HOJE-ESPERANÇA

Laerte Antonio

 

 

            Ah, O Mais...

 

Vem a vida e nos corta a juba

e nos dá voz de gato,

bocejos de preguiça,

garras de pintassilgo.

Vem a vida e nos dá

voz de prisão aos sonhos.

 

Nada nos resta,

a não ser

um certo autoconsolo:

já rugimos,

mordemos e seguramos —

e “fizemos” com charme.

E viva o que tivemos

coragem para viver!

 

O mais, raios o partam,

e Deus ajunte

os seus destroços.

 

         Além Da Inculcação

 

Não seremos os últimos.

Sempre haverá o que dizer

numa linguagem

que vá além da inculcação.

 

Um modo de dizer,

uma via transversa

à da civilização.

 

Uma voz sensitiva

caminhando entre os homens

e seu destino.

 

Um coração que saiba

não saber —

e que, por isso mesmo,

complemente a razão.

 

Um ver que busque repensar

a realidade vista

em visões e revisões.

 

Voz alerta em denunciar,

e transcender

e esperar-se lá na frente.

 

Pés que caminhem

por fora e dentro

da realidade.

 

Um jeito de sonhar

e transonhar —

sempre senhor dos próprios sonhos.

 

Um modo de emprenhar o escuro

com a luz do coração

para se proteger

na lucidez do dia.

 

Não seremos os últimos.

Haverá sempre o que dizer

numa linguagem

que vá além da inculcação.

 

 

                    Auto-Inquisição

 

      Fez uma terrível fogueira

      e foi empurrando entre as chamas

      seus pensamentos

      em forma de xamãs,

      bruxos, feiticeiros, fantasmas,

      erotismos, irreverências, ironias,

      velhos medos e demônios,

      dissimulações, covardias,

      mentiras, autocomplacências,

      unhas, garras e rugidos —

      e outros bichos tão humanos

      e outras coisas tão de todos.

 

      Feito o trabalho, um monge

      ( que de longe vira tudo )

      aproxima-se e lhe diz:

    Agora, meu bom homem,

      peça a Deus que o arrebate...

    Como assim, padre? Explique.

    Explico:

      Sem as suas crenças e dúvidas,

      sem os seus bichos, suas máscaras,

      seus paradoxos e disfarces,

      sem seus diabos velhos,

      sua arrogância de bolso,

      sua desconfiança agarrada

      ao seu braço direito,

      seus sonhos e dialética

      ( a espada da palavra ),

      sem suas quase loucuras e ousadias:

      que vai fazer um homem pelo mundo —

      um homem entre os homens?

 

 

                   Círculo

 

Por vezes não gostamos

do que somos.

Mas, no fundo, sabemos:

somos aquele quem-o-quê

que nos profetizamos

sempre em continuidade

com o já-profetizado.

 

Com a argila do mental

moldamos e remoldamos

o nosso ser:

criamos universos

que fingimos

não termos de gerir.

Plasmamos risos-lágrimas

que temos de rir-chorar.

 

Nosso inconsciente é ciente

do nosso ser total —

pra quem o tempo apenas serve

como mordomo que o ajuda

a organizar-se em dramas-entes

( de maneira que ser

é um constante sair-se

pelas portas dos fundos

e retornar-se outro

pelo portal de ser-se.)

 

Quase sempre não gostamos

do que somos,

nem queremos assumir

que apenas somos

aquele-aquilo que nos recriamos

com os germes-sentenças

      do já-profetizado.

 

 

              Consideração

 

Após termos sofrido

tantas felicidades —

tão caras e custosas;

após termos por elas rastejado,

por elas termos procurado

como ratos entre armadilhas...

Após tanto após —

quem sabe a gente não pode

descobrir

outras maneiras de viver

( coisas em tudo diferentes

dessas tolices-venturas ) —

outras felicidades

menos tristes e infelizes?

 

 

                         Ladrão E Amigo

 

Tempo,

meu ladrão e saltimbanco,

te entendo necessário.

Ao que me roubas por fora

me acrescentas por dentro.

Não és mordomo,

mas cúmplice da vida.

 

Fundo me escavas —

a terra e a ganga se me vão,

fica-me a alma do ouro e das pedras

que já nem lembra

a sua argila-corpo.

 

Roubas-me mais e mais.

Roubas-me sempre.

Cumpres  — ladrão e amigo —

tua função de dínamo-consciência.

Roubas-me sempre mais —

até que eu fique

livre de mim,

de ti, de tudo.

Até que eu fique

rico de não ter nada,

      e nada tendo, a luz me sorva.

 

 

O Mais...

 

Vem a vida e nos corta a juba

e nos dá voz de gato,

bocejos de preguiça,

garras de pintassilgo.

Vem a vida e nos dá

voz de prisão aos sonhos.

 

Nada nos resta,

a não ser

um certo autoconsolo:

já rugimos,

mordemos e seguramos —

e ''fizemos'' com charme.

E viva o que tivemos

coragem para viver!

 

O mais, raios o partam,

e Deus ajunte

os seus destroços.

 

 

            O Roer Do Rato

 

O mesmo rato

que roeu a roupa do rei,

roeu a do bobo da corte

e a dos fidalgos e mendigos.

E vem roendo a nossa, amada.

 

O mesmo rato roeu

não só a roupa,

mas o que estava sob ela —

mais os segredos e medos

e as doçuras e enganos —

os belíssimos enganos

e tantas coisas tão amadas.

 

De tudo, o que restou? Um pouco.

Só um bem pouco.

Os sonhadores e seus sonhos —

quase todos roídos.

Só um resto de memória —

sendo roída —,

ainda resta

entre os dentes de faminto

do roer desse rato

a roer

( sem ruído )

em meio ao já roído —

roendo, roendo (inclusive) roendo

      o seu roer.

 

 

                Particular Balanço

 

Marx? Um belo engano.

Um sonho honesto

(enquanto era sonhado).

Freud, mais que a lanterna no cinema —

luz subterrânea: todos os filmes são nós-mesmos...

Joyce, um orgasmo seco de doer....

Mas relinchante...  relinchante orgasmo.

As vanguardas?

Um final de gargalhada.

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O mais,

além de futuro-do-pretérito,

deverá ser hoje, hodierno-hoje:

bastante hoje-após-cada-manhã.

 

O homem?

O homem haverá de conseguir...

com os direitos de sua inteligência,

mas esquecida de intelectualizar,

de dialeticar...

 

O homem não se perdeu,

só não se lembra de seu rosto...

Por isso anda quebrando todos os espelhos.

Sua razão

há de lembrar-lhe que o seu coração

sabe o caminho.

Sim: o homem precisa achar em si

o caminho de sua casa,

onde o espera,

não Penélope a retecer,

mas a felicidade

que ele foi inventando —

              mas nunca viu.

         

          Pausa E Sinal Verde

 

Se hoje não está bom,

está bem melhor que ontem.

Há um homem mais consciente

palmilhando o planeta

e buscando superar-se:

hoje sabendo

que é do plasma de seu ser

que ele e seu Deus constroem a estrada.

Um homem que haure a evolução

que lhe vem claramente,

não só de seu viver,

como também do acervo coletivo

( por genes bio-intuitivo-espirituais )

de toda a humanidade.

Inclusive sabemos

que o que a rosa nos diz

fomos nós que ensinamos a ela...

e entre pétalas e espinhos

há uma linguagem difícil,

mas que acabamos aprendendo.

O conhecer a nós e ao outro —

eis o intercâmbio da melhor escola:

daí havemos de trocar a angústia

de lutar pela coisa

por sermos essa coisa.

De digladiarmos pela paz

por sermos pacíficos.

De pelejarmos contra as trevas

por nos sabermos luz —

e a deixarmos brilhar,

já que a libertação

não é de grupo ou grei —

              mas coisa de cada um.

 

 

Quem Sabe

 

Aprendemos.

Fizemos tudo direitinho.

Deu tudo certo.

Só não fomos felizes.

 

Quando a neve derreter,

voltaremos para casa.

Iremos pelo caminho

do coração.

 

Quem sabe encontraremos,

não mais aqueles velhos sonhos:

a varanda

ciciada de folhas secas

com pedaços de vozes

contando-se coisas

que se tecem no ar, no vento —

e , de um triste amarelo,

aquelas frágeis flores

da infância e adolescência

sorrindo em pequenos cacos de louça...

 

Sim: não mais os enfermos sonhos,

mas o riso de nossos pais

brilhando,

farfalhando em cada folha

a nos dizer:

“Não tenham medo das quedas...

Quedas e ascensões

são quase sempre

dois belos impostores...

Passem ao largo.

Sim: passem pelos dois,

enquanto seus pés constroem

novo caminho

entre o destino e a vontade.”

...........................................................................

 

Quem sabe a graça nos enxergue,

e o caminho de casa

já não seja tão frio...

 

 

              Sempre Outra Coisa

 

Tempestades são um jeito

de a vida nos dizer

que a amada não virá —

se vier, será de trem...

 

O sorriso da amada

vive à beira do abismo

com saudade daquela flor

que fizeste muito bem

em não arranjar coragem

para colher.

 

O coração da amada

fuma cachimbo de barro

e cospe no chão da sala —

mas isso num sonho catártico

de que a pobre acorda aliviada

e jura nos amar

num misturador de vozes.

 

A amada beija o vizinho

e vai com ele pra cama —

no último capítulo

da novela em que figura.

 

Deixemos a amada em paz,

que neste exato momento

ela vai limpar a casa,

depois fazer o café

e, em seguida, lavar a roupa.

 

Tempestades são um jeito

de a vida nos dizer

que seus raios e trovões

foram feitos para o ser —

que seria da existência

sem o Ser que a sustenta

e o Tempo que a movimenta?

 

Tempestades são um jeito

de a vida nos dizer

que o que espera de nós

é outra coisa.

( Sempre outra coisa ).

E que a vida         

não é isso que vivemos.

 

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