DIVÃ
Laerte Antonio
Aí, Doutor, Em Vez...
Aí, doutor, em vez de me matar,
me masturbei pensando na piapara
que peguei na represa, coisa rara,
da Graminha, por Glória me lembrar...
Por me lembrar-lhe as pernas a bordar
suas saias de altura tão avara
que bem mais parecia uma tiara
a lhe abraçar as pernas, a voltear...
Sim, a piapara e as pernas da Glorinha
eram lisas, tão lisas feito a minha
vontade de encilhá-las e montá-las.
E cavalgá-las, cavalgá-las, cavalgá-las
a vida inteira até onde não sei —
mas cavalgá-las como herói ou rei.
LA 12/008
Sim, O Momento, Amiga...
Sim, o momento, amiga, é como um vinho
que deve ser bebido pelo avesso
pra não dar gastroenças... e o ruinzinho
das pernas, que é tropeço após tropeço.
Bem cá pra nós: o mundo já acabou
e nem se viu. Pensaram fosse eclipse,
mas era fim-final de apocalipse,
de modo que hoje o sonho é o que restou.
O sonho que não foi (você me entende),
de modo que a lhe ver a alma ou vulto,
meu querer ressonhá-lo não ofende.
Quem se afastou daquela bela criança,
quem a trocou por um brinquedo adulto
já não vai de mão dada com a esperança.
LA 12/008
Suntuoso O Divã...
Suntuoso o divã do dr. Freud.
Vai lá no Google e dá uma olhada, Nina.
O cara ali se deita e, bem moloide,
deixa refluir a antiga dopamina...
Erótico o divã do dr. Freud.
Nessa molemolência a alma se solta
e em meandros de si mesma dá a volta
saindo-entrando em corredor conoide...
Um rubro deleitoso nas estampas
a deixar aflorar risonhas guampas
em torno da cabeça em áurea bruma.
Tu voarias, Nina, em cama tersa,
sobre as estampas de um tapete persa
sem morrer de vontade de dar uma?
LA 01/009
Alinhavei a tua...
Alinhavei a tua femineza
ao meu senti-la em claro sentimento
de trazê-la comigo na tristeza
ou na alegria: um só encantamento.
E pronunciei teu nome com clareza
ao céu, à terra, ao mar, à luz, ao vento...
e colho no eco a música e a beleza
de te lembrar em alma-pensamento.
Sempre atravesso o rio ao te pensar
na outra margem, sim: margem direita —
que eis já floresce só por te lembrar.
De sorte que a distância mais se estreita
quanto mais te aconchego em minha mente —
de modo a te sentir fisicamente.
LA 12/008
Tua Saudade Dói...
Tua saudade dói gostosamente
entre os desvãos do tempo a te lembrar —
um modo de fruir pelo presente
o que já não teria mais lugar.
Um modo de reorganizar na mente
o que é perfume e sonhos pelo ar...
Labaredas de um crepitar dolente...
rubras taças florindo a tilintar.
Calmas varandas num tinir hialino —
o vento nos tocava violino
com as folhas do outono a dançar.
Tua saudade dói, mas tão gostosa,
que meus dedos florescem, minha Rosa,
a canção de um eterno desfolhar.
LA 12/008
O Amor É Bem Igual...
O amor é bem igual ao universo —
um finito a expandir-se em infinito.
Sinfonia formada por um grito,
não cabe em nada e canta num só verso.
Duro como um pedaço de granito,
maleável feito um ramo submerso...
Aqui humano ou santo, ali perverso,
agora abençoado e já maldito.
É cegueira que enxerga e vê, é som
que, sussurrado, é arrepiador no ouvido,
como um frio debaixo do edredom...
E desde sempre o amor, esse bandido
e herói, mantém seu velho e raro dom —
tanto mais belo quanto mais vivido.
LA 01/009
... e Aí, Doutor, Eu Disse...
... e aí, doutor, eu disse ao pé de amora
que o amor por vezes tinha a sua cor,
se bem (não muito raro) ele descora
e parece entre pálido e incolor.
E, é claro, se descora, amor agora
já não pode manter o seu sabor
que o sabiá, a passarada adora
bicar, mesmo se um tanto verde for.
Quanto à amoreira, embora entediada,
sorria para a brisa... Ali calada,
entre boboca e jeito de sabida.
E de maneira então nada atrevida,
à amoreira pedi os seus pudicos
frutos, e degustei seus seios-bicos.
LA 01/009
Beleza Não Se Põe...
Beleza não se põe na mesa, eu sei,
mas que ajuda a comer, ah, quanto ajuda!
Sobretudo, pastor, se for peituda
e o tronco for uma árvore de lei.
Beleza é bom tempero, bom dendém,
sem ela, toda carne (Deus acuda!)
traz os cascos, os chifres e é peluda —
feito uma prece com um falso amém.
A feiura, pastor, como a mentira
tem perna curta e, não bastasse, torta —
mesmo com reza a coisa não conforta.
O céu é da águia, o chão da corruíra.
Não só a beleza é gêmea da verdade,
como as duas são primas da vaidade!
LA 01/009
Há Os Poetas...
Há os poetas trevosos: Beaudelaire,
cheirando a criptas, e os larvais: Augusto,
chorando a vida entre o pranto e o susto,
diante da carne podre e o bem-me-quer.
E há outros qual Khayyham (não um qualquer!),
roxos arrulhos nos beirais do tempo,
pregando o gozo-agora do momento —
o antes do pó da rosa e da mulher.
Chorando as ilusões ao vento, ao ar,
não deixam esses vates dos destroços
de as delícias do efêmero gozar.
Ainda bem, amor, que estes meus ossos
encontraram-se em vida com os vossos —
e foi aquele alegre chocalhar.
LA 01/009
Ah! Vamos Meditar...
Ah! Vamos meditar, amor, ao lago,
com sua água toda arrepiada...
Estar aqui é preencher um vago,
e meditar é bom: não leva a nada.
Esquecermos de nós é o instante mago
a nos encher a taça nacarada.
Bebamos devagar, trago após trago,
o róseo do momento, minha amada.
Se a vida é luz e sombras, minha amiga,
o prazer é a forma mais antiga
de dar a ela a sina mais gloriosa.
Se o dia é lindo, a noite é bem mais bela
pelo prêmio de tê-la assim nuela...
a rosa a abrir-se trêmula e orvalhosa.
LA 01/009
O Tempo, Minha Amiga...
O tempo, minha amiga, tem quebrado
nossos belos brinquedos, e rustido
nossos sonhos, deixado sem vestido
as ilusões que a vida nos tem dado.
O tempo é um realista ressentido
brincando de real irrealizado —
dá-nos o que amanhã terá roubado
a nos mentir por sobre o desmentido.
O tempo e o rato, Nina, só nos servem
quando este for cobaia e aquele hoje —
hoje em instantes que eis... autoprescrevem.
Por isso, Nina, a tal felicidade
são galas de ave enquanto a vida foge —
transas no ar já a virar saudade.
LA 01/009
Não Fale Nada, Amiga...
Não fale nada, amiga, beba vinho.
Só fale com as rosas que não sabem.
Nem queira ouvir os sonhos que não cabem
no momento, não raro bem mesquinho.
Não fale, que a palavra tem espinho
a machucar os lábios que lhe abrem
mil corredores que jamais se acabem
ou que acabam errando de caminho.
Falar desvia o fulcro que em nós pensa,
sim, por hora sejamos como a aurora
que não fala, não pensa e é tão imensa...
Só o silêncio é nobre no momento.
Sim: toda a vida, todo o cosmo, agora,
pode caber num calmo sentimento.
LA 01/009
Ah! Não Adianta, Nega...
Ah! Não adianta, Nega, não se mude
para a margem de lá, na pretensão
de ali achar bem menos solitude —
mera, mera ilusão de posição.
Sim, a face das coisas nos ilude
com o seu riso ardente de verão...
Se vamos ver, é só um pobre açude
em vez do oásis em ondulação.
O nosso ser e seu amplo deserto.
O nosso coração e seus enganos.
O mal das coisas é vê-las de perto.
Nossos sonhos a mão quase que alcança.
Os nossos erros sempre tão humanos.
Nossa ventura? Existe. Na esperança.
LA 01/009
Sim, Cultivemos Rosas...
Sim, cultivemos rosas e inventemos
belas canções cantadas no nariz.
Enfeixemos as forças que ainda temos
como a água que sai de um chafariz.
E rememos pra ilha, sim: rememos
já sentindo seu cheiro bom de anis.
Ali, bem dentro em nós, aprenderemos
um jeito de dançar e ser feliz.
A vida é essa poeira de um momento
a rodopiar, dançar, girar no ar
sendo engolida pela chuva e o vento.
Da solidão faremos belos vinhos.
E aprenderemos, Nega, a dialogar
com a vida entre a rosa e seus espinhos.
LA 01/009
O Que Os Sábios Disseram...
O que os sábios disseram não faz rir,
mas sabemos que a vida é uma risada.
O que hoje é tudo já amanhã é nada,
o hoje são as muletas do porvir.
E no entanto é preciso construir.
Erigir para a grande derrubada,
pelo tempo ou a guerra orquestrada —
com muito charme fazem explodir.
Ah! Traga o vinho do seu corpo, Nega,
e me faça esquecer o esquecimento,
antes que ressuscite e então me pega.
Bela é a beleza que nem mesmo é bela,
chamada assim por precisarmos dela —
faz-nos florir por dentro em sentimento.
LA 01/009
Quando Morrermos, Minha...
Quando morrermos, minha Nega, o mundo
a vida, o entorno, amigos, o universo,
tudo estará em si mesmo tão submerso,
que, se nos vir, será por um segundo.
Mas haverá um consolo bem profundo,
um brilho silencioso em prosa e verso —
a gente já estará no multiverso,
longe, em nosso eu-consciência em outro mundo.
Lá em outras gamas de se ser-não-ser,
entre cortinas mil de vibrações
em véus-separações de não saber.
Quem sabe em dilatadas amplidões
de nós mesmos possamos até ver
o amor de Deus em nossas sensações.
LA 01/009
Tua Beleza É Quase...
Tua beleza é quase uma blasfêmia
a incendiar-te o porte e a femineza.
Há um cheiro de amor, cheiro de fêmea
que vem do teu olhar em gentileza.
Minha libido, há tanto tempo abstêmia,
transforma-se num rio em correnteza.
E nesse fogo que gostoso queima,
bem devagar, degusto-te a beleza.
A chuva é suave música nos ramos.
Passa o vento a beijar-se com a vidraça...
O celular a soar... Não escutamos.
No aparador, as velas tremulando...
Nossos sapatos, calmos, esperando.
Agora o tempo é nosso, já não passa.
LA 01/009
Quando A Tarde Se Vai...
Quando a tarde se vai ou murcha a rosa
é em nós que dói esse ir e esse murchar.
E porque a vida é dura e duvidosa,
nossa vingança é de a poder gozar.
Se a vida nos for nada venturosa
basta a beleza ao menos nos fartar.
Chega essa taça, Nina, bem copiosa,
e vamos nosso vinho misturar.
Há os que vivem pensando em outra vida,
trocando os dons de cá pelos de lá —
negociam com Deus o que não sabem.
Nós não. Antes de a outra ser vivida,
vamos lambendo os méis que temos cá.
Depois, que a vida e o mundo nos desabem!
LA 01/009
Sim, Cada Dia, Amigo...
Sim, cada dia, amigo, com seu mal
e cada noite com seu terno bem.
Pelos jardins do amor a noite é zen
num delicioso sonho original.
Da árvore só comas com dendém
e suave singrarás na vertical.
Usarás pouco açúcar, pouco sal,
e manterás bem solto o teu vaivém.
Da vida não indagues nem perquiras.
Nela o sábio é em geral mais enganado —
as verdades lhe contam só mentiras.
Bebe teu vinho e planta o teu jardim,
ama as mulheres com desvelo e agrado
e caminha cantando para o fim.
LA 01/009
O Divã Freudiano...
O divã freudiano é bem mais cama
do que outra coisa, Nina. Dá uma olhada:
a coberta em xadrez mandalizada
ajuda as fantasias na destrama.
Nele a alma ressonha, e então recama
o seu Eros de flores... e, enganada,
ama se ver assim e, narcisada,
a si no outro (e não ao outro) ama.
Por um fio escarlate vai puxando
os sonhos lá de sua carapaça,
e os sonhos vão saindo ressonhando...
E tudo quanto faça e o que não faça
está ligado à sua história antiga —
são personagens de uma só intriga.
LA 01/009
Um Dia Vem A Morte...
Um dia vem a morte, minha amiga,
vem a morte e nos vende por tão pouco —
nos joga ali no seu desterro louco
onde o desdém é sua glória antiga.
Por isso, amiga, vamos dar-lhe o troco
enquanto (bela) a vida nos periga.
Achega as taças e essa dor mitiga —
antes que ela nos venda por tão pouco.
Fruamos nosso dia, minha cara,
pelo ver-respirar-amar-a-vida —
torná-la (no vivê-la) coisa rara.
Dizem que o amor é bem maior que a morte.
E tal afirmativa nos convida
a amar, amar, amar sempre mais forte.
LA 01/009
Que Vais Fazer...
Que vais fazer com tantas aflições,
senão sujar o bom, o belo de viver?
Se o nosso maior dom é não saber,
saibamos tourear as ambições.
Ontem, futuro: são assombrações,
só no hoje podemos nos mover.
E aqueles dois na mão podemos ter
se hoje gerirmos bem nossas ações.
Assim modificamos os arquivos
do passado e abrimos trilhos vivos
no futuro: pelo hoje em nossa mão.
O mais pertence a Deus, entrega a Ele.
Aliás, em sendo tudo, tudo Dele,
entrega-Lhe também tua aflição.
LA 01/009
Parece Que O Destino...
Parece que o destino existe sim.
Se Deus não joga dados, ele existe.
Parece que a vontade sempre em riste
pode mudar princípio, meio e fim.
Nem quixote, nem sancho ou serafim,
mister vermos que a vida não é um chiste —
é do lado daquele que persiste
e lhe busca um sentido, um nexo, um fim.
Claro que o humor, o riso, a gargalhada
são parte do convívio e da jornada,
mas urge um sentimento de verdade.
Um perscrutar a vida e a natureza,
estar de bem com toda a humanidade
e ter uma paixão pela beleza.
LA 01/009
Ah! Sempre Que Te Amo...
Ah! Sempre que te amo, minha Nina,
me vem a dor de não ter feito mais.
Aliás, te amar cada vez mais me ensina
que é pouco pelo muito que me atrais.
É como o vinho em taça cristalina,
ou como ver o mar de um belo cais:
gente a ir e vir vivendo a sua sina —
modos iguais em sonhos desiguais.
O amor não faz igual. É como o vento:
sempre outro, outro se faz cada momento.
O amor é são, mas vive num hospício.
E o mais é uma canção que a gente canta
no coração, sem fim e sem início —
canção que mesmo a não ter voz encanta.
LA 01/009
Devagar, Viajante...
Devagar, viajante, devagar.
A estrada é um tabuleiro de xadrez —
desvias de um buraco e cais em três.
Pena: no amor é um de cada vez.
Devagar, viajante, devagar.
Quem viaja tem muito que atentar —
senão já viu: no céu tu vais parar.
E nada troques pelo que não vês.
Devagar, viajante, devagar,
não faças duas curvas de uma vez.
Já no amor, tenta, tenta, que vai dar.
Viajante, o real não tem dublês,
e o bom de viajar é ir-voltar.
Já o amor jura a volta (mas não crês).
LA 01/009
Viver, Não Raro, Dói...
Viver, não raro, dói, e a angústia é muita,
mas se busca mostrar que não é nada —
fé, esperança, amor, vária nonada,
tornam a dor mais leve, mais fortuita.
Uns se apegam ao ouro, à roda airada —
cargos, conluios: fazem seu circuito
afim: os donos do poder oculto —
o sistema que traz a vida atada.
Mas tu, tu não precisas disso. Ama
alguém que adore psicoviajar
e tenha na alma um colibri em chamas...
Que adore rosas, vinho, a arte e a calma,
sem apostar no corpo nem na alma...
E amem-se num tesão de se fartar.
LA 01/009
Um Dia Me Acharão...
Um dia me acharão, talvez, deitado.
Virando-me, verão que não sou eu —
sim, minha máscara se dissolveu
deixando um rosto bem apaziguado.
Era só um casulo abandonado,
um sonho que a outro sonho arremeteu
e foi morar naquele outro lado
onde um rio, sem margens, corre ao léu.
E verão que não dei nenhum trabalho —
sim, terei sido leve como o orvalho:
quando me virem já não viram nada.
Já não estava lá, tal como o vento
vestido de poeira pela estrada —
fantasma a cavalgar-se nevoento.
LA 01/009
Sopraram-Me No Barro...
Sopraram-me no barro, e cá estou,
sem vocação nenhuma pra minhoca...
a não ser, Nina, fosses tu a loca
louca a abrigar a dor que me restou.
Fosses não: és as rosas, lírios ou
todas as flores do jardim que evoca
a ventura sem ciência, a voz sem boca,
a beleza de um sonho que ficou.
A vida em preto e branco sem ciência,
agora toda cores e consciência,
plantada, Nina, nessa doce argila.
Vida e morte tornaram-se um só grêmio.
A existência: bem lúcida e intranquila.
O amor: fiel engano e grande prêmio.
LA 01/009
Aí, Doutor, Quando...
Aí, doutor, quando o enfermeiro veio,
eu desvim, isto é, já dei no pé.
Queriam me internar por achar feio
fazer poemas de amor com cafuné.
Eu disse-lhes que não, que o galanteio
é tão normal como se ter chulé.
Isto é, pro pé que não se lava, creio,
e que galantear traz muito axé.
Que a poesia é o vinho dessa terra
que tem por lavrador o coração —
que bem prefere o amor, o amor à guerra.
Aí, doutor, até fui relevado —
abaixaram o tom de gozação
e arrotavam coçando-se de enfado.
LA 01/009
O Tempo, Nina...
O tempo, Nina, é um velho miserável,
usurário a contar cada segundo,
tem o maior desmanche deste mundo:
ferrugem é seu dom mais partilhável.
De uma só vez é rei e vagabundo
e nos ensina: o agora é o que há de estável
dentro de um outro agora memorável —
a memória é seu bem, seu bem fecundo:
ela constrói no ser a consciência
por entre as estações: a luminosa
centelha pelo ser-viajar-se afora.
Ladrão e herói, é dele toda a ciência.
Para amanhã só deixe, Nina Rosa,
o que está farta de fruir agora.
LA 01/009
A Tua Taça Seja...
A tua taça seja grande, Nina,
para colher o belo do momento.
Enche do vinho azul a taça hialina,
vinho do nosso claro firmamento.
Vinho que faz cantar, minha menina,
nossa alma em alegre sonhamento,
canção vinda da infância em nacarina
concha contando histórias ao relento.
A tua taça se encha da alegria
de quem sabe fruir a cada dia
a beleza de haver cada momento
que nos sugere: Vivam de maneira
a gozar farto pela vida inteira
o amor, o vinho, o riso, a rosa... e o vento.
LA 01/009
Quando Partirmos Para...
Quando partirmos para o era-foi,
o mundo, Nina, nem irá notar.
O amor continuará a se esbaldar
enquanto ruge a guerra e o rato rói.
Que bom que nada poderá mudar
a indiferença que já antes dói.
Assim podemos amolar o boi
lá nas terras de um fosco imaginar.
Ou então caçar sapos nas lagoas
do céu e pirilampos com tição...
Andar sem medo e ouvir palavras boas.
Plantar favas, coquinhos e folhagens,
com as crianças fazer bolas de sabão...
e outras lindas besteiras e bobagens.
LA 01/009
Cabelo Preso...
Cabelo preso a dizer “sins” no ar,
no sorriso a luz fresca da manhã.
E a sua bicicleta a deslizar
pela rua em macio tobogã.
Era vermelha (lembra?) como a lã
que o boiadeiro usava pra montar.
No ar um cheiro doce de romã
e você num rosado pedalar.
Caíram folhas e ávidos tiranos.
Colhemos brilhos e os fiéis enganos.
O tempo nos mudou, e à terra e ao mar.
Mas não pôde tirar-me da memória
a cena para sempre em minha história —
suas pernas em róseo pedalar.
LA 01/009
Um Segredo...
Um segredo (te conto em surdina):
Cruzas a ponte e, em suas águas mansas,
fica o rio verdinho de esperanças —
não sabe que preferes a piscina.
E segues, e ele segue entre as nuanças
dessa Iboti preciosa quanto fina...
e bela porque nela moras, Nina,
antes dos genes teus ser claras tranças.
Quem dera visses nosso eterno cio
(do rio... e o meu que finges que não vês...)
para abraçar-te toda como um rio...
Abraço de água, abraço que esquadrinha,
abraço estreito de sentir-te minha,
te sentir minha ao menos uma vez.
LA 01/009
Sim, Doutor, Ela...
Sim, doutor, ela nunca pôde ver
como é tamanho o meu amor por ela.
Por isso não me estende a passarela,
isto é, talvez por isso, vai saber!
Bem por isso pensei em escrever
uns e-mails, sondar o jeito dela.
Mas não, fiquei com medo de esquecê-la
tão-logo eu a viesse a conhecer.
Por isso estou aqui no seu divã
sem crer em Freud e menos em Lacan,
pra ver se desiludo as ilusões —
possa desentortar grilo por grilo,
e então fazer à antiga e bem tranquilo
lições de casa em velhas posições.
LA 01/009
A Vida, Nina, Tem...
A vida, Nina, tem a forma de asa,
por isso passa que nem dá pra ver.
Se o bípede não busca o que lhe apraza
só verá voar as penas de viver.
E fica esse pisar por sobre brasa
com o vento a soprar e reacender.
E é bem frustrante ver que o vinho vaza
sem ter como fruí-lo nem reter.
Não esqueçamos, Nina, que o mais sábio
dos homens e dos reis jamais seu lábio
quis arredar da taça da vaidade.
Não temos um palácio nem tesouro,
mas temos o hoje: a vida (que é seu ouro)
e o amor pra ser amado com vontade.
LA 01/009
Sempre Me Foi...
Sempre me foi teu corpo primavera,
tua alma sempre me sugere outono.
Um misto de presença e de abandono,
a tibiez do lis, o rir da hera.
Trazes um charme de animal sem dono
pela selva e planície, pomba e fera...
No olhar uma menina sempre à espera...
cuja ternura é precioso adorno.
No semblante a beleza persistente
de lírios-rosas num astral que junca
de cores um jardim, placidamente.
No sorriso uma sombra, uma saudade
de um sonho não vivido: a dor do nunca...
aquela adiada e hostil felicidade.
LA 01/009
Nas Tardes Cor De Amora...
Nas tardes cor de amora andorinhava
em rasantes e trissos e rasantes
aquele belo sonho cor de lava
que coroa o domingo dos amantes.
Nas tardes cor de amora se corava
em nuanças de romãs e de amarantes
seu belo rosto recendendo a malva,
em suor e rubor dos bons instantes.
Nas tardes cor de amora a gente ouvia
o sebinho em seus trilos bem fininhos
enquanto ia se fechando o dia.
Nas tardes cor de amora e de cobalto,
ficavam nos olhando bem quietinhos,
quase sem respirar, nossos sapatos.
LA 01/009
Aí, Doutor, Fugi...
Aí, doutor, fugi com Antonieta
( um túnel ...). Sim: droguei, maquiei Regina,
que lhe era a mais confiável proxeneta,
pra ter a honra de assumir-lhe a sina.
Disse: Antonieta, entre pães e brioches,
não hás de querer ser uma heroína.
Melhor ficar com teu sorriso e broches
que com os cafunés da guilhotina.
Concordou. E do Sena nós pulamos
para a Romênia e, nobres, desfrutamos
do castelo do Conde... até a treta:
traíram-me! E adeus amor e glória.
Esta, doutor, a verdadeira história
de Maria, a gostosa Antonieta.
LA 01/009
Nessa Altura Das Coisas...
Nesta altura das coisas, minha amiga,
viver até que é muito divertido.
Já desvesti o elmo e a loriga...
Sim, não me bato mais por um sentido
que me daria a chave mais antiga
de abrir as portas do desconhecido!
Sei que sou eu a chave dessa intriga —
ela está no viver, no terá sido.
Nesta altura das coisas, minha nega,
não demora e a tal Coisa já me pega
e vou fazer amor com o mistério.
Quando moço pensava que sabia,
buscando mais e mais sabedoria...
Hoje, o quanto não sei me é refrigério.
LA 01/009
Ah! Carpe, Carpe Diem...
Ah! Carpe, carpe diem, minha Rosa,
antes que venham doidos tarde e vento.
Vamos colher, menina, em verso e prosa,
as uvas agarradas ao momento.
Sim, goza, goza o dia, minha Rosa!
Seja gozá-lo o teu mais belo intento.
Apara-o logo ( a vida é tão porosa... ),
logo, logo senão se faz nevoento.
Trabalho, sonho, arte e pé na estrada...
Comida bem frugal (mais caminhada)
e estar com Deus a cada novo dia.
Colher do dia a prístina bondade
que vem de Suas mãos: essa alegria,
que é força, e a repartir com a humanidade.
LA 01/009
Pensei Tanto Em Você...
Pensei tanto em você, que me fez mal.
Difícil desligá-la em minha mente:
mecanismo, cinese adultescente —
imagens que se formam em fractal.
Um modo de pensar sentimental —
um sol sempre nascendo no poente
e se pondo a um tempo no nascente,
mas sem noite, sem noite em brilho astral.
Aquela fria luz tão radial
num vazio abissal que só luz tem —
luz, uma luz mortal, luz abissal.
Sempre um modo de ter estando sem.
Sim, pensar em você fez tanto mal
que por fim se tornou em grande bem.
LA 01/009
Nossos Amigos, Nega...
Nossos amigos, Nega, a maioria
já foi socializar-se com as minhocas.
Não mais aqueles filmes com pipocas,
o brilho, o vinho, o cântico, a poesia...
Não mais as aflições de cada dia,
duros trabalhos, aventuras loucas...
Já não se faz amor nem mais fofocas,
já não se ri nem chora de alegria.
Aquelas desventuras tão gostosas,
as mentiras contadas pelas rosas,
as paixões a drogar toda a verdade...
Não mais o amor tecendo fiéis enganos,
mas a saudade disso: só saudade,
Nega, de tantos sonhos tão humanos!
LA 01/009
Se O Elefante...
Se o elefante der uma de fresquinho,
a gente viaja, Nega, de camelo.
O importante é seguir nosso caminho
que é bem mais cor de amora que amarelo.
E se este se fizer de nervosinho,
a gente o vende e compra um bom murzelo,
que sendo cor de amora, Nega, é belo,
belo tal qual o amor com chuva e vinho.
Chegando ao mar, trocamos o cavalo
por um belo tapete voador,
com muito embalo e sem nenhum estalo.
E em meio a tal regalo e tanto dom,
acordamos lavados de suor
fazendo amor debaixo do edredom.
LA 01/009
O Divã, Minha Nega...
O divã, minha Nega, é aquele móvel
de sentar, expurgar, dormir e amar.
Quem não fez no divã, nem no automóvel,
dificilmente vai se perdoar.
Seus cantos, o seu meio, a sua forma
fazem dele um gostoso imaginar,
de sorte que tal peça nos retorna
belas sagas em nosso recordar.
Uma bem disfarçada afrodisia
nos sorri maliciosa no divã —
pré-e-pós-saborear em regalia.
Enquanto isso, Nega, bem normal,
vamos fiando a maciez da lã
no divã, que é um móvel bem sexual.
LA 01/009
Lá Fora Outono Arrasta...
Lá fora Outono arrasta o seu chinelo
com o vento que escreve e ninguém lê.
A folhagem acena em amarelo
longo adeus desfazendo o seu buquê...
Sempre que algo sensível quanto belo
mexe em mim, me recordo de você —
seu jeito leve, seu olhar singelo,
seu sorriso que jura e a gente crê.
Mais uma vez a vida, minha Nina,
troca o verde viçoso pelo mate
num suspiro esgarçado em dança hialina...
Mais uma vez seus olhos me sorrindo
sonhos... sonhos fiados de escarlate
num conto lindo, lindo quanto infindo.
LA
Com Você Bem Ao Lado...
Com você bem ao lado, em pensamento,
escrevo cada um desses sonetos.
Vou e volto no tempo (como o vento)
e vou ligando imagens com afetos.
Sim, vou filtrando em alma-pensamento
esse lembrar você pelos secretos
meandros da memória em doce e lento
saboreá-la inteira, em dons completos.
E como em fractais de ressonhá-la,
vou despindo-a igual purpúrea rosa
por uma longa, interminável sala...
E nesse vê-la muitas me pervade
a um tempo uma alegria que é uma glosa
de você, em presença e já saudade.
LA 01/009
Foi Beber A Ternura...
Foi beber a ternura dos teus olhos
e já meu coração trançou as pernas —
subiu aos céus e cavalgou escolhos,
cantou, dançou nas praças e tabernas.
Foi príncipe e bufão entre os refolhos
do teu corpo por horas mais que eternas
em que o tempo mugia a comer molhos
de feno em tuas mãos cruéis e ternas.
E declamou às pedras e aos espinhos
poemas que desfiava de si mesmo
e sabia voar com os passarinhos...
E se pintou de branco e carmesim,
dançou como tiziu lá no seu esmo...
E fez rir muito mais que um arlequim.
LA 01/009
Afagar-Lhe Os Coelhos...
Afagar-lhe os coelhos de mansinho...
Com as mãos, com os lábios afagá-los
um a um... e depois, depois pegá-los,
pegá-los devagar pelo focinho.
Sim, pegar um a um por entre embalos
e sacudi-los dentro de seu ninho...
e com a alma e os dedos alisá-los,
alisá-los, beijá-los com carinho.
E um a um retê-los entre as mãos,
roçar-lhes com o nariz... e sem demora
beber-lhes o licor de cada amora.
E coçar-lhes com a língua todo o lombo
arrulhando roxeado como pombo
já no beiral, buscando entre desvãos.
LA 01/009
Sendo A Noia Maior...
Sendo a noia maior que um elefante,
aí, Nega, não há divã que aguente —
a não ser que o bichinho lá se assente
mantendo um respirar nada ofegante.
Sim, Nega, o peso está no que se plante
em alma-coração constantemente.
Haja coragem, haja então desplante
pra mudar-se lá em si bem outramente.
Já sendo a noia um elefante branco,
aí, Moleca, urge sermos franco —
nem o analista sabe o que fazer.
E se não sabe, então já está feito —
o elefante se esconde no sujeito
e o narciso começa por se ver.
LA 01/009