —

linhas de vento empinam negras pipas...

Os ares a rugir ferocidades —

um medo bom passando pelas tripas...

 

Rudes ventos roçando telhas, ripas —

tesões gozando de brutalidades:

destroncando o pescoço das tulipas...

varrendo galhos e outras mais enormidades.

 

Belos destruidores amorais.

Belos porque de uma brutalidade

estúpida: brutais porque-brutais.

 

Belos porque horrorizam de beleza —

de uma beleza má num sem maldade...

Porque espantam a própria natureza.

LA 00/09

 

 

Ninguém, Nem Nada...

 

Para uma outra arrumação —

mister desarrumar.

Urgente desaprender,

reconhecer, desmontar,

desvestir, descoser —

do espírito até a carne.

Desprogramar do poli-

ticamente correto:

do sabemos, partir pro não sabemos;

do achamos, pro procuramos;

do é assim, pro pode ser de mil modos.

 

Perder o medo do ridículo:

ver o sapato do palhaço,

as calças do palhaço,

os suspensórios, a camisa de bolinhas,

o nariz, a peruca, a cara desenhada,

o chapéu de palhinha:

ver tudo isso —

mas não em outra pessoa...

Ver a repartição da pobreza,

a concentração da riqueza —

a iniqüidade fazendo

príncipes e mendigos,

mocinhos e bandidos,

normais... e loucos... e...

Mas ver as coisas não nos outros —

vê-las em nós.

 

É mais que hora

de nos vermos fingidores

de não termos trabalhado

na construção da desventura.

 

Ninguém, nada nos iluda:

cada um de nós

é um fazedor —

do mundo e do homem.

E cada um de nós

é esse mundo, é esse homem.

LA 00/09

 

Let’s Play!

 

Os desquitados vivem

a bem-aventurança

de uma segunda infância.

Só agora é que eles vêem

como dói representar

a comédia da cultura.

Machinhos e femeazinhas

    desquitados —

agora querem brincar —

aproveitar a infância.

LA 00/09

 

 

 

 

Delírios Travestidos...

 

Delírios travestidos de razões,

razões sentimentais fingindo temas

que se vão transformando em teoremas

que mostram como descascar mamões...

 

Touros valentes, derrubais peões?

E pisais seu escroto e outros emblemas

com a mesma classe de jogar espermas

nas vossas fãs pastando solidões?

 

Touros valentes, por que sois tão broncos?

Não sabeis salivar vosso vaquês —

buscando, então, rachar roliços troncos?...

 

Touros valentes, certo, já falhastes( ? )...

E não vos adiantou nem os guindastes,

a geléia, a gemada e os bons patês?

LA 00/09

 

 

 

 

 

Ultimo terceto de um soneto

cujo começo ( topa? ) você faz na mente...

 

De tudo o que restou, sobrou tão pouco,

nem ficou das loucuras um só louco.

De tudo, só o riso se salvou.

LA 00/09

 

 

 

 

 

O Grilo

 

Branco estelar era o cricri do grilo,

acompanhando o ritmo da chuva

e o vento fresco e bom que de senti-lo

faz o grilo cantar isto e aquilo.

 

E alegre-alegre — feito uma viúva —

era o cricri do grilo: bom de ouvi-lo,

nos dezembros, ao cheiro bom da uva

e o farfalhar molhado da imbaúva.

 

De um branco astral era o cricri do grilo,

chispando prata em seu cantar tranqüilo

e abafado: qual dentro de uma luva...

 

Da cama ouvia o seu cricri, e ouvi-lo

não era áspero como um bituva,

nem tão macio assim feito uma vulva.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Taprobanas

 

Ao chegares à tua Taprobana,

não te esqueças: há outra mais além...

Aquela a que aportaste sempre engana —

sugere que após ela nada vem.

 

Aliás, é dado à natureza humana

criar raiz, prender-se com alguém:

construir uma tenda sobre a gana

que lhe enche o ver... e, então, pensar que tem...

 

As Taprobanas mudam-se de gamas —

aquilo que, hoje, numa delas, amas,

noutra, verás que objeto e amor são outros...

 

Um horizonte engole outro horizonte,

os potros são cavalos de outros potros...

Não faças uma casa sobre a ponte.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Caminho Estreito

 

Vim por um caminho tão estreito

que, se olhasse para trás,

certamente despenharia

em mim.

Vim por aquele caminho

entre o ser e a solidão,

entre o sorriso de Deus

e abismos atapetados

das flores do meu desejo.

 

Vim por um caminho estreito

entre as estrelas

e o coaxar molhado de escuro.

Vim debulhando a realidade

para que os pássaros a comam

e a transubstanciem

num vôo que é interior —

e possam empreender a travessia

sem o risco-perdição

de caírem nas próprias águas.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Se Maomé Não Vai...

 

Sempre que Débora o deixava sem,

ele zumbia fanho como quem

pragueja, reza ou diz com a boca cheia —

e ia buscar seu mel noutra colmeia.

 

Se lambuzava todo no melaço

e só depois voltava para o braço

daquela que, com ares de rainha,

ai de quem fosse lhe tirar farinha!

 

E assim o pobre atravessou as décadas —

triste, azarado como quem defeca das

nuvens, mas eis... acerta a própria sombra!

 

Até que um dia ( o mundo gira...) a irmã da dona

vem pra ficar: esguia, andar de alfombra...

olhar de quem achou... e finge-se bobona...

LA 00/09

 

 

 

 

 

Beijar-Te A Boca E...

 

Um hiato, um silêncio, um desprestígio:

fim de tarde apoiada em frias lanças...

Um céu de tempestades em bonanças...

Algo de hediondo sem deixar vestígio.

 

Assassínios e crimes sem fianças —

agora fiançáveis, sem litígio.

( Beijar-te a boca e acariciar-te o míjio!...)

              Tarde a morrer nos braços de crianças...

 

No ar, um mal sem o licor estígio.

Um cheiro, um gosto, uns olhos de finanças

em visões de um delírio calipígio...

 

Os sonhos engordaram: suas panças

balançam pelas ruas, sem prestígio...

Tarde incendiando vestes de esperanças.

LA 00/09

 

 

 

 

Ela Ia Descalça...

 

Ela ia descalça à nossa frente,

às vezes fraca, muitas vezes forte,

mas sempre-sempre, quase sempremente,

ela ia à frente com seu rico porte.

 

Por vezes nos sumia longamente

até que a vida parecesse morte...

Mas ei-la: já voltava, diligente,

alegre, a nos trazer o seu aporte.

 

E falava-nos sempre tão baixinho

que só o coração podia ouvi-la,

feliz, a ir e vir pelo caminho.

 

Forte, feliz: um jeito de criança —

transmitia uma fé sempre tranqüila...

Os que a viam chamavam-na Esperança.

LA 00/09

 

 

 

 

 

A Rubra Rosa Enchia A Sala...

 

A rubra rosa enchia a sala do seu canto,

trazido do mental de uma intenção —

num transe de delírio que do pranto

fazia — afogueada — uma canção.

 

A rubra rosa, ali naquele canto,

num solitário: esguia mão em outra mão,

a oferecer, com salivado encanto,

a sua rubra voz ao coração...

 

Nesse rubro cantar, rubro acalanto,

em tons em alma e sobretons de espanto,

a rosa despetala o seu dizer —

 

seu jeito de dizer e florescer

as intenções semeadas no seu canto —

a rosa rubramente a enternecer.

LA 00/09

 

 

 

 

As Lágrimas Caíram...

 

As lágrimas caíram, ninguém riu,

não era ( aquele ) tempo de chorar —

por isso, em vindo os olhos a prantear,

quem sabe ninguém riu porque não viu.

 

Portanto, se alguém deve derramar

dores do olhar, derrame o que sentiu

que devia cair, e, se caiu,

que tenha sido doce o seu rolar.

 

Água salgada: uns chamam disso as lágrimas,

ou cloreto de sódio comovido...

Eu prefiro chamá-las de sintagmas...

 

Há os que chamam de fracos os que choram,

e os que os chamam sensíveis... mas ignoram

que é um caso de viver e ter vivido.

LA 00/09

 

 

 

 

Era Tão Feminista,

que mandou cavar um poço

profundo, mas tão profundo —

que lhe trouxesse as águas

do Estige.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Angústia Em Cores

 

Nossa amizade, Glória,

virou um treco.

Também não há sinteco,

amada,

que conserve uma história

já tão pisada.

 

Das rosas ( que não mandei )

pode ficar com a saudade —

se não foram verdade,

não fui eu só que errei:

o calor que as murchou,

o vento que as desfolhou —

eles também erraram,

pois nunca me falaram

( nem ninguém me alertou )

que você sempre ironizou

as flores

( e por que não faria? )

da humana angústia em cores

de cada dia.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Ra-Ra-Rá

 

Pagamos para ver

as pessoas felizes —

assim, o somos nelas,

enquanto nos julgamos

incapazes de sê-lo —

enquanto o velho mundo

projeta aos infelizes

as novelas dos felizes.

 

Enquanto nos julgarmos

incapazes —

fartamente o seremos:

infelizes alegres

da felicidade alheia.

 

Ou nós nos libertamos

dos chiliques da cultura,

ou seremos os seus cultos

escravos.

A equação dos felizes

versus infelizes

deve ser resolvida

aos risos, às risadas...

ou com as suas primas —

as Gargalhadas,

irmãs do Ra-ra-rá.

Pois é.

LA 00/09

Ah, Eu Também...

 

Ah, eu também

comi muitas mulheres.

Só não molhei o pão

no fundo da panela,

nem nunca ingeri peles,

nem penas.

Quanto ao mais,

sempre fui vegetariano.

LA 00/09

 

 

 

 

Povalo

 

Upa, upa, povalo! Camaradas,

cavalguemos o lombo desse povo!

A ele ( sempre ) muita marmelada

e promessas de céu por casca de ovo.

 

O.... deixaremos sempre à beira-nada,

na boca um pirulito e um bico novo.

Tangeremos os tais feito boiada —

para o bico necrófilo do corvo.

 

Quando forem demais, inventaremos

a trama de um conflito e os mandaremos

para as doces moradas eternais...

 

Povo e ovo precisam ser quebrados,

ser mexidos, batidos e fritados

ao paladar das classes celestiais.

LA 00/09

 

 

 

 

Amigos E Não-Amigos

 

Os não-amigos servem

para nos dar mostra

de como seria boa

a amizade.

 

Os amigos

não precisam ser muitos —

para que não suceda

que alguns,

em se tornando adversários,

não nos sejam ainda piores

que os não-amigos antigos.

LA 00/09

 

 

 

 

E Coisa E Tal...

Pombas e rolas levantando o vôo

com as rêmiges ferindo as fímbrias do ar...

A manhã é um canto com entôo

de azul envolto em luz a fervilhar.

 

Para todo lugar aonde se olha —

um mesmo e só escândalo de azul:

de azul e ouro e verde, uma só bolha

de beleza e riqueza, norte-sul...

 

O céu, a terra, o mar: o macro, o quântico —

em tudo o mesmo brilho e glória e tom violáceo...

mesmo equilíbrio e tresloucar romântico...

 

Entre os homens, a coisa é diferente —

basta ver onde moram, simplesmente:

sarjeta, ponte ( e coisa e tal...) mansão, palácio...

LA 00/09

 

 

 

 

 

Bacias

 

Bacias e bacias e bacias:

de ágate, louça, folha, vidro, cobre —

bacias de lavar as mãos macias

dos que dispõem do mundo, a fauna nobre.

 

Bacias e bacias: fidalguias

afogando o direito que é do pobre...

Bacias com as cínicas manias

de lavar o que a água não encobre.

 

Bacias de águas rubras, águas frias...

Bacias de estratégias-covardias —

velhas bacias de auto-enganos vãos.

 

Tristes bacias de intenção salobre —

calar o sórdido que a luz não cobre:

bacias de omissões de sujas mãos.

LA 00/09

 

 

 

 

Fazenda Longe...

 

A tarde é de um desânimo vacum,

lambendo o sal da ponta do nariz.

Folhas paradas, movimento algum

no verde, nem um pio de perdiz.

 

Uma tristeza mole no lá longe,

a derramar-se pelo azul cinzento.

Não sei o quê de arrependido monge

com uma ferida no seu pensamento...

 

É feio o casario da fazenda,

é triste o ser humano em derredor:

mais parece o fantasma de uma lenda...

 

A vida passa com um peso às costas...

Muitas patas pisando as próprias bostas...

Criaturas mascando a sua dor.

LA 00/09

 

 

 

 

Galinovorância

 

Comeu galinha até

ao molho pardo.

Por muito tempo andou

sujo de penas:

penas de todas as cores.

Mas... se sua mulher, com pena,

lhe perdoou,

quem se faz quem

para recriminá-lo?

LA 00/09

 

 

 

 

 

Aequatio, -onis

 

Homem nenhum-nenhum,

em país algum,

devia ser levado a sério

enquanto a subpobreza

não fosse erradicada,

e a mendicidade: assistida

como incapaz —

porém cuidada.

 

Pobreza, sim. Subpobreza, não.

Riqueza, sim. Mega-riqueza, não.

 

Equacionado assim

( de modo adolescente )

é que se vê a enormidade

do drama humano.

 

Quanta doença, ó transeuntes,

e que vasto hospital!

LA 00/09

 

 

 

 

 

Um Nada

 

Há os que fingem

e os que adorariam

ser o que os outros fingem.

Há, portanto, aqueles

a quem apenas falta

fingir.

 

Modela bem os teus sonhos

com o barro constelado

da importância que sabes

que as coisas jamais tiveram.

Modela-os,

e experimenta como é lindo

um sonho findo —

um sonho que julgavas

fosse eterno,

e de repente

    maravilhosamente —

um nada.

Um nada-tudo

com que recomeças outro —

que sabes nada de outros.

Enfim, quem disse que há um fim?...

Ou que um serafim

tem que te arrebatar

para seres feliz?

 

Se experimentares o humor,

o riso, a ironia —

verás que não são só remédio,

mas um modo lúcido-indolor

de te relacionares

com os homens e as coisas.

LA 00/09

 

 

 

 

O Sentimento Há De Pensar...

 

Pensar...

O sentimento há de pensar, enfim,

tudo quanto a razão há de sentir.

E ambos, um só, em coesão afim,

já não consigam mais se dividir.

 

Sensivelmente arrazoado, ao fim,

o sentir deverá, então, se abrir

ao sentiente pensar que, em seu intuir,

sabe pensar-sentir assim e assim...

 

E toda a nossa multi-aparelhagem

há de enfeixar-se e agir numa unidade

que realize o real em equipagem.

 

E a nossa humana essencialidade,

num processo de auto-reciclagem,

há de transpor a sua humanidade.

LA 00/09

 

 

 

 

Que Coisa Foi Mais Rosa, Ou...

 

Que coisa foi mais rosa, ou alma, ou canto?

O beijo que não houve, o olhar de espanto,

o sonho que acordou cheio de orvalho

nos pés que conheciam bem o atalho?

 

A rosa desfolhou, Vera me disse,

bem antes do frescor e da ledice

de haver um sonho entre a primavera

e o rastro de beleza dessa Vera.

 

Para um anão frustrado o mar contou

a história do marujo que emprenhou

mil sereias, e tinha um metro e pouco...

 

A rosa, o vento a violentou. A alma,

o amor a entediou. E o Nexo? Calma!

Volta já, foi tomar água de coco.

LA 00/09

 

 

 

 

Funciolo, O Das Cabras

 

Funciolo era um bitelo —

parecia um gigante das Mil e Uma...

Manso como um gato de sofá.

Calmo igual ao preguiça.

Festivo como quermesse de santo padroeiro.

Paciente feito o jegue.

Amigo que nem rabo de vira-lata.

 

Funciolo criava cabras.

Já tinha tido vinte e três...

Mas o pobre não tinha sorte:

seus amigos, parentes e vizinhos

( e até gente de longe )

vinham lhe roubar o leite,

provar da carne.

Vinham à noite.

Funciolo tinha um sono de pedra.

Quando ia ordenhar,

elas berravam que ele já tinha feito...

Como não se lembrava,

ficavam os Ditos pelos ditos.

E assim foi —

Molhou a boca a muita gente

( dizem que até do patrão ).

Muitas vezes sonhava

que ajudava na ordenha...

A muita mão desajeitada e torta

ensina ( ele era sonâmbulo )

ensinava como ir e vir

até que enchesse o balde.

Funciolo era muito amado,

gostado e querido aonde é que fosse —

com seu riso de permitir

e sua boca de dizer sim.

 

Aliás, as únicas vezes que dizia não,

era quando sua mãe aconselhava:

Se mecê num come carne

nem bebe coisa branca —

abre a porta do aprisco, home,

e deixa o que num é seu ganhá o léu-mundéu!

Aí ele ajeitava a boca

e depois de algum tempo respondia

( respondia firme ):

Não!

 

Nas festas do Bumba,

ele era sempre o boi.

E assim foi Funciolo —

o que tinha o não-seu

e o que foi sem nem ser.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Esperava Encontrar-Te...

 

Esperava encontrar-te atrás do frio

que sentia na minha mocidade.

Para isso esperei que viesse o estio

e esse gelo cantasse em liberdade...

 

Que esse caminho longo e tão sombrio

ganhasse relva e morna suavidade.

Voltasse ao bosque o brilho fugidio,

e a vida fervilhasse em claridade.

 

Mas não: aquele frio não passou.

Encontrar-te escondeu-se atrás de “um dia”

que o próprio tempo racionalizou...

 

Minh’alma descobriu, um tanto pasma,

que ela própria era aquele bom fantasma

que devia ser minha companhia.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Aqui, Sim, Está Bom...

 

Aqui, sim, está bom: longe de tudo

e a um tempo circulando no que existe.

A realidade é triste como um chiste

que o patrão nos repete, sabichudo.

 

Os segundos são lisos como alpiste

e o tempo é só um pássaro bicudo

a ouvir de seu avô, velho sisudo,

rotas de vôos e ser, a alma em riste...

 

Aqui, sim, está bom: estou morrendo

com a doce ilusão de estar vivendo

um dia a mais entre viver-morrer...

 

Na árvore, ao lado, canta um sabiá...

e seu canto é tão limpo de saber,

que não-saber é o só saber que há.

LA 00/09

 

Provem Do Pão, Do Vinho...

 

Provem do pão, do vinho e mel silvestre.

Provem desse horizonte que relincha

por veredas dos ínvios, no campestre,

ladeando corgos aonde a rã se pincha.

 

Provem dessa beleza que eis... esguicha

de frescos sonhos de mural rupestre.

Dessa chuva de azul que desce e espicha

sobre o lombo da serra o trote eqüestre...

 

Provem desse infinito no finito,

dessa harmonia no íntimo do grito

que a gerou cheia de suavidade.

 

Provem dessa alegria que é tão forte,

desse viver que traz em si a morte —

dessa morte agarrada à eternidade.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Bimbalha O Verbo Aqui...

 

Bimbalha o Verbo aqui, reboa lá —

amplo, emprenhando o ventre da amplitude...

e vai criando formas a que alude

com o sopro dos sais do seu maná.

 

Tal como o vento vem, o vento vai —

agora sobre a areia e já no açude,

agora sopra suave, agora rude —

o vento é como o Espírito do Pai.

 

Trabalham até hoje Pai e Filho,

pelo elo do Espírito trabalham —

dão luz à estrela, ânimo ao tomilho...

 

É tudo um vir-a-ser num já ter sido,

um reviver por entre o ter vivido —

em ramos de ontem que por hoje esgalham.

LA 00/09

 

Se Dois E Dois São Quatro...

 

Se dois e dois são quatro, quatro e seis

são só um verso em línguas neolatinas

a dizer nada ou todas as divinas

comédias deste mundo e suas leis.

 

É lógico, Marli: dois e um são três,

mas translógico é o nosso envolvimento

ter sua base sólida no vento

que guiava um navegante qualquerês...

 

Os homens passam-nos lições de casa,

mas a vida nos diz que as suas penas,

além de penas, podem ser-nos asa...

 

O coração vive pensando asneiras

que a razão sente serem tão-apenas

as coisas vistas de outras mil maneiras.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Olimpíada(s)

 

É o charme, é a força, é o delírio-ousar —

vontade de ser mais da raça humana:

é esse ir ainda além da Taprobana —

é esse acreditar, e suplantar(-se).

 

É essa pulsão de ser: ultrapassar

em si o que outros, em divina gana,

já mostraram possível: sobre-humana

luta de transcender e superar(-se).

 

É a carne constelada, é a natureza

deixada para trás como destino...

Vontade-força-sonho: essa beleza

 

alumbrada de Sim no ser a ser-se...

É esse quê, essa chispa de divino

que arde no homem, e o leva a transcender-se.

LA 00/09

 

 

 

 

Ainda Bem Que A Página...

 

Ainda bem que a página não tinha

nenhum traçado ou pauta, uma só linha,

nem engrama, nem cifra, verso ou glosa,

nem emblema ostentando rubra rosa.

 

Nada. Apenas a página continha

o branco do sulfite e da entrelinha

( mental ) de alguma idéia desejosa

de ganhar corpo-luz, em verso ou prosa.

 

Foi então que peguei uma caneta,

e vendo fora o vento que passava,

vi que era a mesma voz que em mim falava —

 

posto que, de mim fora, era um cometa

e, por mim dentro, era um feliz momento

que queria morar num pensamento.

LA 00/09

 

 

 

               Adelaide Cruzou A Perna...

 

Adelaide cruzou a perna clara

abrigando, com charme, a ameixa preta

que há pouco/pouco, experta, trabalhara

em suas piruetas e caretas...

 

( Nova e muito bonita, ela chegara

lá de cima... faminta e analfabeta.

E percebeu que, em meio à gente avara,

só tinha, de valor, a ameixa preta. )

 

Perguntou ao cliente se queria

dar mais uma... ou se ela já podia

ir lavar-se...

                     E se foi, pé ante pé...

 

Recebeu duas notas do turista.

Deu uma para a “Gorda”, a economista...

e correu comprar pão, leite e café.

LA 00/09

 

 

 

 

Como O Saci...

 

Feio como o Saci de pé quebrado

é o momento. Eu explico ( pois você,

com certeza, não mora no meu tempo... ):

é que fomos vendidos, todos nós.

 

Venderam tudo quanto em casa tínhamos,

e os gringos e neogringos cá vieram

pra nos vender mais caro o que era nosso —

e ficamos vendidos e comprados.

 

Para sempre comprados sem fiança,

para sempre vendidos para os ricos —

até os genes: vendidos e comprados.

 

De modo, meu senhor, que não sabemos

nem mais de latitudes-longitudes...

Vendidos e comprados, — no Mercado.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Eu Vi A Multidão...

 

Eu vi a multidão dos andarilhos

erguendo ao rei as suas mãos vazias —

têm a sua alma presa por atilhos

de não compreenderem os seus dias.

 

Mais frágeis que as alfaces e os tomilhos,

sua vontade sofre de abulias,

seu não-ousar se torna em empecilhos

para construir as próprias alforrias.

 

Não tendo uma vontade que transmude

a realidade, prendem-se ao destino...

( O homem precisa armazenar virtude.)

 

De títere ao homem de vontade —

eis a meta do abúlico ao divino:

de fé em fé, de verdade em verdade.

LA 00/09

 

 

 

 

 

Subiu À Sua Torre...

 

Subiu à sua torre de marfim

( não pensem que se trata de um poeta ),

de lá se arroga chispas de profeta

e veste seus sapatos de arlequim.

 

Nesse transe de gênio e serafim,

soube dosar o sério com o pateta,

o corno-sempre-manso com o atleta,

o jogo de xadrez e o bimbolim.

 

Escreveu uma tese metafísica

defendendo a veadagem e a tísica,

a sodomia e o asseado telecouto.

 

Também foi inventor de uma engenhoca

com pênis, vulva, mãos, ânus e boca —

coisa de esfarelar xota e biscoito.

LA 00/09

 

 

 

 

Roseira-Rosas

 

Quando Joaninha era bela

e dava formosas rosas —

ela então as repartia

com os amigos do esposo.

Deu-as muitas e muitas —

repartindo-as sempre/sempre.

Voltava amiúde desfolhada,

por vezes, sem nenhuma pétala,

nem o mínimo grelo.

 

Logo a roseira secou,

ficaram os espinhos.

Tentou ainda reparti-los —

ninguém os quis.

 

O marido nunca a deixou —

esperava por primaveras

escatológicas,

com rosas que cada consciência

terá florescido em si.

 

O esposo transmudou

as rosas que lhe negara

no desejo alumbrado

de rosas que nunca morrem,

nem são jamais de ninguém —

pela felicidade

de quem já não as precisa.

LA 00/09

 

 

 

 

Tal Como Sempre

 

Negreiros e caravelas

estão ali na barra,

dentro da nossa memória —

caravelas e negreiros.

Urros, gritos, vivas... Ouves?

São os gritos de festa

dos negreiros e caravelas —

esses tais, passado tanto tempo,

aprenderam que em primeiro lugar

estão os prazeres da carne,

do adiamento, da negligência,

o sempre para depois —

para o hoje só esbórnia,

a requintada safadeza.

O trabalho? Para ontem.

 

Os Colombos e os Cabrais

não são mais aqueles —

pau de primeira,

isto é: carvalho

nas naves deles.

 

Negreiros e caravelas

cruzam os mares

em silêncios modernos:

muito furunhamento,

muita pinxotação:

tal como sempre.

LA 00/09

 

 

 

 

O Que Há Sob Esta Máscara...

 

O que há sob esta máscara será

eu estar sempre outro ao retirá-la —

por isso eu a carrego nessa mala...

para fingir que nada afim nos há.

 

Fingimos um aqui e outro lá...

Assim, se um dia alguém de mim tirá-la

e tiver jeito para desvirá-la —

há de ver-nos um só: de lá e de cá.

 

De tal maneira nos entranharemos,

máscara e rosto de tal modo nos seremos,

que de nós sobrará só a unidade.

 

E nessa bela inconsutilidade —

ela/eu, eu/ela: juntos nos iremos

para os lados da nossa identidade.

LA 00/09

 

 

 

 

Que Bruxuleio É Aquele...

 

Que bruxuleio é aquele sobre as vagas?...

Serão os sonhos-dons de algum marujo

que, bêbado de rum e de santelmo,

conversou anjos de fazer inveja?

 

Serão os eus fantasmas que restaram,

andando sobre as águas e colhendo

( cada um com uma cesta sob o braço )

estrelas, astros, frutos de luar?

 

Que bruxuleio é aquele que vem vindo

com os pés florescendo portos fartos

de pernas, seios, ventres, vinho, amores?

 

Que corpos bruxuleantes são aqueles,

impregnados do brilho de ardentias

e do sonho de todos os marujos?

LA 00/09

 

 

 

 

Pelo Lado De Cá...

 

Pelo lado de cá era o jardim,

onde eu tinha comido aquele fruto...

Já o lado de lá não tinha o astuto

enrodilhar por um só não ou sim.

 

Mas mesmo discernindo-os, mesmo assim,

não me quis arriscar com o contributo

que a intuição nos desdobra... e, resoluto,

fui pela margem interior de mim.

 

Confesso que em chegando tive acesso

ao Grande Arquivo, e sem aquele preço

que nos dizem se paga ao consultá-lo...

 

Vi que eu era o caminho e o caminhante

( pois que existia só em eu tocá-lo...) —

e que a via é um fluir do viandante...

LA 00/09

 

 

 

 

Onde O Rosto Da Amiga...

 

Onde o rosto da amiga, olhos de rosas

chorando o despudor da luz despida?

O mar é sons de formas calorosas

pelo estio da carne renascida.

 

As cadeiras vazias e saudosas

nas varandas caladas. Onde a vida

que gargalhava coisas tão gostosas

naquela gente há pouco... reunida?

 

Os fantasmas que andam pela casa,

as lembranças que vivem por nós dentro

são sonhos só, frustrados ou vividos.

 

E teimam em doer, são doloridos

até que os convoquemos para o centro —

como a aceitar que a vida é mesmo asa.

LA 00/09

 

 

 

 

Setembro Em Sol, Azul...

 

Setembro em sol, azul e verde. O vento

faz fervilhar as folhas em lufadas

que correm pelo verde abrindo estradas

de luz em víride tremulamento...

 

Setembro traz de volta o sentimento

de uma vida em pujanças renovadas —

cores-luzes-calores em revoadas

de contos-cantos: charme-sonhamento...

 

Setembro nidifica, e ensaia o canto...

O sabiá capricha no acalanto...

e a vida é um bronzeado de libido.

 

Setembro vem dizer aos corações

que há muito sonho para ser vivido —

transformado em prazeres e canções.

LA 00/09

 

 

 

 

Pois É

 

Levante a mão esquerda

quem já segurou cabra.

Todos?!?

É bem por isso

que os sabichudos andam fartos:

bebem o leite,

comem o queijo,

a ricota ( que é diet ),

lambem a manteiga —

e todos os et cetera.

E vocês?

Vocês ficam com os berros.

...........................................................................

E por que foi, seu Dito,

que o senhor nos mandou

erguer a mão esquerda?

    Porque é a mão contramão.

LA 00/09

 

 

 

 

O Olhar Daquela Estranha...

 

O olhar daquela estranha Beatriz

sempre finge me ver na contramão.

Um dia ando de fasto, e a desfeliz

vai ficar com o olhar na minha mão...

 

Quem sabe, afoito, eu lhe pergunte, então,

por que é que traz aquela flor de lis

( sempre em surrealista floração )

entre o meu coração e seu nariz...

 

Talvez crie coragem, e pergunte

o que é que tem a ver um transeunte

com seus sapatos temperamentais...

 

Também lhe peço não pensar jamais

que dois olhares nunca poderiam

dizer-se o que mil olhos se diriam.

LA 00/09

 

 

 

Quem Sabe Um Dia Pego...

 

Quem sabe um dia pego uma carona

e vou te visitar, amor, na lua.

Ali te vejo em corpo e alma ( que a tua

pessoa esteja ) e o ardor te venha à tona.

 

Diligente, me mostras toda a zona

onde os velhos amantes têm a sua

vinha de sonhos e a inconsciência nua

e algo crua de alguém que se apaixona.

 

Então, Berene, ambos satisfeitos,

fazes-me trabalhar-te os feros peitos:

lavo-os, engraxo, encero: deixo-os prontos

 

para a hora de contar-te os belos contos

que aprendi com um velho monge lama...

Então, amor, a gente quebra a cama.

LA 00/09

 

 

 

 

Badalados, Bem Mais ...

 

Badalados, bem mais que badalados

eram todos os filhos dos notáveis.

Nosso gosto e vingança — formidáveis —

era vê-los, nas provas, suplantados.

 

Poderiam ter bolsos recheados,

amizades e charmes desfrutáveis,

tapinhas, tratamentos invejáveis —

mas, como alunos, — sempre superados.

 

Nós, os pobres, de raiva é que estudávamos...

Era o lema: vencermos ou vencermos.

Notas mais altas não: jamais deixávamos.

 

Nossos estudos eram redobrados...

Amizade/amizade... mas perdermos?...

Não! Tínhamos de vê-los superados.

LA 00/09

 

 

 

Ouvir Aquela Música...

 

Ouvir aquela música lhe tinha

um quê a lhe calçar os frágeis pés...

Era como ter algo que lhe vinha

dizer pra não sentir-se assim tão rés...

 

Sempre a ouvia ( a vender, madrugadinha,

sua verdura...) A música, de viés,

lhe vertebrava o dom que lhe mantinha

a força e os ais de ser menos fiéis...

 

Tinha-lhe o dom de percutir-lhe ( nele ) a nota

daquela sinfonia inacabada

que trazemos em nós, peça imortal...

 

Tal sentimento forte e musical

era-lhe aquele sonho: o sonho bom que brota,

transcende o tempo, e faz a vida suportável.

LA 00/09

 

 

 

 

Canção De Ser

 

O que não era

não foi

nem pode ser —

por muito que quiséssemos

tivesse sido.

Um ser não sendo:

era e não foi —

porque só fora

por espelho de ser.

 

E a vida é,

ou está sendo

entre o que fora

e o que quiséramos

fosse

não estivesse sendo

o que é.

 

Não foi

nem pode ser

o que não era

nem nunca fora.

 

Ó Tu, que és Pai,

dá-nos a graça

de não querer

que nada seja —

a não ser o que era

que devera ter sido

bem a tempo de o sermos.

 

O que não era

não foi

nem pode ser:

porque não era

em sonho ser.

 

Que bom, Maria:

não me serias

o que sonhei —

assim só foste

o que não era:

aquela hera

que não plantei.

LA 00/09

 

 

Tchau/Tchau

 

Se alguém, Glorinha,

lhe perguntar por mim —

diga que desencarnei

e fui cremado.

E me perdoe

( peça que me perdoe )

por ter sido desigual.

 

Eu não podia, Glorinha,

me permitir o mal

de ser ainda mais banal.

 

Se alguém, Glorinha,

lhe perguntar

do que foi que morri —

diga, sem hesitar,

que decerto morri

de tudo o que não vivi.

E que só levo saudades

do bem-te-vi —

que pelo menos me via,

e nunca me pedia

que eu me mudasse

a bel-prazer de seu ver.

LA 00/09

 

 

 

Milagre

 

Araram, gradearam, adubaram,

não a terra, —

mas a cabeça dos homens,

e aí plantaram

a semente do medo.

Está plantada

a cultura do medo,

e o bom desse cultivo

é que sua colheita

acontece todo dia.

Isso não deixa

de ser um milagre

do mundial Capetalismo —

com sua síndrome dos frutos

do pânico desempregatício

( ou subempregatício ).

 

Os dessa terra

( que tinha paus cor de brasa )

querem deixar milhões de milhões

pela rua do Desemprego —

e — riam — não querem

ser estripados.

LA 00/09

 

 

 

Olha Depressa: O Esperto...

 

Olha depressa: o esperto rastro verde

do canto das maitacas... longe, longe...

Verde/verde... que agora já se perde

como um som a ondular de um mantra monge...

 

Longe... pra vê-lo a gente tem que ver de

pescoço tão erguido que confrange...

E o bando roça o ar como um alfanje

lambendo a grama que no ar se perde...

 

Só a lembrança-folhas do seu canto...

do seu vôo farfalhando além do monte...

do seu verde palrar em acalanto...

 

A esmeralda de suas glaucas chalras,

o verde-longe de revoadas palras

no silêncio esverdeado do horizonte...

LA 00/10

 

 

 

 

É Preciso Esquecer...

 

É preciso esquecer o esquecimento

e ficar esquecendo no esquecido.

Inventar outra estrada, um outro alento

por um caminho sempre renascido.

 

É preciso calar o pensamento

que ousou lembrar o que já era olvido:

endereçá-lo para um outro intento,

ensiná-lo a viver o não-vivido.

 

É preciso investir em pensamentos

permeados dos mais claros sentimentos:

querer-fazer-ousar, jamais a esmo.

 

É preciso deixar toda agonia

depositada ao pé de cada dia,

e acordar renascido de si mesmo.

LA 00/10

 

 

 

 

Os Melhores Poemas...

 

Os melhores poemas vêm do nada

soprados pelo tudo da criação:

instantes de uma luz inseminada

lá nas entranhas de alma-coração.

 

A sua gestação é iluminada

por uma luz diversa da razão —

um dom ou graça supra-realizada

com os sais do sonho e o lume da intuição.

 

Alguma coisa assim como haver sol

incidindo no núcleo da semente

insalivada por um si bemol...

 

Algo assim como um grito ( interiormente )

a convidar a vil mortalidade

a assumir sua sempiternidade.

LA 00/10

 

 

 

 

Ah, Minha Santa Clara...

 

Ah, minha Santa Clara, se eu te crera,

te pedira, não tanta claridade,

mas só um pouco de felicidade —

não só pra mim: também praquela Vera,

 

que sempre foi amiga de verdade —

sabe fazer do inverno primavera...

Não sendo fiel, ao menos é sincera:

pede paciência, calma: um dia há de...

 

Não só por Vera, ó Santa, mas por Ana,

Virgínia, Débora e também Lolita —

esta, vizinha, e sempre à mão, e humana.

 

Não só por essas, minha Santa, te rogara,

mas por outra qualquer ( sendo bonita ) —

qualquer uma que — amando — se faz rara.

LA 00/10

 

 

 

Construiu A Torre, A Torre...

 

Construiu a torre, a torre de marfim.

O vento a derrubou. Construiu de novo

( dizem que a fez com o dindim do povo

que ficou a bolinhos de aipim ).

 

Construiu uma escola ( no invisível )

para estudos ocultos: só o vigário

a via... Fê-la com o metal do erário —

o povo roeu correntes... Foi incrível...

 

Construiu as caixas d’água da cidade

( que não dispunha de eletricidade )

no vale. O povo tinha que baldear...

 

Construiu um hospital esplendoroso

para cachorros... Coisa de ladrar...

O povo amou: viu nele um piedoso.

LA 00/10

 

 

 

Se Se Reunissem Todas...

 

Se se reunissem todas as trepantes,

tenha certeza: faltariam árvores.

É que todas viraram degustantes

daquilo por que uivavam nossos Álvares...

 

Tomaram um tal gosto pela arte,

que a praticam em todas as idades,

quer por esporte ou credo, ramo e à parte —

com chique-chiques e ais de já saudades...

 

Tempos e modos ( muitos inventados ) —

usados e abusados: conjugados

e rigorosamente pinxotados.

 

Coaxam xotas, xandangas chupam mangas...

Gluglus e cacarejos: cios-zangas...

E voam penas de perus e frangas.

LA 00/10

 

 

 

Dize, Pois, À Crioula...

 

Dize, pois, à crioula Inês que a espero,

domingo à tarde, pr’uma bacalhoada,

com porto e tudo, e a mesa já arrumada,

sem dengues nem ai-ai, sem lero-lero.

 

Dize que a sobremesa vem do vero

pudim da Beira, à moda fatiada,

com calda cor de sua pele, e em cada

dobra, o recheio ao rum: cruel esmero...

 

E não é cá que esse repasto acaba:

tenho um licor da cor da sua boca —

uma relíquia de jabuticaba...

 

E para completar, dize à senhora

que amo banhos... jamais durmo de touca...

e lhe tenho esse amor da cor da amora.

LA 00/10

 

 

 

Ser Uma Ilha Ou Ser...

 

Ser uma ilha ou ser uma península...

Que sou, ou: que será que penso ser?

Serei maduro para ver-me ínsula?

Ser península: é isso conviver?

 

Ser quase ou ser a coisa é menos mal —

se a coisa é doença e a vejo como tal,

se o quase é uma visão de relação,

e, de solo, me faz interação.

 

Ilha ou península: maior a diferença

quando ambas forem mais morais que materiais —

serão tal como a pedra e o ser que pensa.

 

Ilha: bloqueios entre o meu e o outro...

Península: um cavalgar o potro

por trilhas ( em nós mesmos ) sociais.

LA 00/10

 

 

 

 

Sempre Na Minha Boca...

 

 Na minha boca, sempre aquele gosto

do fruto da árvore do conhecer —

que me fez despenhar até este posto

que agora, sim, terei de transcender.

 

De volta quer-me a vida para casa:

há que ir além da história do Jardim —

e para frente, e não de forma rasa:

vida é mergulho e sempre-avante-sim.

 

Seja o gosto daquele fruto a força

que nos leva por trilhas interiores

a reconstruir aquela casa nossa...

 

E com o sabor da volta: caminharmos

em busca da vereda dos condores

que ensinarão a nos ultrapassarmos.

LA 00/10

 

 

 

 

Vai Saber De Que Porto...

 

Vai saber de que porto nós viemos,

de que sonhos de Deus por nós fluindo:

a amplexar o findo com o infindo,

a harmonizar os ventos com os remos...

 

Vai saber de que ponto ( em nós subindo )

nos vamos escalando até nos vermos

idas e vindas em começos-termos —

embarcações chegando, outras saindo...

 

Vai saber em que tom nos percutiram —

soprados nesse barro constelado

e aberto em flor nos ecos que se abriram...

 

Vai saber de que casa nós partimos —

lembrança em nós de um sonho re-sonhado

por veredas de Deus que em nós seguimos.

LA 00/10

 

 

 

Noite Dessas, Mandei...

 

Noite dessas, mandei os meus sapatos

bater à tua porta. Não estavas.

Noites compridas, dias longos, chatos.

Tenho curtido solidão das bravas.

 

Por outro lado, saem mais baratos

os dias sós. A convivência escava

buracos: relações-estelionatos...

Um certo odor que nem o tempo lava.

 

Das flores que te dei só não murcharam

aquelas que as floristas não mandaram.

O mesmo aconteceu com nosso afeto...

 

Noite dessas, te envio os dois... ( tiro-os da caixa ).

Quem sabe, então, estás. Serei discreto —

mandarei os de sola de borracha.

LA 00/10

 

 

 

Se Não Lembras...

 

Se não lembras,

dá graças à Deus.

O que terias

que fosse tanto?

Preferimos o teu riso,

o teu pranto

à tua sabença.

Vem ser bobo com a gente.

 

Preferimos teu humor,

teu riso e gargalhada —

põe teu nariz vermelho,

teus sapatos enormes —

e vem ser gente como a gente.

................................................................

Já te lembras

do que havias te esquecido?

Então conta uma história

de papagaio,

outra de ET —

dá um grito bem humano,

pega a tua pessoa

e leva-a embora.

Vai ser gente com outra gente.

O mundo precisa urgente

de gente.

LA 00/10

 

 

 

 

O Homem Tem Que Transitar...

 

O homem tem que transitar

do macro para o micro,

de sua época para longes dias.

Subir, descer pela escada

( em si ) do tempo.

Tempo e ser serão sempre indissociáveis,

numa alegria cosmopolita

respingada de erotismo, perda-ganho,

encontro-desencontro, guerra e paz, amor e morte.

O homem é o espectro de sua própria estrada,

e não deve assustar-se consigo mesmo —

menos ainda acostumar-se,

mimar-se com o que é.

O homem tem que transitar-se

e, em transitando-se, — ultrapassar-se.

LA 00/10

 

 

 

Quando Ambos Percebemos...

 

Quando ambos percebemos

que nunca nos havíamos amado —

o amor acabou.

Não aquele que nunca houvera,

mas o que deveria ter havido.

Nosso amor acabou no virtual

de haver o irreal

de muitas realidades.

E houve palmas, elogios, muitos urras...

Houve até quem declamasse um poema

que falava do início de um amor —

tudo para consolar

nosso amor que findava

sem ter sido.

 

Os amigos são sempre bons

e amáveis —

principalmente quando estamos perdendo.

Mas nem por isso é bom viver sem eles:

são divertidos e necessários

para vermos a parte má de nós,

a mesma que eles pensam não ter.

LA 00/10

 

 

 

O Menos É Amigo...

 

O menos é amigo do menos,

o mais é amigo do mais.

Afins geram afins —

e se consolam.

Quem quiser mudar a sua vida

terá de usar essa aventura

com um coração decidido,

um espírito reto

e uma vontade que não quebra à toa.

O destino é sempre um quasímodo

sob o peso de necessidades:

o saber-querer-ousar

o vence: devolve-nos

para as varandas da Providência.

LA 00/10

 

 

 

Homem Que Passa Olhando...

 

Homem que passa olhando

como se olhar fosse tão precioso,

que o tempo de fazê-lo é a só riqueza —

um tempo de testemunhar e caminhar(-se)

e de guardar a alma das coisas

bem lá no fundo de sonhá-las.

 

Homem que passa olhando com cuidado

para ouvir atentamente o que lhe contam as pedras

com seu musgos, bromélias e muitas asas

a dizer que se dão esverdeadamente bem

com a sua aparente dureza de coração.

 

Homem que passa olhando,

você já teve um irmão?

Faz tempo isso?

E seus olhos o amaram

assim como sabem amar

tudo o que vêem?

E esse irmão era filho de sua mãe,

ou era uma pessoa igual a muitas?

 

Sabe, homem, eu não sei amar

como você. Tive um amor bonito

como poder contar com a graça de Deus.

Mas eu não soube olhá-lo

como você, que vê em tudo

a beleza e a verdade que tudo tem.

E ele definhou como uma flor

colhida com desprezo...

 Eu não soube amar meu coração,

e ele não soube olhar esse amor.

 

Homem que passa olhando,

como se recriasse o que vê

no seu olhar —

no seu olhar que não vê

senão a graça de poder olhar

a verdade e a beleza

que cada coisa tem.

LA 00/10

 

 

 

Uma Época Difícil

 

Uma época difícil.

A angústia comprime as vísceras

de cada dia.

Viver anda bicho feio.

Muito feio, Senhor.

Se cá vivesses,

e fosses homem —

não ias gostar não, meu Pai.

A gente tem ordenhado as pedras,

e até elas, que eram mansas,

andam dando agora coices.

E o pior, Senhor:

não se tem outra coisa,

senão viver.

 

Tá feio:

até teus anjos ( ou muitos deles )

estão falando sozinhos...

Frangas, frangos e outros galináceos

liberaram geral e amplo —

estão numa demo/cracia

das mais plumosas...

Certos pernaltas e bicudos

é que adoraram isso:

foi um modo de se tornarem

em nômades do amor.

 

Ah, se estivesses aqui,

e fosses homem —

ias, no mínimo, meu Pai,

achar tudo muito gozado...

Em todo caso,

se viver é uma droga —

morrer, meu Deus,

nunca foi negócio limpo.

Fazer o que, Senhor,

a não ser... ?

E por falar nisso,

bem que podias, meu Pai,

( não é Teu tudo quanto existe? )

me mandar uma mulher

que morda a minha orelha,

me julgue interessante

e até me cirza as meias.

 

Por hoje não te amolo mais,

meu Pai.

Um beijo.

LA 00/10

 

 

 

Quando Você Crê Numa Coisa...

 

Quando você crê numa coisa

ela é cheia de graça e beleza —

mesmo não existindo.

( Dos amores que você teve

qual deles foi o mais belo? )

Quando cremos numa coisa,

nós fazemos que ela exista.

Nosso crer

é um construtor de realidades.

Crer em algo

é está-lo construindo —

é no mínimo apará-lo

com as mãos do possível.

LA 00/10

 

 

O Tempo Passa Pelos...

 

O Tempo passa pelos nossos poros

e vai nos transformando em seu passar —

vai transmudando nosso chumbo em ouro,

vai musicando o nosso marulhar.

 

Lança mão do biológico tesouro —

transmuda-lhe a matéria: a energizar

as jornadas da vida, até o escoadouro

final: em seu extremo renovar.

 

Tempo é suporte e filtro... e ainda templo

em seus momentos-zero: em Eu-comtemplo

( em unidade-ser ) a Face em mim.

 

Tempo é matéria em transe: remoagem

de modos-ser para a Consciência-Fim...

Sem o tempo não pode haver a viagem.

LA 00/10

 

 

 

O Humor, Não Raro, É Pouco

 

O humor, não raro, é pouco.

A tinta do riso

por vezes escorre —

vira gargalhada.

Se também esta escorre,

então, já não há como

evitar a ironia.

O saldo? Uma dor,

nem morna nem fria —

chamada melancolia:

a mesma

das dálias amarelas,

e das varandas

dos sonhos invertebrados

dos velhos casarões.

Gritos sem cordas vocais...

Mãos que já não seguram...

Lábios que já não beijam,

nem já amaldiçoam...

Nem jamais poderão

pedir perdão.

Há um tempo

em que já não dá tempo.

LA 00/10

 

 

 

Ao Conhecer Rosinha...

 

Ao conhecer Rosinha,

sentiu coçarem as vísceras...

Respirou quente,

umedeceu-se.

Teve vontade

de fazer amor com ela.

Fez. Tiveram nove filhos.

LA 00/10

 

 

 

A Ficção É Um Modo...

 

A ficção é um modo de fazer

fingir-se a realidade mais real,

enquanto aquela molda em barro-ser

o sonho que esta, um dia, faz factual.

 

Claro que no fingir há o conhecer

do quanto a realidade é virtual —

do quanto o fingimento anda a tecer

as mil faces de vento do real.

 

Há uma estrada sobre a qual andamos

e há veredas em nós que palmilhamos

entre a argila moldar-se e endurecer...

 

Há passos sobre o chão e sobre alfombras:

diferentes somente em modos-ser...

A luz é bela porque finge as sombras.

LA 00/10

 

 

 

 

Há Em Tudo E Por Tudo...

 

Há em tudo e por tudo uma unidade:

na jornada do herói em luta insana,

na mais patética miséria humana —

uma unidade na diversidade.

 

E essa entrosagem da pluralidade

com o singular é que talvez engana —

mostrando nula a hominal vontade

do uno transe com o que foi e o que há de...

 

Por outro lado, há aqueles que cansaram,

e todo o ouro e gemas entregaram

nas mãos do não-tem-jeito... e da abulia...

 

A esses recomendo que procurem

( em si ) a Mão... e Nela se segurem.

E assumam: não há vida sem porfia.

LA 00/10

 

 

 

Desconstrução

 

Cada ser ou cada intento

que nos esquece

desconstrói-nos em alguns tijolos

e nos constrói a morte:

sim, somos desconstruídos

de esquecimento em esquecimento.

O outro, o fato, a coisa por que lutamos

são testemunhas de que vivemos —

cada um desses que morre

faz desabar o esquecimento

que nos vai desmanchando

para a morte —

ou para aquela realidade

em que prescindimos do corpo.

..........................................................................

Por outro lado, quando se diz:

Fulano era bom,

era guarda fulano

numa das prateleiras do tempo...

e isso o faz universal —

terrivelmente universal.

LA 00/10

 

 

 

O Caso Elisa

 

A mãe de Elisa

os bandidos levaram como refém

( pensando que a pobre tivesse algum ).

O pai a polícia ( por engano )

levou.

Já Elisa era levada,

todos os dias,

da serra ao bosque —

por um bando de borboletas...

Até que um dia

levaram-na tão alto e longe,

que o povo diz que fora arrebatada...

Não pelos anjos do Senhor,

mas pelas borboletas.

Não para o céu —

mas para a casa dos pais de Elisa

( toda azul de tão lá em cima, na serra ),

para a casa dos pais de Elisa —

que foi feliz com eles:

pois passaram a lhe dar banhos

cedo, à tarde e à noite

para livrá-la das borboletas.

LA 00/10

 

 

 

Olhos Cor De Jabuticaba...

 

Olhos cor de jabuticaba. Dá

vontade de mordê-los. Serão doces?

Estalarão na boca? Inda haverá

aquele mel que acalma secas-tosses?

 

Olhos cor de marmelo quando está

pretinho de maduro: ao perto, dóceis,

ao longe, dúbios como o manacá —

que olha matreiro em suas duas cores...

 

Um bom investimento são seus olhos —

vão bem com o bege, o azul, com os refolhos

dos bordados e sonhos fins-de-século...

 

Olhos sentimentais da cor do ônix,

belos, girando espertos em seus cones

como, entre a noite e a lua, espia o éculo...

LA 00/10

 

 

 

Quem Pisou Os Canteiros...

 

Quem pisou os canteiros, raras rosas

do jardim tão zelado anos e anos?

Quem teve a fúria e o depredar insanos?

Que botinas pisaram tão graciosas

 

flores-geometrias? E, danosas,

esquecidas dos sonhos tão humanos

que disfarçavam os fiéis enganos —

ousaram pisoteá-las tão mimosas?

 

Que botinas pisaram na garganta

desse jardim, do sonho aí plantado

com tanto empenho, com esperança tanta?

 

Que pés pisaram sujos sobre o branco

de calmas açucenas?... Sobre o alado

de tenros sonhos?... Sobre aquele riso franco?...

LA 00/10

 

 

 

A Vida? Os Passos De Um Processo...

 

A vida? Os passos de um processo. A morte?

Um fim num fim. Viver-morrer: empresa

que a existência montou bem lá ao Norte

de conferir à pedra e à luz leveza —

 

sempre uma gama em outra e em outro porte,

na panconscienciação e madureza

de uma outra sementeira que transporte

o que é a outra verdade, a outra beleza...

 

A vida? Um autometabolizar-se —

num claro e consciente respirar-se

cujo corpo é o Universo a se reconstruir.

 

E o Ser procura a sua identidade

no infinitar-se da Finalidade

que se abre pelas mãos do devenir.

LA 00/10

 

 

 

Misericórdia Quero...

 

Misericórdia quero, ó Pai, e a Tua graça,

e que me dês também um coração

misericordioso. Ó Deus, e que se faça

a Tua paz em toda a criação.

 

Letra por letra, ó Verbo, que me passa,

passa a levar-me em sua sucessão...

Onde agarrar-me, ó Pai, se é só fumaça?

Onde pisar, senão sobre carvão?

 

E no entanto, Senhor, a realidade

finge tão lúcida estabilidade,

que até fora loucura não senti-la!...

 

Dá-nos então, ó Pai, a fé tranqüila

de nos vermos serenos na tremura

e nos crermos sadios na loucura.

LA 00/10

 

 

 

O Resto Que...

 

Senhor,

me dá um amor fin-de-século

para eu amá-lo no Caribe,

e de certo,

porque sou filho do deserto,

comendo o melhor quibe

e degustando importados.

Um amor dos requintados —

com divinos linguotes

e labiações libídicas

do mais alto quilate:

bebendo, aos potes,

de chafarizes

os mais felizes.

Amor de orgasmos

os mais sofisticados:

vidrados, pasmos —

cheios de tremeliques,

liqueliques, chiquechiques —

com recuadas e botes,

fofuras de chamalotes —

com uivos de mil cocotes

orgasmando chiliques

cavalgados de fricotes

e marulhados motes.

 

Um amor

de neomilionário —

de repente brotado

dos tonéis de carvalho

da Microsoft & Softs

para as lanchas conversíveis

com dois motores de helicópteros

    sobressalentes —

para passeios olímpicos.

 

Um amor liberado

de quaisqueríssimas culpas

e nenhunzíssimo pecado —

graças às dialéticas mandingagens

dos tigrões psacanalistas —

pra quem sentimentos de culpa

são coisas de babaca,

para quem o pecado

só o fora

quando não fosse.

 

Dá-me um vidão, meu Pai,

( porque eu mereço-o —

como alto diz a moça

dos comerciais caríssimos )

e o resto que se foda.

LA 00/10

 

 

 

 

 

 

Livranças

 

Se bem dosada a ironia,

nem a razão nem a fé

imporão os seus chiliques —

conquanto, às vezes, chiques.

 

Também o humor e o riso

nos livram dos fricotes

( e botes )

culturais.

 

A gargalhada vai mais longe:

preserva-nos da louca sensatez —

que adora vinho francês...

 

No mais,

dá pra agüentar o teatro

( mesmo a seco ) —

se a peça for de um só ato.

Sendo comédia,

que não seja divina.

LA 00/10

 

 

 

Pleno Vazio

 

Sujo de alma e coração,

é que me chego a Ti.

Não para que me limpes,

mas que eu não tenha nojo

da sujidade humana.

Não fique a chamar de impuro,

ou puro

isto ou aquilo,

esse ou aquele.

O que pode haver de puro

num indivíduo

que foi feito de barro,

e não demora será pó

copulado pelo vento?

Se para o puro tudo é puro,

minha impureza então me basta:

como a minha fraqueza,

me fará conhecer a pureza

e a fortaleza,

toda vez que me sentir

fraco ou impuro.

‘Misericódia queres,

e não o sacrifício.’

Que assim seja,

e isso me bastará —

até que vejas

que já não é assim bastante,

e então me dês uma porção dobrada

do Teu Espírito —

e andarei sobre as minhas águas,

terei visões e sonhos

que me façam sentir

nas varandas da Tua Casa.

Sim, Tua graça me basta —

porque a Tua glória se realiza

na fraqueza da carne

e Teu Espírito me fala

quando em mim cessam

todas as vozes.

LA 00/10

 

 

 

 

Que Importa Se O Que Me Dás

 

Que importa se o que me dás

é ouro ou é ogó?

Se és princesa em Alcatraz

ou uma índia bororó?

Importa que não me fira

a inverdade que a mentira

me diz serena e altaneira

ser verdade verdadeira.

Importa que todo o ouro

que dizes ter teu amor

seja apenas um tesouro

enterrado lá onde for —

lá onde o verbo achar

o olhar não saiba conjugar.

Ser feliz por engano

é o que há de mais humano.

LA 00/10

 

 

 

 

O Diabo É Que O Diabo

 

O diabo é que o diabo

gosta de quem não acredita nele.

E faz o diabo com quem não sabe

que embora ele leve a luz: Lúcifer,

ele a porta, mas não a é:

apenas se envaideceu com a luz que carregava,

sem jamais desconfiar

que ela não era ele: sempre existiu

bem antes dele, e foi feita

por Aquele que tudo fez ( inclusive a ele, o diabo ):

Ele, o Glorioso, o Magnificente: Deus.

“O diabo ruge em derredor de vós

para vos devorar.” Quem disse isso

sabia do que falava.

Quando vemos o diabo...

ele então desaparece:

foge de nós —

sem força e sem poder,

porque todo o poder

foi conferido ao Filho.

E estando nós com Ele,

já teremos vencido,

não o diabo —

mas a nós mesmos.

LA 00/10

 

 

 

Além, Bem Além

 

As delícias do Capetalismo

Vídeo-Financeiro ( olé! )

traçam nova cartografia do além —

o desejo de gozo e fruição

busca abrir brechas teológicas

para dar as costas

a tudo o que constranja

o paraíso da luxúria.

O peso da consciência

a psicanália tira —

com uns truques em si

tão e tão costuradinhos,

que arrivista algum sentirá

a culpa de espadanar-se

nas delícias de viver

acima do bem e do mal.

LA 00/10