NEM ISTO NEM AQUILO
Textos 2
Laerte Antonio
Cena
sorriso decotado,
seios soltos no vestido leve,
e toda ondeando entre os degraus...
Olhar amplo e cibernético:
vê esvaziando-trespassando...
Brisa-brilho-esguiez...
O gesto em flor —
um chafariz de frescuras.
LA 04/001
Nau saqueada,
e deixada sem rumo,
solta no mar.
País saqueado,
e abandonado-entregue,
guinchado-preso-atrelado
aos fundos financeiros
do capitlismo animal.
Nau-País, olha:
os abrolhos!
LA 04/001
Núncaras Das Nunquetas
Um dia
a gente vira poesia —
a dor
vira sonho de pedra.
Os outros
falarão até com respeito
de nós —
não sentirão mal-estar...
E a gente
engrossa a sopa de pó
daquele
panelão terceirizado...
O mais?
É vento masturbando
as plantas
e invaginando pólen
na vida.
O mais do mais?
Só Deus
e os hierofantes do mistério
é que sabem
desse mais, alma do pó.
Ah, pobres, pobres xotas!
Pobres fiofós!
Quem pinxotou, pinxotou.
Quem fiofou, fiofou.
Quem lesbiou, lesbiou.
Quem felaciou, felaciou.
Quem punhetou, punhetou.
Quem não, —
núncaras das nunquetas.
LA 04/001
Pacas De Pácaras
Seu funeral foi abrilhantado
pelas lágrimas da esposa .
Para os amigos, —afeto genuíno.
Para os adversários, —artes dramáticas.
Mas o placar ficou no empate,
quando alguém observou:
Mas os amigos dele (defunto) não são os dela,
e vice-Versalhes lá d’antanho —
com guilhotina e discursos de Robespierre...?
Justiça seja feita:
a pobre senhora chorou e gemeu tanto,
que —ali— o padre a consolou,
e —quatro meses depois— casou com ela.
.........................................................................................
E que perdoem os invejosos,
mas foram felizes pacas de pácaras.
LA 05/001
Pouquice
Sexo, alguém que te diga “eu te amo”,
casa, filhos, sociedade, religião —
pouco, pouco demais: pouquice —
sem algo ( geralmente a arte ) que te leve
a organizar-te,
repaginar-te,
conhecer-te a ti e ao outro ( ou
o outro e a ti ),
e desse modo um pouco de Deus
e do Universo —
sem viver teus pensamentos,
libar tuas idéias,
vindimar tua alegria,
ceifar teu trigo —
cear com Ele
lá no teu coração:
já metabolizado
em consciência de lembrar
o caminho que te liga
com as varandas daquela casa...
— Sem isso,
terás vivido para quê?
LA 05/001
Biggs Goes...
Vai Biggs.
Go home
( se é que algum lar te existe...).
Após ter comido o tenro,
o melhor de nossa alface,
acariciado o belo de nossas praias...
mil e mil incursões
pelos jardins suspensos
que pulsam ao sul da carne —
vai dizer às inglesas
que com Viagra e o jeitinho
( aprendido entre nós )
talvez ainda...
Go home. Volta pra terra
de Robin Hood.
Aqui viveste — gostosamente —
a tua adolescência de herói.
Glamouroso e amado
ladrão —
ladrão romântico: de trem!
Trabalhando, estudando, pesquisando,
fazendo arte: criando —
não se consegue nada
perto da fama e prestígio
que granjeaste —
principalmente entre aquelas mãos
que manejam o raio
das mumunhas e mutretas...
Biggs, Biggs! Não foste assim tão grande...
Mas o glamour
faz as entranhas suspirar.
És santo, ingênuo, filhote e aprendiz
perto dos magos que aqui temos.
Agora que choveste
barris e barris de cerveja
sobre este chão,
que encaçapaste
o teu metano nestes ares —
vai, ladrão, vai fazer charme-fama
e money com o tal The Sun...
Que pena....
Já eras nosso. Te amávamos,
só não éramos correspondidos...
Vai, bom ladrão. Super-herói.
Agora vai ( já que vendeste
a tua volta...): go home-jail.
Fizeste inveja a muitos...
Vai com Deus.
Diremos à nossa molecada
que — para nós — eras “fichinha”:
um simples aprendiz.
LA 05/001
Plantemos Flores
Se viver não apraz,
procure outra coisa —
e quando achar nos mostre.
Se você insinua que...
Dizemos que isso é bobagem —
milhares foram por aí...
mas até hoje
jamais se viu ninguém contente
em tão exíguos apartamentos...
Plantemos flores.
Com elas nos enganamos,
e gostamos:
dizemos ao nosso medo
que a vida é linda,
e que a morte
— coberta de flores —
só é o fim
da garrafa do vinho...
LA 05/001
Consideratio
Cientistas
estão dizendo por aí, Cleópatra,
que não eras tão bela assim...
Aliás, bem ao contrário:
baixa, gorda, dentes podres, nariguda...
De minha parte considero:
Se assim — tão-anti-e-não —
puseste dois generais de quatro —
certamente, sendo bela,
segurarias todo o Lácio
na tua brava xota.
LA 05/001
Trocando Lâmpadas
Ele fazia a empregada
subir de costas na parede
da copa, depois das onze...
Toda ensonada, sua esposa
( que fora tomar remédio )
os surpreendeu, certa noite,
na copa muito escura...
Ele, então, grita à empregada:
Enrosca a lâmpada! Enrosca a lâm-pa-da!!...
.................................................................
A esposa, bocejando, lhe pergunta:
Mas no escuro, Teté? No escuro?
Pobre da moça, Teté! Pobre da moça!
Como pode... nesse desconforto,
fazendo a pobre moça
subir pela parede?!
Bem... fiquem ( bocejos...) à vontade —
vou acabar de dormir...
LA 05/001
Utilitarismo
Certo dia entrou no quarto,
e falou sério:
Enfim, a três!... Mas calma, calma!
Pode ficar com a minha cama
e com a minha patroa.
Já fui.
......................................................................
Mais tarde soube
que o cara levara a cama,
e deixara a mulher.
LA 05/001
Poema Paralelo
Já não sei se me sobrevivo,
ou se vivo lado a lado comigo...
O que preciso
é ser o meu amigo de hoje.
O fogo que roubei dos deuses
fiz dele uma fogueira pra esquentar os pobres
e um mais que pobre, que trazia em mim...
Não raro tenho muita saudade
do afeto e cuidados que não me deram na infância
e isso, não sei por quê, se me vai tornando
em discreta felicidade:
uma ventura com o olho esquerdo sangrando...
mas ventura.
Por vezes pergunto ao meu coração
se ele se recorda do caminho de casa....
e ele me diz que sim, num tom tão lúcido,
que isso é toda a minha força —
e a minha coragem de prosseguir
na longa caminhada sobre as minhas águas...
Então pergunto ao meu anjo:
Se me despenho, tu me seguras?
E ele, tranqüilo: Não, porque não cairás.
E a minha fé toma uma forma de candeia
( do tempo de Ronsard ), e me ilumino —
com uma luz que vem da sombra
do sorriso de Deus.
LA 05/001
Dor Porreta
É noite, e dói.
Dói, não por ser noite,
mas porque a noite
é minha dor.
Se minha dor amanhecesse,
não poderia mais doer —
já não seria noite,
mas dor-manhã.
E a manhã é uma baiana
vendendo acarajé —
a sentir a dor de não ver
o seu André
que fugiu pra Paraíba
a ver se é bom mesmo o gosto
de comer mulher-macho...
A dor que não dói não presta.
Já, se dói, é dor porreta,
é gozo da molesta —
que já nem dói.
Entre doer e não doer,
o bom é nem saber
quem fez os quitutes da festa.
E comer-descomer-comer
o que a vida oferece —
sem fazer doce nem chiquê.
LA 05/001
Ah, Hoje...
Ah, hoje tô que tô!
Rosinha ainda não veio
e nem telefonou.
Vou abrir uma cerveja,
fritar bolinhos,
coçar os mimos —
até que venha
quem me cuide
com a mesma perícia
com que o padre consola
aquela mulher cheirosa
que fala mal do marido.
LA 05/001
Patos/Logias
Vou ver se encontro
uma mulher barata
para cuidar de mim.
E antes, bem antes que amanheça,
me esgueiro pelo silêncio,
e dou no pé —
pra que o barato
não saia caro:
isto é, o gato
não coma o rato —
nem haja patos nem logias.
LA 05/001
Antes Só
A minha Glória
jamais fingiu orgasmos.
Era honesta —
ao invés de simulá-los,
preferia dormir
durante as escavações.
Seu primeiro marido
a abandonou por isso,
eu adorei:
antes orgasmar só
que mal-acompanhado.
LA 05/001
Os De Baixo
Não é preciso, Rosa,
lavares minhas cuecas —
assim não despetalas
as tuas mãos
e continuas rosa.
A máquina tem mãos
para lavar, secar —
e é só usar.
Melhores que as de Clarinha
( sua irmã )
que — quando me socorre —
cobra em dólar
e em semanas de sins...
Poupa-te, Rosa.
Que tenho máquina
e — em caso extremo —
tenho Clarinha
que não deixa os de baixo
tão limpinhos assim,
nem com a maciez
de rosas —
mas até que ajuda bem.
Enfim, minhas cuecas
não são assim tão metafísicas.
LA 05/001
Dá trabalho.
Amizade é como carro:
sem as atenciosas manutenções,
a gente fica na mão.
LA 05/001
À sombra calipígia das mulatas,
ó Proust,
é que se busca e rebusca
o tempo
gostosamente perdido.
LA 05/001
Menos O Amor
Te dou tudo, Glorinha,
tudo —
menos o meu amor,
que troquei por um cavalo
que tem por nome Sossego.
De ti não quero tudo —
só o que puderes —
as duas peras,
os dois melões
e a peruca.
Quanto ao teu amor,
dá pra quem te apetecer.
Não-amor com não-amor,
Glorinha,
além de coisa chique,
é bom porque não dói.
LA 05/001
Time’S Money
( Super-Fs )
Português executivo
e sem tempo a perder,
deu para a amante
um papagaio gigolô-anunciador —
um tremendo dedo-duro.
Meteu-o numa casinha
que plantou lá no bico do telhado
do sobrado —
e o ensinou a transitar
entre as telhas e as janelas...
Mal o português descia
da limusine,
o penoso gritava à moça:
Prepara a sobremesa,
minha dona,
que o patrão evém que vem —
doidão pra comer amei)(a...
Depressa, que time’s money!
Depressa, que time’s money!
Depressa, que time’s money!
O português levava
9 minutos
( cronometrados
pelo escudeiro e guarda-costas )
para despir-se e embrulhar-se.
Para vestir-se, despedir-se
e entrar na limusine —
4 minutos.
E ainda dava tempo de lembrar
que voltava no outro dia —
à mesma hora,
e que não se esquecesse
de cuidar bem do Louro.
De quinze em quinze dias,
o patrão fazia ao Louro
uma pergunta inquisidora:
E então, Louro —
que é que zuleide tem feito
na minha ausência?
E a resposta, por vinte anos,
foi sempre a mesma,
clara, claríssima e tríplice:
Nada que tu não faças!
Nada que tu não faças!
Nada que tu não faças!
..................................................
E o português se ia —
feliz da vida
e de seu papagaio.
LA 05/001
O Infinito Dizer
Escrevo,
porque escrever é uma forma
de pensar em voz alta.
Assim me escuto melhor
e já reescrevo o escutado
para mudar o tom
e o ângulo de ver.
O escrito e o reescrito
não têm razão de ser,
se o seu escopo
não for o infinito...
O infinito dizer(-se)
que é quebradiça a linha
do pensamento —
e a conclusão só existe
na conclusão de conclusões.
Assim que se conclui,
uma coisa se inclui
na gestação de exclusões...
Água que corre por nós dentro,
a dar-nos movimento e liberdade —
pensar é isso.
E o pensar em voz alta
( o pensar por escrito )
ressalta —
pois que congela por uns tempos
o pensamento —
que eis... começa a oxidar-se,
já que a palavra
é o ser em movimento.
LA 05/001
Padeirastro
Se ao menos dispuséssemos
de alguma manteiguinha
pra comer o pão do Diabo —
daríamos graças a Deus.
Mas não. Tínhamos não.
O pão, sim, não nos faltava —
o padeiro era pontual:
não se deixava esperar...
Um dia, eu bem menino,
o padre me perguntou
se acreditava no Diabo
e, se sim, onde eu pensava
ele estivesse...
Respondi que o Diabo
eram os pais que esfolavam
e exploravam seus filhos...
e que ele estava
entre a maldade e a ignorância —
e naqueles que produzem
a pobreza-que-dói.
O padre olhou-me assustado,
como se não acreditasse
que o Diabo existe.
LA 05/001
Rastejos
Rastejos
pra ser feliz, não! —
dizia André,
um cara tolerância-zero.
E acrescentava:
Aliás, sem tais rastejos
é que talvez exista
felicidade.
Sua mãe, que quase sempre
ouvia a filosofada
do mancebo nietzschiano,
um dia lhe pergunta:
Quer dizer, meu André, que minhoca
não pode ser feliz?
Ao que o filho reforça:
Minhoca pode, mãe.
Um homem, não.
Não morreu de demência...
Nem jamais levou nada a sério
do que pregava.
Morou vinte anos
com uma bela mulata
de quem sempre apanhava muito.
LA 05/001
Quando Estamos Poesia...
Quando estamos poesia
não temos outra escolha
a não ser apará-la —
sulfite, pauta, pedra, pincel...
e outras e outras maneiras
de roubar o fogo aos céus.
Por falar nisso,
faz tempo não vejo Maria...
Quem sabe logo ela vem
pra dar pautas para o dia
e olhar maroto às flores.
Aí, sim, maduraria
o fruto de um sonhamento:
uma supersimetria —
um pouco de matéria,
outro pouco de energia —
uma alegria-harmonia
( lá no sentir-pensamento )
a que só pode colher
a mão que estiver poesia
num sonho sempre atento
de ave em longa travessia.
Sim: quem sabe Maria
não vem hoje
e o tempo vira poesia
com chuva fria?
LA 05/001
Semeadores De Anomias
Tempestades não só dentro do espírito,
mas também nessa alma emocional,
a tiracolo como um embornal —
e dependente qual pronome enclítico.
Foram apocalipses muito vívidos,
implantados em terras do mental —
muitos anos de sopa cultural:
dominação dos homens vis e frívolos.
Dominação dos que distribuíram
a pobreza pro mundo e a si reuniram
toda a riqueza e o mel das mordomias.
Domínio dos mamíferos de luxo,
refestelando, empanturrando o bucho
de seu roubar-lesar semeando anomias...
LA 05/001
Negociando
Quanto quer, a rapariga,
pra me deixar rachar
o )( de sua ameixa?
Cem paus!?
valer, bem vale,
o diabo é ter.
Ah, vamos lá, Isa!
Faz um precinho bom —
é fim de mês...
Tô duro —
duro em duplo.
Dou 10 reais,
quando me vier o aumento —
dou mais cinco... ou...
Juro: não me demoro...
Mais trabalhoso falar
que fazer...
— Por vinte meu nego come,
por dez... mais cinco... passa fome.
Por vin-te, meu nego come.
— Tá bom, Isa! Põe a mesa.
LA 05/001
Chuvarada
Vim, mas já estou indo,
isto é: já fui faz tempo.
Chegou Joaninha
( a da bateia elétrica? ) —
então desfui.
Tô mais aqui
que quenga oferecendo
peruca nas esquinas.
De fato, Joaninha
fazia
o lado masculino
da pensão
chover —
e coaxar-coaxar-coaxar...
Eta pau!
Eta ferro!
Essa Joaninha
fazia que fazia
chover,
e goteiras cantavam...
cantavam a noite inteira.
LA 05/001
Jardin Potager
Estava mais pra horto
que pra horta —
c’etait un vrais jardin potager.
Frei Antão,
hortelão-jardineiro,
lá no fundo, atrás da moita,
e coberto de tarde-noite —
a cutucar a fruta
como a ver se está madura...
Cutuca-a e apanha-a pelo talo:
um cacho de uvas...
O frei vai devagar, vai devagar, vai dev...
até prensar três uvas bem graúdas
de que garimpa o ouro...
e pronto:
colheu a fruta —
recolhe o pincho chovido...
O urutau
modula o canto-risada
entre o bambual
e o frei cansado,
ainda muito ofegante.
LA 05/001
Todavia...
Todavia... não me darei ao luxo
de me tornar um triste misantropo.
Vou sempre oferecer aquele copo
de água fresca e do pão que ia pro meu bucho.
Todavia... não me darei ao luxo
de fingir que é normal o adultério...
Nem confundir o hilário com o sério
ou trocar azaléias pelo buxo.
Todavia... prefiro o pouco ao muito
quando o muito se finge de gratuito,
mas prende a nossa alma a quem o dá...
Também dispenso aquela regalia
em cujas mordomias sei que há
o prejuízo de muitos, todavia.
LA 05/001
Ruína Em Pé
Da velha casa, só um esqueleto —
toda lagarteada nas paredes,
a fazer crer seus donos e arquiteto
do outro lado das fomes e das sedes...
O telhado flutuando entre o afeto
do cupim com a madeira... agora em redes
de trepadeiras invadindo o teto
com a hera a exibir raivosos verdes...
Muros de taipa a pajear avencas...
Três bananeiras em mirradas pencas
e o sorriso de dálias doloridas...
Porões mofados recordando histórias
de moças “Catarinas” e “Vitórias”—
contando a primos lendas tão compridas...
LA 05/001
Hora Desturbinada
Vi uma ave,
grasnando feio,
o bico enorme,
voando baixo —
as asas em forma de castiçais
com muitas, numerosas velas
e uma lamparina ao bico.
E havia um céu de Deus-nos-livre
com negridões e clarões,
relâmpagos e trovões
e apocalípticas previsões:
apagões-apagões-apagões-apagões-e-ões-e-ões-e-ões...
ecoando em excansões
por todos os rincões
desta terra e hora desturbinadas
com as águas marulhando
por cima dos ladrões,
por cima dos ladrões,
por cima dos ladrões...
Sim: aos borbotões, por cima dos ladrões...
E me atirei por terra
( prostrado de terror ) —
e vi que o céu se abria em mil turbinas
( convertidas em papéis verdes...)
que — apesar de não-instaladas —
abriam fauces enormes e gritavam:
“Estas trevas espessas e felpudas
devemo-las a São Pedro a São Pedro a São Pedro
a São Pedro a São...”
Alguém então ousou bradar-lhe
( à ave de pio feio
e vôo baixo ):
“Ó vós de bico formidável,
e trevosas previsões —
até quando nos impingireis
o pânico dos apagões?”
E a ave em forma de castiçais,
velas e lamparinas,
com seu bico aterrador,
grasnou ao perguntador:
“A respeito desse dia e hora
ninguém sabe,
nem os anjos do céu,
nem os santos mais cê-dê-efes —
mas somente São Pedro,
mas somente São Pedro
( e se indo no eco de seu grasno ) —
mas somente São Pedro, mas somente São Pedro, mas somente São Pedro...”
LA /05/001
Nem Por Isso...
Paulo conheceu Michele,
e esta lhe disse que “coisinhas”
de modo algum satisfaziam.
Paulo fez que não ouviu,
porque Laura achava demais,
e Joana tinha orgasmos
de expelir pedriscos e areia
por todos os orifícios.
Paulo era pedreiro dos bons.
Era cobrão no reboque
e sabia-se perito
em acabamentos.
LA 05/001
Capinologia
Às vésperas de eleições,
ele punha a mula na baia
com o melhor dos capins.
Ao rabo lhe amarrava
um sétuplo pincel
com as cores do arco-íris.
Fixava-lhe a cada flanco
uma tela —
preparadas com esmero...
e cada uma com o nome
de um de seus dois candidatos.
Ao cabo de sete horas
( dizia-se um pitagórico...),
ia buscar a encomenda —
examinando-as de-ta-lha-da-men-te...
Aquela que apresentasse
as pinceladas mais absurdas
com um quê de futuro-do-talvez —
era a do seu candidato.
E Leôncio ( chamava-se Leôncio )
afirmava, com boca de uísque,
que jamais perdera uma eleição.
LA 05/001
Água Limpa
O poeta só é bom
depois que o mundo lhe come o ânus —
e ele se torna um ser indgnado.
Sem pai nem mãe,
sem amigos-cachorros
ou cachorros-amigos —
maduro de porradas-vivenciações.
E nem por isso boquiaberto,
tampouco revoltado —
mas senhor do seu riso.
Aí se torna um-ser-gente-com-gente
com quem se tem prazer de caminhar.
Ferrado e adulto,
já não canta nem chora.
Seu amor, seu grande amor...
não mais lhe vale.
E o bom é que tais tempos
não voltam mais.
Seu verbo perambula no hoje
entre o acervo do passado
e nebulosas que adivinham...
Qualquer puta ou puto
lhe serve como oráculo...
O homem e o mundo
é só o que lhe importa.
Deus? Sua aventura de ser.
E o mais... é passar a limpo
a sujeira de cada dia —
pois sabe que a persistência
da água limpa a pingar na panela suja
vai fazendo-a transparente e potável.
LA 05/001
Vinho-Consciência
Jamais terei o magnífico Graal —
o caneco ou o copo simples:
aquele recepiente em que Cristo
bebeu na última ceia —
não tenho, não tens, não temos,
mas ir-lhe ao encalço, como se existisse,
fez com que houvesse a lenda
de imaginá-lo existindo:
o símbolo que vai além da coisa.
E que bom não o termos —
assim não seremos nunca roubados
do que não teríamos...
nem nossa fé
será nunca metonímica.
Temos muito mais que o Graal —
temos a uva e o pão
com que podemos cear
enquanto vivermos:
Temos Seu corpo e Seu sangue
em que Ele transformou toda a vida...
Nos que Nele crêem? Não. Nos que sabem ser Ele
a luz que os sustenta em Suas promessas
e faz o sonho ser verdade.
A luz que é a argamassa
entre os tijolos de crermos Nele:
as pilastras, —o amor;
os tijolos, —a fé;
o edifício, —a esperança.
Ao Graal —nenhuma importância,
mas ao sonho,
o vinho-consciência
que molhou aquele pão —
o pão metabolizado
na luz da salvação.
LA 05/001
Engraçado...
Lembro-me que ele vinha,
lia os meus manuscristos
e de cada texto
fazia dois ou três, às vezes mais.
Almoçava à minha mesa,
Chamava-me “carinhosamente” Fernando Sancho...
Quando eu ia ao banheiro
ou que, por outro motivo qualquer
me ausentava —
ele, meu ex-aluno,
juntamente com minha então mulher,
falavam mal de mim...
Ele era invejoso como o Demônio...
queria ver-me destruído, sem dúvida.
Entrava no íntimo da minha vida,
me “ensinava a viver” —
não raro ria-se de mim na minha cara.
Gostava de ver-me fraco
e saboreava o pensamento
de que eu pudesse destruir-me...
Engraçado é que ele não percebia
que suas intenções eram fáceis de se ver —
assim como as grandes cobras...
os grandes ratos...
os gambás entre galinhas.
Visitava-me amiúde.
Quando se ia,
eu me sentia doente —
deixava-me seu cheiro de mortalidade:
mortalidade conturbada,
boçalizada,
suas vibrações perturbadas —
mediunizadas por Aquele
que se disfarça de anjo de luz...
Você me perguntaria:
mas por que permitia viesse vê-lo?
Resposta: Ele e meu ex-cônjuge
tramavam esses encontros...
Eu percebia tudo e queria ver
até aonde desejariam chegar.
Pu-los em boas mãos: na do Deus Vivo.
Meu ex-cônjuge se foi para os lados da carne.
Ele caiu no rio com carro, sua mulher e filhos —
todos se salvaram, menos ele,
cujo corpo as águas não devolveram.
Engraçado: nunca senti ódio algum deles,
nem medo, asco ou dó.
Foram como aquela chuva e vento
que quebra o que você tinha de mais belo...
E Deus ( juntamente comigo ) deixou-os
pisar no mais adorável do meu jardim...
Mas preservou-me a vida e a de duas
das minhas três filhas...
O mais... é dor que não vai se demorar...
LA 05/001
Chuvas
Eram chuvas macias, femininas
que caíam andróginas de humores —
com um jeito de simples turmalinas,
goteirando no sonho em várias cores.
Relinchava o cavalo, e em suas crinas,
a chuva vinha em gotas de suores...
( E esse cheiro cortante de latrinas
de onde é que vem, senhoras e senhores?
Vem lá detrás da festa, — explica o padre,
mas não liguem: está tão linda a festa ...)
Ah, eis Angélica, minha comadre...
Chuvas, sim: longas chuvas de libido...
Se a minha santa olha pela fresta —
vai ver muito galope com gemido.
LA 05/001
Só Um Tempinho...
Se não tens um tempinho pra sofrer,
como é que vais saber
que a felicidade é uma vilã...
e — sem suas trapaças e chiliques —
não podes ser feliz?
Só um pouquinho, vai!
Sofre um pouco e verás
que inclusive do sofrimento
a gente pode extrair
alguma felicidade.
LA/06/001
Senhores-Escravos
Se não podes olhar o mundo
por dentro,
não tentes —
ele é bem pior
que o pior dos pesadelos.
Se és capaz de viver
entre o sonho e o real —
fica então por aí:
sem nenhum constrangimento,
elege o “bom”, o “belo”,
o que te serve e a quem servir
por entre o fervilhar
dessa não-esperança —
a distopia de seguir em bando...
Deixa aos machudos,
às femeúdas
a realidade que eles comem
e descomem no dia a dia
do seu fazer com o traseiro
enquanto são tragados e pensados
pelo mundo —
nessa loucura reproduzida
por suas próprias misérias.
Escravos de uma liberdade
cuja bandeira eles agitam
e por ela trucidam, matam e se devoram —
bobos da corte
de um reino que nem existe.
Senhores-escravos
e escravos-senhores —
cujos papéis se invertem
como o fluxo e o refluxo
das águas sem repouso.
LA 06/001
Internuvens
... é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é...
... vazio-vazio-vazio-vazio-vazio...
Vazio montado no ar,
vazio que o ar não preenche:
é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é...
Vazio buscando temas, gente, vozes —
fantasmas digitais,
vozes em todos os seus timbres, tons
e pos-si-bi-li-da-des...
Sim, possibilidades: venturas-aventuras...
e quem sabe... e quem sabe... e quem sabe...
... é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é...
Mentes tecendo corpos de utopia,
presenças telemáticas,
tecno-acariciáveis...
Dedos falantes
adivinhando vozes,
vozes buscando timbres dídimos, sonhos inconhos...
Triste é correr atrás de algo,
algo sempre em velocidade
mais que humana —
o tempo já não estende a mão
para colher a rosa
que já não é senão só uma idéia-rosa...
A estrada
já não mais palmilhada,
mas fluido-espacial,
sonâmbulo-atemporal —
feita virtual:
sem pés que a pisem,
nem olhos que adivinhem
seu após-curvas, seu além-horizonte...
Com seu querer em falso,
seu tropeçar nas nuvens —
o homem finge buscar o longe
de um perto que já não há.
No entanto o coração reclama
chão-calor-mão-voz-hálito —
uma felicidade
feita de pele,
tempo e presença.
LA 06/001
Usos E Frutos
Pródiga,
a vizinha o prendera
pelos papaias
e pela tangerina.
Quanto mais se degustavam
tanto mais se queriam —
como as sandálias dos hebreus:
quanto mais eram usadas —
tão mais macias e impecáveis.
E André foi saboreando
( era vinte anos mais moço )
devagar e assiduamente
os dons de sua árvore —
até que a mesma secasse...
Seca de vez,
André e zuleide
( irmã da que virara lenha )
faziam juntos
um tal doce de mamão
com outra tal ambrosia
de tangerina —
que não havia como não comer.
LA 06/001
Presidasta
Esse filme já vimos.
Fica atrás da realidade
o seu estúdio.
Seu roteiro — encomendado —
atravessa gerações.
Seu diretor e sua equipe
beberam até cair,
e dirigem sentados
atrás da porta do palácio.
Tudo estaria bem
não fosse esse senhor
o presidente da república
do país que ele está filmando
( gestão após gestão )
para o seu povo —
com a sua esperança
moída sempre
pelo Reproduzido.
LA 06/001
Bucólico
O-o-o-o-oi?!...
Vo... vocês?!
Não, não: mantenham-se montados...
e não se vexem, ô xente!
Vão devagar. Devagarinho:
bem à vontade,
arretado: mas sem pressa —
eu também não tenho nenhuma.
Espero como Jó:
paciente, sofrendo quase alegre...
Sim: paciente. Nenhuma pressa.
Devagar. Vão devagar.
Não tenho pressa mesmo.
.....................................................................................
Não tenham pressa.
Aliás,
nessa hora,
cabra — que se preza —
não tem pressa.
Mas depois... ( não tenho pressa )
quero também: senão conto!!!
LA 06/001
Pois É
Plantados no presente,
o presente nos é —
com sua força-cultura
que nos arrasta como correnteza.
Conjugam-nos na passiva,
ocultando os agentes
que nos fazem sofrer
as ações verbo-sociais.
Muito antes de pensar,
somos pensados.
Bem antes de sonhar,
somos sonhados.
Já antes de querer,
somos inculcados.
Antes, bem antes de aceitar,
já prepararam
a nossa aceitação.
Escravos orgulhosos
de nossa liberdade
e nossos “ismos”e “ias”—
ainda lhes cantamos “belos” hinos,
e blasonamos árias disentéricas
com a cabeça bem erguida
e o dedo indicador a asseverar...
Pois é.
Coisa duplamente boa
deve ser mesmo
nem perceber.
LA 06/001
O Homem Da Chave
Um tempo rico,
vertiginoso,
alucinadamente urgente —
repleto de esbarrões com a realidade.
Já não podemos parar —
em nosso rumo para o nada,
amarrados a um querer abstrato —
um querer de cultura:
massificado ir-sem-aonde —
um futuro gelatinoso
e com ares de fantasma.
Tem-se a impressão
de se assistir ao velório,
não do corpo —
mas do espírito do momento —
com carpideiras não:
com tecno-risotas a um Sistema
doente da cabeça, das mãos, dos pés...
Esqueceram de mudar a chave...
( o homem dormiu )
e o trem vem vindo aí a toda a toda a toda...
Democracia vem vindo nele, com seu filho
mais velho, o Capitalismo, e dando de mamar
à rechonchuda caçulinha:
a Globalização.
O momento são arapucas
tão capciosamente armadas
em sua intertotaldependência,
que — quando uma desarma —
só com o seu desarmar
vai derrubando todas: inclusive aquela
que todos sabem o mais ousado cê-u do planeta...
À beira desse Orifício geopolítico
( sempre tonitruante ),
os povos ouvem seus oráculos
e recebem seus divos mandos —
não raro em forma de bombas
ou de retaliações de mercado.
E nessa hora de tocaias
a esperança já não é virtude
daqueles corações papudos —
mas um dever de quem preza
seu equilíbrio bio(e sei lá que mais)psíquico.
...............................................................................................................
Tomara que o homem daquela chave... ( lembra? )
acorde.
LA 06/001
Por Outro Ângulo
( Conversa Com Os Botões )
Os inimigos você até pode evitar.
Os amigos já adentraram sua vida —
conhecem suas fraquezas e segredos:
sabem como matá-lo pelo corpo,
pelo moral e pelo social.
Em vez do amigo,
por que não o que troca
e barganha interesses? Com este
não precisa se humilhar,
nem competir
ou conversar tolices —
dar à palavra o seu lado necrófilo:
o tédio-ócio,
gigolô da maledicência
e auxiliar das autópsias...
Troque interesses,
e isto lhe baste.
( Importante: aprenda a rir
pela boca e nariz,
senão vai acabar
um defunto muito sério.)
A todos devemos amar
( é o passaporte cósmico...).
Já gostar
só o podemos de quem gostamos.
E ainda ( e antigo ):
O amar nos torna livres,
o gostar nos prende.
Ter um amigo
é dispor ( por tabela )
de um ou mais inimigos —
dependendo pra que lado
o temporal vem vindo...
Mas não seja por isso!
A vida tem suas penas,
mas vale o vôo.
O momento
não está para luxos.
Nesses tempos atocaiados,
melhor um relacionamento
( rápido ) de barganhas.
Guerra é guerra.
Prudência morreu velhinha.
Assim mesmo por ter seguido à risca
um conselho de sua santa mãe.
LA 06/001
Tardança
Sempre arredios no aprender.
Morosos, tardos no assumir
novas posturas de viver —
outros ângulos de ver
e ser.
Somos tardios no aprender.
Por outro lado, a dor
não tem nenhuma pressa ...
ante o nosso fingimento
de que ela não existe.
Fazemos por não perceber
que o mundo é uma ponte...
e vamos construindo eternidades
em cima dela —
coisas-nós-mesmos
que nos impedem de passar.
LA 06/001
Gesto-Instante
Tarde ( em nós? ).
Aves no fim do dia
que já não têm para onde voltar —
a não ser para o sonho em si mesmas,
na esperança da fresca luz
que há de fazer as coisas
reacontecer —
de sorte que seu vôo e rota
se acoplem num só gesto-instante —
ultrapassar-se ultrapassar-se ultrapassar-se...
livres livres de si e do auto-engano
LA 06/001
No Lombo Do Futuro
O presente
pressiona o futuro —
e o que ainda não seria,
pela mente-vontade,
já pode ser
e, em sendo, então ser saboreado
num tempo-antes.
Assim é que o homem aprende
a moldar com as mãos de Deus.
Sim: quando Deus nos empresta
a sombra de Suas mãos —
podemos vertebrar de luz
os sonhos mais sonolentos...
Então podemos trazer
( para o lado de cá )
as mais belas utopias:
montadas no lombo do futuro
e cavalgando sobre os verdes do hoje.
LA 06/001
Dá-Se Um Jeito
Se amar é viver,
troco meu cavalo por isso,
mas nada volto: há de ser na orelha.
Se amar é viver,
quando estiver pra morrer —
procuro aquela Eulália,
que certo dia me disse
que de jeito algum haveria
de esticar as canelas
sem um dia comermos
no mesmo prato:
com sobremesa e tudo
e, claro, à luz de velas.
LA 06/001
O pastor vinha sempre
orar com a vizinha —
até que um dia
seu marido matou-os.
LA 06/001
Eunucos Da Vida
Verás as gôndolas cheias —
não terás fome.
Verás os dentes impecáveis
da novela das 8 —
não sentirás dores nos teus.
Verás o vinho dos deuses —
não terás sede.
Verás a fartura e o luxo,
a beleza e as delícias,
os bens, o brilho, o conforto —
nem pensarás em gozá-los.
O mundo te criou e fez
eunuco da vida.
LA 06/001
Uma Página A Limpo
( Que Eu Me Devia )
E isso de explicar
a razão pela ciência?
Não é como explicar a personagem
pelo autor,
ou Deus pela criatura?
Não é isso confundir
multicausas com simples efeitos?
Não é a razão
que foi fazendo e refazendo
( de experiência em experiência )
o Edifício,
ou são as construções-desconstruções
que constroem a razão?
Pode o Ser ser explicado
por algo fora dele?
E a razão?
Não está nela mesma
a sua essência-ser:
seu onto-revelar-se —
num criar-recriar-se,
e, em recriando-se, aprimorar
seu moldar e remoldar
o homem e o mundo?
A razão julgará a ciência —
jamais esta àquela.
A natureza do pensamento
caminha pro matadouro
ao reduzir-se às contingências
histórico-naturais —
fantasma das filosofias pós-modernas.
Mas isso é bom: cala o asno
antes do debochado zurro...
Ó Quine, ó Rorty e seus aceclas,
até quando ludo-esposareis
o reducionismo da vida?
Dizei vossas loucuras, mas dizei-as
com umas pitadas de riso —
senão o que é que sobrará do que dizeis?
A psicologia evolucionista
e o grosso do naturalismo
são pedras demais
para o seu pobre caminhãozinho
( seu fonfonzinho ) —
hoje, a patinar no brejo...
O evolucionista
é como esse triste e parvo caminhão —
que não pode nem mesmo carregar-se vazio,
mas ainda quer transpor o pântano
com a sua loucura feita de pedras.
Porventura não somos luz (?)
e toda a nossa automissão
não será deixá-la brilhar,
a iluminar-nos para sempre
com a luz Daquele que “a princípio era o Verbo”?
Deixarmo-nos, portanto, ser a luz que sempre fomos?
E voltarmos para casa pela vida-Nele,
sim: através de Sua vida
que sempre fora a luz dos homens?
LA 03/001
De Pai Pra Filho
— Está vendo o corre-voa, filho?
Que corrida obscena, isto é:
recíproco-furibunda?
— Estou, meu pai. E o que fazem?
— Estão jogando o jogo trino:
droga, sexo e cartão de crédito.
— E até quando vai o jogo, pai?
— Até cada um de nós ver-se
um louco teleguiado.
— E depois, pai?
— Depois a gente cai fora
( cada um à sua vez ) —
e vira um louco lúcido:
o que faz-e-se-vê-fazendo.
O ver(-se) derruba os ícones.
E nos torna imprestáveis...
LA 06/001
Pelo Porto
Um silêncio de pedras ressentidas
por todo o cais. Ao longe, o negro mar.
Fantasmas de princesas, desvestidas,
caminham sobre as águas a cantar...
Há duas luas muito embranquecidas
e marujos entre elas a passar...
O vento ruge coisas doloridas
entre as cordas dos mastros a rezar...
Lá longe brilham luzes bem pequenas —
um buquê de radiantes açucenas,
por entre o amplo escuro negrimorto...
E vai se aproximando a claridade,
bem mais, bem mais: é um navio-cidade —
o Queen Elisabeth atraca ao porto.
LA 06/001
Ver-Revisões
Quando esse tempo envelhecer, teremos
muito que nos contar: outras idades
com seus tenesmos outros, e saudades
tornadas risos, flatos que esquecemos...
Mas não diremos ( sim: jamais diremos )
que eram bem mais fiéis nossas fidelidades,
mais honestas também nossas honestidades —
é sempre muito pouco o que aprendemos.
Saberemos que o humano em nós se suja
em suas próprias, limpas intenções...
e que o sabiá é o que é pela coruja,
pelo tiziu... não pelo uirapuru
que ao anu deve as celestiais modulações...
E em tobogãs de azul, veremos o urubu...
La 06/001
Ali, A Infância...
Ali, a infância foi um belo parque —
deixou seus carrosséis a cirandar...
Algo encantado como o desembarque
em terra santa, sonho a marulhar...
Algo que brilha e com seu brilho marca
o coração com tais tempo e lugar...
e de tão mágico nos açambarca
a lembrança de tê-lo de lembrar...
A infância foi ali tão transparente,
de uma alegria assim tão inocente —
que ser feliz nem dependia de se ser...
Hoje, a lembrar minha primeira idade,
vejo-lhe um nume de felicidade —
que era feliz quanto seu não saber.
LA 06/001
Agora
Agora
a ideologia fez-se realidade.
O virtual, — palpável.
A poesia cimentou a via
que vai por cima —
bem por cima do centro e das margens
(assim como uma aeronave,
mas não dessas de faz-de-conta:
dessas que o dinheiro compra...
Mas o ser feito a sua própria nave.)
Agora
a utopia virou um bem comum —
um modo de estar lá,
que não se vende ou compra
( só pra quem realmente pode ).
A intuição
tornou-se o corpo paralelo do pensar —
olhos que vêem por dentro...
Agora
a esperança
virou coisa acontecida
na antecâmara da fé.
E a fé, — a senha de chegar,
o comprar sem dinheiro.
Sim: o invisível
já se pega com os olhos.
E agora, André,
que fazer com esse agora?
Esse agora
que já nem é coisa-tempo,
mas um degrau de vida
ou só um respirar mais fundo
pra perguntar ao coração
se o caminho está certo?
E agora, André, que até as pedras
aprenderam inglês
( e de quebra o intencionês...) —
aonde vão enfiar
aquele furibundo economês?
LA 06/001
Drama Ambulante
Não fosse seu não saber,
o sábio se suicidaria —
não pelo que lhe faltasse,
mas pelo saber errado:
pela sabença acumulada
que lhe virou angústia —
busca impotente da certeza
e da serenidade.
Sua condição trágica —
condenação à racionalidade
e seu oposto-delícia:
o fascínio da loucura.
És homem?
Então tens uma marca,
um ferrete —
a tua angústia,
que vem dos lados das paixões,
dos ideais:
do que te foi plantado
no velho ego
desde papais-mamães atrás.
Como renascer — eis a questão —
desse ego mais-que-velho?
Como morrinascer-se outro?
E o que fazer com o velho renascer
se o seu renovar será sempre
um outro processo de velhice,
uma outra morte?
Sim, de que vale tudo isso,
se a realidade
não é isto nem aquilo —
mas este ou aquele estado
em que de tempos em tempos
se busca outro
e morre parecido
com a necessidade
de renascer diferente?
Homem,
ou drama ambulante?
Os dois:
os dois em um —
que se quer eximir
do destino raivoso,
ou melhor: dolo-penoso
de existir.
LA 08/001
Destino-Imaginação
O mundo conta mentiras
que adoramos
e em que fingimos acreditar.
Acreditar
é dar de mamar aos sonhos
e vê-los correr crianças
nas varandas do coração.
Vê-los meninos e meninas
pelas ruas de nós mesmos,
isso nos forja um modo
de pensar —
um jeito de querermos ser:
(a)venturas/desventuras,
heróis/bandidos,
o belo, o feio,
o bom, o desprezível,
o forte, o fraco...
Misérias e grandezas.
Luz e trevas.
Os opostos que se explicam
e conciliam os seres
e as coisas.
Sim: há um elo emblemático
da ficção
com o destino-imaginação
do homem.
Um desejo de moldar-se
segundo o intento
em que se quer a si mesmo
transcendido:
chegando-se na garupa
de um sonho
agarrado na cintura
de si mesmo...
Sonhar é ser lá em mais tarde.
LA 08/001