NEM ISTO NEM AQUILO

   Textos 2

                           Laerte Antonio

 

Cena

Ei-la descendo a escada —

sorriso decotado,

seios soltos no vestido leve,

e toda ondeando entre os degraus...

 

Olhar amplo e cibernético:

vê esvaziando-trespassando...

Brisa-brilho-esguiez...

O gesto em flor —

um chafariz de frescuras.

LA 04/001

 

Nau-País

 

Nau saqueada,

e deixada sem rumo,

solta no mar.

 

País saqueado,

e abandonado-entregue,

guinchado-preso-atrelado

aos fundos financeiros

do capitlismo animal.

 

Nau-País, olha:

os abrolhos!

LA 04/001

 

 

 

 

Núncaras Das Nunquetas

 

Um dia

a gente vira poesia —

a dor

vira sonho de pedra.

 

Os outros

falarão até com respeito

de nós —

não sentirão mal-estar...

 

E a gente

engrossa a sopa de pó

daquele

panelão terceirizado...

 

O mais?

É vento masturbando

as plantas

e invaginando pólen

na vida.

 

O mais do mais?

Só Deus

e os hierofantes do mistério

é que sabem

desse mais, alma do pó.

 

Ah, pobres, pobres xotas!

Pobres fiofós!

Quem pinxotou, pinxotou.

Quem fiofou, fiofou.

Quem lesbiou, lesbiou.

Quem felaciou, felaciou.

Quem punhetou, punhetou.

Quem não, —

núncaras das nunquetas.

LA 04/001

 

 

 

 

Pacas De Pácaras

 

Seu funeral foi abrilhantado

pelas lágrimas da esposa .

Para os amigos, —afeto genuíno.

Para os adversários, —artes dramáticas.

Mas o placar ficou no empate,

quando alguém observou:

Mas os amigos dele (defunto) não são os dela,

e vice-Versalhes lá d’antanho —

com guilhotina e discursos de Robespierre...?

Justiça seja feita:

a pobre senhora chorou e gemeu tanto,

que —ali— o padre a consolou,

e —quatro meses depois— casou com ela.

.........................................................................................

E que perdoem os invejosos,

mas foram felizes pacas de pácaras.

LA 05/001

 

 

 

 

Pouquice

 

Sexo, alguém que te diga “eu te amo”,

casa, filhos, sociedade, religião —

pouco, pouco demais: pouquice —

sem algo ( geralmente a arte ) que te leve

a organizar-te,

repaginar-te,

conhecer-te a ti e ao outro ( ou

o outro e a ti ),

e desse modo um pouco de Deus

e do Universo —

sem viver teus pensamentos,

libar tuas idéias,

vindimar tua alegria,

ceifar teu trigo —

cear com Ele

lá no teu coração:

já metabolizado

em consciência de lembrar

o caminho que te liga

com as varandas daquela casa...

    Sem isso,

terás vivido para quê?

LA 05/001

 

 

 

 

Biggs Goes...

 

Vai Biggs.

                               Go home

( se é que algum lar te existe...).

Após ter comido o tenro,

o melhor de nossa alface,

acariciado o belo de nossas praias...

mil e mil incursões

pelos jardins suspensos

que pulsam ao sul da carne —

vai dizer às inglesas

que com Viagra e o jeitinho

( aprendido entre nós )

talvez ainda...

 

Go home. Volta pra terra

de Robin Hood.

Aqui viveste — gostosamente —

a tua adolescência de herói.

Glamouroso e amado

ladrão —

ladrão romântico: de trem!

 

Trabalhando, estudando, pesquisando,

fazendo arte: criando —

não se consegue nada

perto da fama e prestígio

que granjeaste —

principalmente entre aquelas mãos

que manejam o raio

das mumunhas e mutretas...

 

Biggs, Biggs! Não foste assim tão grande...

Mas o glamour

faz as entranhas suspirar.

És santo, ingênuo, filhote e aprendiz

perto dos magos que aqui temos.

 

Agora que choveste

barris e barris de cerveja

sobre este chão,

que encaçapaste

o teu metano nestes ares —

vai, ladrão, vai fazer charme-fama

e money com o tal  The Sun...

 

Que pena....

Já eras nosso. Te amávamos,

só não éramos correspondidos...

 

Vai, bom ladrão. Super-herói.

Agora vai ( já que vendeste

a tua volta...): go home-jail.

Fizeste inveja a muitos...

Vai com Deus.

Diremos à nossa molecada

que  — para nós —  eras “fichinha”:

um simples aprendiz.

LA 05/001

 

 

 

Plantemos Flores

 

Se viver não apraz,

procure outra coisa —

e quando achar nos mostre.

 

Se você insinua que...

Dizemos que isso é bobagem —

milhares foram por aí...

mas até hoje

jamais se viu ninguém contente

em tão exíguos apartamentos...

 

Plantemos flores.

Com elas nos enganamos,

e gostamos:

dizemos ao nosso medo

que a vida é linda,

e que a morte

— coberta de flores —

só é o fim

da garrafa do vinho...

LA 05/001

 

 

 

Consideratio

 

Cientistas

estão dizendo por aí, Cleópatra,

que não eras tão bela assim...

Aliás, bem ao contrário:

baixa, gorda, dentes podres, nariguda...

De minha parte considero:

Se assim — tão-anti-e-não —

puseste dois generais de quatro —

certamente, sendo bela,

segurarias todo o Lácio

na tua brava xota.

LA 05/001

 

 

 

 

Trocando Lâmpadas

 

Ele fazia a empregada

subir de costas na parede

da copa, depois das onze...

 

Toda ensonada, sua esposa

( que fora tomar remédio )

os surpreendeu, certa noite,

na copa muito escura...

Ele, então, grita à empregada:

Enrosca a lâmpada! Enrosca a lâm-pa-da!!...

.................................................................

A esposa, bocejando, lhe pergunta:

Mas no escuro, Teté? No escuro?

Pobre da moça, Teté! Pobre da moça!

Como pode... nesse desconforto,

fazendo a pobre moça

subir pela parede?!

Bem... fiquem ( bocejos...) à vontade —

vou acabar de dormir...

LA 05/001

 

 

 

 

Utilitarismo

 

Certo dia entrou no quarto,

e falou sério:

Enfim, a três!... Mas calma, calma!

Pode ficar com a minha cama

e com a minha patroa.

Já fui.

......................................................................

Mais tarde soube

que o cara levara a cama,

e deixara a mulher.

LA 05/001

 

 

 

 

Poema Paralelo

 

Já não sei se me sobrevivo,

ou se vivo lado a lado comigo...

O que preciso

é ser o meu amigo de hoje.

O fogo que roubei dos deuses

fiz dele uma fogueira pra esquentar os pobres

e um mais que pobre, que trazia em mim...

Não raro tenho muita saudade

do afeto e cuidados que não me deram na infância

e isso, não sei por quê, se me vai tornando

em discreta felicidade:

uma ventura com o olho esquerdo sangrando...

mas ventura.

Por vezes pergunto ao meu coração

se ele se recorda do caminho de casa....

e ele me diz que sim, num tom tão lúcido,

que isso é toda a minha força —

e a minha coragem de prosseguir

na longa caminhada sobre as minhas águas...

Então pergunto ao meu anjo:

Se me despenho, tu me seguras?

E ele, tranqüilo: Não, porque não cairás.

E a minha fé toma uma forma de candeia

( do tempo de Ronsard ), e me ilumino —

com uma luz que vem da sombra

do sorriso de Deus.

LA 05/001

 

 

 

 

            Dor Porreta

 

É noite, e dói.

Dói, não por ser noite,

mas porque a noite

é minha dor.

 

Se minha dor amanhecesse,

não poderia mais doer —

já não seria noite,

mas dor-manhã.

 

E a manhã é uma baiana

vendendo acarajé —

a sentir a dor de não ver

o seu André

que fugiu pra Paraíba

a ver se é bom mesmo o gosto

de comer mulher-macho...

 

A dor que não dói não presta.

Já, se dói, é dor porreta,

é gozo da molesta —

que já nem dói.

 

Entre doer e não doer,

o bom é nem saber

quem fez os quitutes da festa.

E comer-descomer-comer

o que a vida oferece —

sem fazer doce nem chiquê.

LA 05/001

 

 

 

 

Ah, Hoje...

 

Ah, hoje tô que tô!

Rosinha ainda não veio

e nem telefonou.

 

Vou abrir uma cerveja,

fritar bolinhos,

coçar os mimos —

até que venha

quem me cuide

com a mesma perícia

com que o padre consola

aquela mulher cheirosa

que fala mal do marido.

LA 05/001

 

 

 

 

Patos/Logias

 

Vou ver se encontro

uma mulher barata

para cuidar de mim.

E antes, bem antes que amanheça,

me esgueiro pelo silêncio,

e dou no pé —

pra que o barato

não saia caro:

isto é, o gato

não coma o rato —

nem haja patos nem logias.

LA 05/001

 

 

 

 

Antes Só

 

A minha Glória

jamais fingiu orgasmos.

Era honesta —

ao invés de simulá-los,

preferia dormir

durante as escavações.

Seu primeiro marido

a abandonou por isso,

eu adorei:

antes orgasmar só

que mal-acompanhado.

LA 05/001

 

 

 

Os De Baixo

 

Não é preciso, Rosa,

lavares minhas cuecas —

assim não despetalas

as tuas mãos

e continuas rosa.

 

A máquina tem mãos

para lavar, secar —

e é só usar.

Melhores que as de Clarinha

( sua irmã )

que — quando me socorre —

cobra em dólar

e em semanas de sins...

 

Poupa-te, Rosa.

Que tenho máquina

e — em caso extremo —

tenho Clarinha

que não deixa os de baixo

tão limpinhos assim,

nem com a maciez

de rosas —

mas até que ajuda bem.

Enfim, minhas cuecas

não são assim tão metafísicas.

LA 05/001­­

 

 

 

 

Dá trabalho.

Amizade é como carro:

sem as atenciosas manutenções,

a gente fica na mão.

LA 05/001

 

 

 

 

À sombra calipígia das mulatas,

ó Proust,

é que se busca e rebusca

o tempo

gostosamente perdido.

LA 05/001

 

 

 

 

Menos O Amor

 

Te dou tudo, Glorinha,

tudo —

menos o meu amor,

que troquei por um cavalo

que tem por nome Sossego.

 

De ti não quero tudo —

só o que puderes —

as duas peras,

os dois melões

e a peruca.

Quanto ao teu amor,

dá pra quem te apetecer.

 

Não-amor com não-amor,

Glorinha,

além de coisa chique,

é bom porque não dói.

LA 05/001

 

 

 

 

Time’S Money

( Super-Fs )

 

Português executivo

e sem tempo a perder,

deu para a amante

um papagaio gigolô-anunciador —

um tremendo dedo-duro.

 

Meteu-o numa casinha

que plantou lá no bico do telhado

do sobrado —

e o ensinou a transitar

entre as telhas e as janelas...

 

Mal o português descia                         

da limusine,

o penoso gritava à moça:               

Prepara a sobremesa,

minha dona,

que o patrão evém que vem —

doidão pra comer amei)(a...

Depressa, que time’s money!

Depressa, que time’s money!

Depressa, que time’s money!

 

O português levava

9 minutos

( cronometrados

pelo escudeiro e guarda-costas )

para despir-se e embrulhar-se.

Para vestir-se, despedir-se

e entrar na limusine —

4 minutos.

E ainda dava tempo de lembrar

que voltava no outro dia —

à mesma hora,

e que não se esquecesse

de cuidar bem do Louro.

 

De quinze em quinze dias,

o patrão fazia ao Louro

uma pergunta inquisidora:

E então, Louro —

que é que zuleide tem feito

na minha ausência?

E a resposta, por vinte anos,

foi sempre a mesma,

clara, claríssima e tríplice:

Nada que tu não faças!

Nada que tu não faças!

Nada que tu não faças!

..................................................

E o português se ia —

feliz da vida

e de seu papagaio.

LA 05/001

 

 

 

 

O Infinito Dizer

 

Escrevo,

porque escrever é uma forma

de pensar em voz alta.

Assim me escuto melhor

e já reescrevo o escutado

para mudar o tom

e o ângulo de ver.

O escrito e o reescrito

não têm razão de ser,

se o seu escopo

não for o infinito...

O infinito dizer(-se)

que é quebradiça a linha

do pensamento —

e a conclusão só existe

na conclusão de conclusões.

Assim que se conclui,

uma coisa se inclui

na gestação de exclusões...

Água que corre por nós dentro,

a dar-nos movimento e liberdade —

pensar é isso.

E o pensar em voz alta

( o pensar por escrito )

ressalta —

pois que congela por uns tempos

o pensamento —

que eis... começa a oxidar-se,

já que a palavra

é o ser em movimento.

LA 05/001

 

 

 

Padeirastro

 

Se ao menos dispuséssemos

de alguma manteiguinha

pra comer o pão do Diabo —

daríamos graças a Deus.

 

Mas não. Tínhamos não.

O pão, sim, não nos faltava —

o padeiro era pontual:

não se deixava esperar...

 

Um dia, eu bem menino,

o padre me perguntou

se acreditava no Diabo

e, se sim, onde eu pensava

ele estivesse...

 

Respondi que o Diabo

eram os pais que esfolavam

e exploravam seus filhos...

e que ele estava

entre a maldade e a ignorância —

e naqueles que produzem

a pobreza-que-dói.

 

O padre olhou-me assustado,

como se não acreditasse

que o Diabo existe.

LA 05/001

 

 

 

 

Rastejos

 

Rastejos

pra ser feliz, não! —

dizia André,

um cara tolerância-zero.

E acrescentava:

Aliás, sem tais rastejos

é que talvez exista

felicidade.

 

Sua mãe, que quase sempre

ouvia a filosofada

do mancebo nietzschiano,

um dia lhe pergunta:

Quer dizer, meu André, que minhoca

não pode ser feliz?

Ao que o filho reforça:

Minhoca pode, mãe.

Um homem, não.

 

Não morreu de demência...

Nem jamais levou nada a sério

do que pregava.

Morou vinte anos

com uma bela mulata

de quem sempre apanhava muito.

LA 05/001

 

 

 

 

Quando Estamos Poesia...

 

Quando estamos poesia

não temos outra escolha

a não ser apará-la —

sulfite, pauta, pedra, pincel...

e outras e outras maneiras

de roubar o fogo aos céus.

Por falar nisso,

faz tempo não vejo Maria...

Quem sabe logo ela vem

pra dar pautas para o dia

e olhar maroto às flores.

Aí, sim, maduraria

o fruto de um sonhamento:

uma supersimetria —

um pouco de matéria,

outro pouco de energia —

uma alegria-harmonia

( lá no sentir-pensamento )

a que só pode colher

a mão que estiver poesia

num sonho sempre atento

de ave em longa travessia.

 

Sim: quem sabe Maria

não vem hoje

e o tempo vira poesia

com chuva fria?

LA 05/001

 

 

 

 

Semeadores De Anomias

 

Tempestades não só dentro do espírito,

mas também nessa alma emocional,

a tiracolo como um embornal —

e dependente qual pronome enclítico.

 

Foram apocalipses muito vívidos,

implantados em terras do mental —

muitos anos de sopa cultural:

dominação dos homens vis e frívolos.

 

Dominação dos que distribuíram

a pobreza pro mundo e a si reuniram

toda a riqueza e o mel das mordomias.

 

Domínio dos mamíferos de luxo,

refestelando, empanturrando o bucho

de seu roubar-lesar semeando anomias...

LA 05/001

 

 

 

 

      Negociando

 

Quanto quer, a rapariga,

pra me deixar rachar

o )( de sua ameixa?

 

Cem paus!?

valer, bem vale,

o diabo é ter.

 

Ah, vamos lá, Isa!

Faz um precinho bom —

é fim de mês...

Tô duro —

duro em duplo.

Dou 10 reais,

quando me vier o aumento —

dou mais cinco... ou...

 

Juro: não me demoro...

Mais trabalhoso falar

que fazer...

 

    Por vinte meu nego come,

por dez... mais cinco... passa fome.

Por vin-te, meu nego come.

 

    Tá bom, Isa! Põe a mesa.

LA 05/001

 

 

 

 

Chuvarada

 

Vim, mas já estou indo,

isto é: já fui faz tempo.

Chegou Joaninha

( a da bateia elétrica? ) —

então desfui.

Tô mais aqui

que quenga oferecendo

peruca nas esquinas.

 

De fato, Joaninha

fazia

o lado masculino

da pensão

chover —

e coaxar-coaxar-coaxar...

 

Eta pau!

Eta ferro!

Essa Joaninha

fazia que fazia

chover,

e goteiras cantavam...

cantavam a noite inteira.

LA 05/001

 

 

 

 

Jardin Potager

 

Estava mais pra horto

que pra horta —

c’etait un vrais jardin potager.

Frei Antão,

hortelão-jardineiro,

lá no fundo, atrás da moita,

e coberto de tarde-noite —

a cutucar a fruta

como a ver se está madura...

Cutuca-a e apanha-a pelo talo:

um cacho de uvas...

O frei vai devagar, vai devagar, vai dev...

até prensar três uvas bem graúdas

de que garimpa o ouro...

e pronto:

colheu a fruta —

recolhe o pincho chovido...

 

O urutau

modula o canto-risada

entre o bambual

e o frei cansado,

ainda muito ofegante.

LA 05/001

 

 

 

 

Todavia...

 

Todavia... não me darei ao luxo

de me tornar um triste misantropo.

Vou sempre oferecer aquele copo

de água fresca e do pão que ia pro meu bucho.

 

Todavia... não me darei ao luxo

de fingir que é normal o adultério...

Nem confundir o hilário com o sério

ou trocar azaléias pelo buxo.

 

Todavia... prefiro o pouco ao muito

quando o muito se finge de gratuito,

mas prende a nossa alma a quem o dá...

 

Também dispenso aquela regalia

em cujas mordomias sei que há

o prejuízo de muitos, todavia.

LA 05/001

 

 

 

Ruína Em Pé

 

Da velha casa, só um esqueleto —

toda lagarteada nas paredes,

a fazer crer seus donos e arquiteto

do outro lado das fomes e das sedes...

 

O telhado flutuando entre o afeto

do cupim com a madeira... agora em redes

de trepadeiras invadindo o teto

com a hera a exibir raivosos verdes...

 

Muros de taipa a pajear avencas...

Três bananeiras em mirradas pencas

e o sorriso de dálias doloridas...

 

Porões mofados recordando histórias

de moças “Catarinas” e “Vitórias”—

contando a primos lendas tão compridas...

LA 05/001

 

 

 

 

Hora Desturbinada

 

Vi uma ave,

                    grasnando feio,

                                             o bico enorme,    

                                                                      voando baixo —

as asas em forma de castiçais

com muitas, numerosas velas

e uma  lamparina ao bico.

E havia um céu de Deus-nos-livre

com negridões e clarões,

relâmpagos e trovões

e apocalípticas previsões:

apagões-apagões-apagões-apagões-e-ões-e-ões-e-ões...

ecoando em excansões

por todos os rincões

desta terra e hora desturbinadas

com as águas marulhando

por cima dos ladrões,

por cima dos ladrões,

por cima dos ladrões...

Sim: aos borbotões, por cima dos ladrões...

 

E me atirei por terra

( prostrado de terror ) —

e vi que o céu se abria em mil turbinas

( convertidas em papéis verdes...)

que  — apesar de não-instaladas —

abriam fauces enormes e gritavam:

“Estas trevas espessas e felpudas

devemo-las a São Pedro a São Pedro a São Pedro

a São Pedro a São...”

 

Alguém então ousou bradar-lhe

( à ave de pio feio

e vôo baixo ):

“Ó vós de bico formidável,

e trevosas previsões —

até quando nos impingireis

o pânico dos apagões?”

 

E a ave em forma de castiçais,

velas e lamparinas,

com seu bico aterrador,

grasnou ao perguntador:

“A respeito desse dia e hora

ninguém sabe,

nem os anjos do céu,

nem os santos mais cê-dê-efes —

mas somente São Pedro,

mas somente São Pedro

( e se indo no eco de seu grasno ) —

mas somente São Pedro, mas somente São Pedro, mas somente São Pedro...”

LA /05/001

 

 

 

 

Nem Por Isso...

 

Paulo conheceu Michele,

e esta lhe disse que “coisinhas”

de modo algum satisfaziam.

Paulo fez que não ouviu,

porque Laura achava demais,

e Joana tinha orgasmos

de expelir pedriscos e areia

por todos os orifícios.

 

Paulo era pedreiro dos bons.

Era cobrão no reboque

e sabia-se perito

em acabamentos.

LA 05/001

 

 

 

Capinologia

 

Às vésperas de eleições,

ele punha a mula na baia

com o melhor dos capins.

 

Ao rabo lhe amarrava

um sétuplo pincel

com as cores do arco-íris.

 

Fixava-lhe a cada flanco

uma tela —

preparadas com esmero...

e cada uma com o nome

de um de seus dois candidatos.

 

Ao cabo de sete horas

( dizia-se um pitagórico...),

ia buscar a encomenda —

examinando-as de-ta-lha-da-men-te...

 

Aquela que apresentasse

as pinceladas mais absurdas

com um quê de futuro-do-talvez —

era a do seu candidato.

 

E Leôncio ( chamava-se Leôncio )

afirmava, com boca de uísque,

que jamais perdera uma eleição.

LA 05/001

 

 

 

 

Água Limpa

 

O poeta só é bom

depois que o mundo lhe come o ânus —

e ele se torna um ser indgnado.

Sem pai nem mãe,

sem amigos-cachorros

ou cachorros-amigos —

maduro de porradas-vivenciações.

E nem por isso boquiaberto,

tampouco revoltado —

mas senhor do seu riso.

Aí se torna um-ser-gente-com-gente

com quem se tem prazer de caminhar.

 

Ferrado e adulto,

já não canta nem chora.

Seu amor, seu grande amor...

não mais lhe vale.

E o bom é que tais tempos

não voltam mais.

 

Seu  verbo perambula no hoje

entre o acervo do passado

e nebulosas que adivinham...

Qualquer puta ou puto

lhe serve como oráculo...

O homem e o mundo

é só o que lhe importa.

Deus? Sua aventura de ser.

 

E o mais... é passar a limpo

a sujeira de cada dia —

pois sabe que a persistência

da água limpa a pingar na panela suja

vai fazendo-a transparente e potável.

LA 05/001

 

 

 

 

Vinho-Consciência

 

Jamais terei o magnífico Graal —

o caneco ou o copo simples:

aquele recepiente em que Cristo

bebeu na última ceia —

não tenho, não tens, não temos,

mas  ir-lhe ao encalço, como se existisse,

fez com que houvesse a lenda

de imaginá-lo existindo:

o símbolo que vai além da coisa.

E que bom não o termos —

assim não seremos nunca roubados

do que não teríamos...

nem nossa fé

será nunca metonímica.

 

Temos muito mais que o Graal —

temos a uva e o pão

com que podemos cear

enquanto vivermos:

Temos Seu corpo e Seu sangue

em que Ele transformou toda a vida...

Nos que Nele crêem? Não. Nos que sabem ser Ele

a luz que os sustenta em Suas promessas

e faz o sonho ser verdade.

A luz que é a argamassa

entre os tijolos de crermos Nele:

as pilastras, —o amor;

os tijolos, —a fé;

o edifício, —a esperança.

 

Ao Graal —nenhuma importância,

mas ao sonho,

o vinho-consciência

que molhou aquele pão —

o pão metabolizado

na luz da salvação.

LA 05/001

 

 

 

 

Engraçado...

 

Lembro-me que ele vinha,

lia os meus manuscristos

e de cada texto

fazia dois ou três, às vezes mais.

 

Almoçava à minha mesa,

Chamava-me “carinhosamente” Fernando Sancho...

Quando eu ia ao banheiro

ou que, por outro motivo qualquer

me ausentava —

ele, meu ex-aluno,

juntamente com minha então mulher,

falavam mal de mim...

Ele era invejoso como o Demônio...

queria ver-me destruído, sem dúvida.

Entrava no íntimo da minha vida,

me “ensinava a viver” —

não raro ria-se de mim na minha cara.

Gostava de ver-me fraco

e saboreava o pensamento

de que eu pudesse destruir-me...

Engraçado é que ele não  percebia

que suas intenções eram fáceis de se ver —

assim como as grandes cobras...

os grandes ratos...

os gambás entre galinhas.

Visitava-me amiúde.

Quando se ia,

eu me sentia doente —

deixava-me seu cheiro de mortalidade:

mortalidade conturbada,

boçalizada,

suas vibrações perturbadas —

mediunizadas por Aquele

que se disfarça de anjo de luz...

Você me perguntaria:

mas por que permitia viesse vê-lo?

Resposta: Ele e meu ex-cônjuge

tramavam esses encontros...

Eu percebia tudo e queria ver

até aonde desejariam chegar.

Pu-los em boas mãos: na do Deus Vivo.

 

Meu ex-cônjuge se foi para os lados da carne.

Ele caiu no rio com carro, sua mulher e filhos —

todos se salvaram, menos ele,

cujo corpo as águas não devolveram.

 

Engraçado: nunca senti ódio algum deles,

nem medo, asco ou dó.

Foram como aquela chuva e vento

que quebra o que você tinha de mais belo...

E Deus ( juntamente comigo ) deixou-os

pisar no mais adorável do meu jardim...

Mas preservou-me a vida e a de duas

das minhas três filhas...

O mais... é dor que não vai se demorar...

LA 05/001

 

 

 

 

Chuvas

 

Eram chuvas macias, femininas

que caíam andróginas de humores —

com um jeito de simples turmalinas,

goteirando no sonho em várias cores.

 

Relinchava o cavalo, e em suas crinas,

a chuva vinha em gotas de suores...

( E esse cheiro cortante de latrinas

de onde é que vem, senhoras e senhores?

 

Vem lá detrás da festa, — explica o padre,

mas não liguem: está tão linda a festa ...)

Ah, eis Angélica, minha comadre...

 

Chuvas, sim: longas chuvas de libido...

Se a minha santa olha pela fresta —

vai ver muito galope com gemido.

LA 05/001

 

 

 

 

Só Um Tempinho...

 

Se não tens um tempinho pra sofrer,

como é que vais saber

que a felicidade é uma vilã...

e — sem suas trapaças e chiliques —

não podes ser feliz?

 

Só um pouquinho, vai!

Sofre um pouco e verás

que inclusive do sofrimento

a gente pode extrair

alguma felicidade.

LA/06/001

 

 

 

Senhores-Escravos

 

Se não podes olhar o mundo

por dentro,

não tentes —

ele é bem pior

que o pior dos pesadelos.

 

Se és capaz de viver

entre o sonho e o real —

fica então por aí:

sem nenhum constrangimento,

elege o “bom”, o “belo”,

o que te serve e a quem servir

por entre o fervilhar

dessa não-esperança —

a distopia de seguir em bando...

 

Deixa aos machudos,

às femeúdas

a realidade que eles comem

e descomem no dia a dia

do seu fazer com o traseiro

enquanto são tragados e pensados

pelo mundo —

nessa loucura reproduzida

por suas próprias misérias.

Escravos de uma liberdade

cuja bandeira eles agitam

e por ela trucidam, matam e se devoram —

bobos da corte

de um reino que nem existe.

Senhores-escravos

e escravos-senhores —

cujos papéis se invertem

como o fluxo e o refluxo

das águas sem repouso.

LA 06/001

 

 

 

 

Internuvens

 

... é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é...

... vazio-vazio-vazio-vazio-vazio...

Vazio montado no ar,

vazio que o ar não preenche:

é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é...

Vazio buscando temas, gente, vozes —

fantasmas digitais,

vozes em todos os seus timbres, tons

e pos-si-bi-li-da-des...

Sim, possibilidades: venturas-aventuras...

e quem sabe... e quem sabe... e quem sabe...

... é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é-bi-é...

Mentes tecendo corpos de utopia,

presenças telemáticas,

tecno-acariciáveis...

Dedos falantes

adivinhando vozes,

vozes buscando timbres dídimos, sonhos inconhos...

 

Triste é correr atrás de algo,

algo sempre em velocidade

mais que humana —

o tempo já não estende a mão

para colher a rosa

que já não é senão só uma idéia-rosa...

 

A estrada

já não mais palmilhada,

mas fluido-espacial,

sonâmbulo-atemporal —

feita virtual:

sem pés que a pisem,

nem olhos que adivinhem

seu após-curvas, seu além-horizonte...

 

Com seu querer em falso,

seu tropeçar nas nuvens —

o homem finge buscar o longe

de um perto que já não há.

 

No entanto o coração reclama

chão-calor-mão-voz-hálito —

uma felicidade

feita de pele,

tempo e presença.

LA 06/001

 

 

 

     

Usos E Frutos

 

Pródiga,

a vizinha o prendera

pelos papaias

e pela tangerina.

Quanto mais se degustavam

tanto mais se queriam —

como as sandálias dos hebreus:

quanto mais eram usadas —

tão mais macias e impecáveis.

 

E André foi saboreando

( era vinte anos mais moço )

devagar e assiduamente

os dons de sua árvore —

até que a mesma secasse...

 

Seca de vez,

André e zuleide

( irmã da que virara lenha )

faziam juntos

um tal doce de mamão

com outra tal ambrosia

de tangerina —

que não havia como não comer.

LA 06/001

 

 

 

 

Presidasta

 

Esse filme já vimos.

Fica atrás da realidade

o seu estúdio.

Seu roteiro — encomendado —

atravessa gerações.

 

Seu diretor e sua equipe

beberam até cair,

e dirigem sentados

atrás da porta do palácio.

 

Tudo estaria bem

não fosse esse senhor

o presidente da república

do país que ele está filmando

( gestão após gestão )

para o seu povo —

com a sua esperança

moída sempre

pelo Reproduzido.

LA 06/001

 

 

 

 

Bucólico

 

O-o-o-o-oi?!...

                              Vo... vocês?!

Não, não: mantenham-se montados...

e não se vexem, ô xente!

Vão devagar. Devagarinho:

bem à vontade,

arretado: mas sem pressa —

eu também não tenho nenhuma.

Espero como Jó:

paciente, sofrendo quase alegre...

Sim: paciente. Nenhuma pressa.

Devagar. Vão devagar.

Não tenho pressa mesmo.

.....................................................................................

Não tenham pressa.

Aliás,

nessa hora,

cabra — que se preza —

não tem pressa.

Mas depois... ( não tenho pressa )

quero também: senão conto!!!

LA 06/001

 

 

 

 

 

Pois É

 

Plantados no presente,

o presente nos é —

com sua força-cultura

que nos arrasta como correnteza.

 

Conjugam-nos na passiva,

ocultando os agentes

que nos fazem sofrer

as ações verbo-sociais.

 

Muito antes de pensar,

somos pensados.

Bem antes de sonhar,

somos sonhados.

Já antes de querer,

somos inculcados.

Antes, bem antes de aceitar,

já prepararam

a nossa aceitação.

 

Escravos orgulhosos

de nossa liberdade

e nossos “ismos”e “ias”—

ainda lhes cantamos “belos” hinos,

e blasonamos árias disentéricas

com a cabeça bem erguida

e o dedo indicador a asseverar...

 

Pois é.

Coisa duplamente boa

deve ser mesmo

nem perceber.

LA 06/001

 

 

 

 

            O Homem Da Chave

 

Um tempo rico,

vertiginoso,

alucinadamente urgente —

repleto de esbarrões com a realidade.

Já não podemos parar —

em nosso rumo para o nada,

amarrados a um querer abstrato —

um querer de cultura:

massificado ir-sem-aonde —

um futuro gelatinoso

e com ares de fantasma.

Tem-se a impressão

de se assistir ao velório,

não do corpo —

mas do espírito do momento —

com carpideiras não:

com tecno-risotas a um Sistema

doente da cabeça, das mãos, dos pés...

 

Esqueceram de mudar a chave...

( o homem dormiu )

e o trem vem vindo aí a toda a toda a toda...

Democracia vem vindo nele, com seu filho

mais velho, o Capitalismo, e dando de mamar

à rechonchuda caçulinha:

a Globalização.

 

O momento são arapucas

tão capciosamente armadas

em sua intertotaldependência,

que  — quando uma desarma —

só com o seu desarmar

vai derrubando todas: inclusive aquela

que todos sabem o mais ousado cê-u do planeta...

 

À beira desse Orifício geopolítico

( sempre tonitruante ),

os povos ouvem seus oráculos

e recebem seus divos mandos —

não raro em forma de bombas

ou de retaliações de mercado.

E nessa hora de tocaias

a esperança já não  é virtude

daqueles corações papudos —

mas um dever de quem preza

seu equilíbrio bio(e sei lá que mais)psíquico.

...............................................................................................................

Tomara que o homem daquela chave... ( lembra? )

acorde.

LA 06/001

 

 

 

 

            Por Outro Ângulo

( Conversa Com Os Botões )

 

Os inimigos você até pode evitar.

Os amigos já adentraram sua vida —

conhecem suas fraquezas e segredos:

sabem como matá-lo pelo corpo,

pelo moral e pelo social.

 

Em vez do amigo,

por que não o que troca

e barganha interesses? Com este

não precisa se humilhar,

nem competir

ou conversar tolices —

dar à palavra o seu lado necrófilo:

o tédio-ócio,

gigolô da maledicência

e auxiliar das autópsias...

 

Troque interesses,

e isto lhe baste.

( Importante: aprenda a rir

pela boca e nariz,

senão vai acabar

um defunto muito sério.)

 

A todos devemos amar

( é o passaporte cósmico...).

Já gostar

só o podemos de quem gostamos.

E ainda ( e antigo ):

O amar nos torna livres,

o gostar nos prende.

 

Ter um amigo

é dispor ( por tabela )

de um ou mais inimigos —

dependendo pra que lado

o temporal vem vindo...

Mas não seja por isso!

A vida tem suas penas,

mas vale o vôo.

 

O momento

não está para luxos.

Nesses tempos atocaiados,

melhor um relacionamento

( rápido ) de barganhas.

Guerra é guerra.

Prudência morreu velhinha.

Assim mesmo por ter seguido à risca

um conselho de sua santa mãe.

LA 06/001

 

 

 

 

Tardança

 

Sempre arredios no aprender.

Morosos, tardos no assumir

novas posturas de viver —

outros ângulos de ver

e ser.

 

Somos tardios no aprender.

Por outro lado, a dor

não tem nenhuma pressa ...

ante o nosso fingimento

de que ela não existe.

 

Fazemos por não perceber

que o mundo é uma ponte...

e vamos construindo eternidades

em cima dela —

coisas-nós-mesmos

que nos impedem de passar.

LA 06/001

 

 

 

 

Gesto-Instante

 

Tarde ( em nós? ).

Aves no fim do dia

que já não têm para onde voltar —

a não ser para o sonho em si mesmas,

na esperança da fresca luz

que há de fazer as coisas

reacontecer —

de sorte que seu vôo e rota

se acoplem num só gesto-instante —

ultrapassar-se ultrapassar-se ultrapassar-se...

livres livres de si e do auto-engano

LA 06/001

 

 

 

No Lombo Do Futuro

 

O presente

pressiona o futuro —

e o que ainda não seria,

pela mente-vontade,

já pode ser

e, em sendo, então ser saboreado

num tempo-antes.

Assim é que o homem aprende

a moldar com as mãos de Deus.

Sim: quando Deus nos empresta

a sombra de Suas mãos —

podemos vertebrar de luz

os sonhos mais sonolentos...

Então podemos trazer

( para o lado de cá )

as mais belas utopias:

montadas no lombo do futuro

e cavalgando sobre os verdes do hoje.

LA 06/001

 

 

 

 

Dá-Se Um Jeito

 

Se amar é viver,

troco meu cavalo por isso,

mas nada volto: há de ser na orelha.

 

Se amar é viver,

quando estiver pra morrer —

procuro aquela Eulália,

que certo dia me disse

que de jeito algum haveria

de esticar as canelas

sem um dia comermos

no mesmo prato:

com sobremesa e tudo

e, claro, à luz de velas.

LA 06/001

 

 

 

 

O pastor vinha sempre

orar com a vizinha —

até que um dia

seu marido matou-os.

LA 06/001

 

 

 

 

Eunucos Da Vida

 

Verás as gôndolas cheias —

não terás fome.

 

Verás os dentes impecáveis

da novela das 8 —

não sentirás dores nos teus.

 

Verás o vinho dos deuses —

não terás sede.

 

Verás a fartura e o luxo,

a beleza e as delícias,

os bens, o brilho, o conforto —

nem pensarás em gozá-los.

 

O mundo te criou e fez

eunuco da vida.

LA 06/001

 

 

 

 

Uma Página A Limpo

( Que Eu Me Devia )

 

E isso de explicar

a razão pela ciência?

Não é como explicar a personagem

pelo autor,

ou Deus pela criatura?

 

Não é isso confundir

multicausas com simples efeitos?

Não é a razão

que foi fazendo e refazendo

( de experiência em experiência )

o Edifício,

ou são as construções-desconstruções

que constroem a razão?

 

Pode o Ser ser explicado

por algo fora dele?

E a razão?

Não está nela mesma

a sua essência-ser:

seu onto-revelar-se —

num criar-recriar-se,

e, em recriando-se, aprimorar

seu moldar e remoldar

o homem e o mundo?

 

A razão julgará a ciência —

jamais esta àquela.

A natureza do pensamento

caminha pro matadouro

ao reduzir-se às contingências

histórico-naturais —

fantasma das filosofias pós-modernas.

Mas isso é bom: cala o asno

antes do debochado zurro...

Ó Quine, ó Rorty e seus aceclas,

até quando ludo-esposareis

o reducionismo da vida?

Dizei vossas loucuras, mas dizei-as

com umas pitadas de riso —

senão o que é que sobrará do que dizeis?

 

A psicologia evolucionista

e o grosso do naturalismo

são pedras demais

para o seu pobre caminhãozinho

( seu fonfonzinho ) —

hoje, a patinar no brejo...

 

O evolucionista

é como esse triste e parvo caminhão —

que não pode nem mesmo carregar-se vazio,

mas ainda quer transpor o pântano

com a sua loucura feita de pedras.

 

Porventura não somos luz (?)

e toda a nossa automissão

não será deixá-la brilhar,

a iluminar-nos para sempre

com a luz Daquele que “a princípio era o Verbo”?

Deixarmo-nos, portanto, ser a luz  que sempre fomos?

E voltarmos para casa pela vida-Nele,

sim: através de Sua vida

que sempre fora a luz dos homens?

LA 03/001

 

 

 

 

     De Pai Pra Filho

 

 — Está vendo o corre-voa, filho?

      Que corrida obscena, isto é:

      recíproco-furibunda?

 — Estou, meu pai. E o que fazem?

 — Estão jogando o jogo trino:

      droga, sexo e cartão de crédito.

 — E até quando vai o jogo, pai?

 — Até cada um de nós ver-se

                um louco teleguiado.

    E depois, pai?

    Depois a gente cai fora

( cada um à sua vez ) —

      e vira um louco lúcido:

      o que faz-e-se-vê-fazendo.

      O ver(-se) derruba os ícones.

      E nos torna imprestáveis...

      LA 06/001

 

 

 

 

Pelo Porto

 

Um silêncio de pedras ressentidas

por todo o cais. Ao longe, o negro mar.

Fantasmas de princesas, desvestidas,

caminham sobre as águas a cantar...

 

Há duas luas muito embranquecidas

e marujos entre elas a passar...

O vento ruge coisas doloridas

entre as cordas dos mastros a rezar...

 

Lá longe brilham luzes bem pequenas —

um buquê de radiantes açucenas,

por entre o amplo escuro negrimorto...

 

E vai se aproximando a claridade,

bem mais, bem mais: é um navio-cidade —

o Queen Elisabeth atraca ao porto.

LA 06/001

 

 

 

 

Ver-Revisões

 

Quando esse tempo envelhecer, teremos

muito que nos contar: outras idades

com seus tenesmos outros, e saudades

tornadas risos, flatos que esquecemos...

 

Mas não diremos ( sim: jamais diremos )

que eram bem mais fiéis nossas fidelidades,

mais honestas também nossas honestidades —

é sempre muito pouco o que aprendemos.

 

Saberemos que o humano em nós se suja

em suas próprias, limpas intenções...

e que o sabiá é o que é pela coruja,

 

pelo tiziu... não pelo uirapuru

que ao anu deve as celestiais modulações...

E em tobogãs de azul, veremos o urubu...

La 06/001

 

 

 

 

Ali, A Infância...

 

Ali, a infância foi um belo parque —

deixou seus carrosséis a cirandar...

Algo encantado como o desembarque

em terra santa, sonho a marulhar...

 

Algo que brilha e com seu brilho marca

o coração com tais tempo e lugar...

e de tão mágico nos açambarca

a lembrança de tê-lo de lembrar...

 

A infância foi ali tão transparente,

de uma alegria assim tão inocente —

que ser feliz nem dependia de se ser...

 

Hoje, a lembrar minha primeira idade,

vejo-lhe um nume de felicidade —

que era feliz quanto seu não saber.

LA 06/001

 

 

 

 

Agora

 

Agora

a ideologia fez-se realidade.

O virtual, — palpável.

A poesia cimentou a via

que vai por cima —

bem por cima do centro e das margens

(assim como uma aeronave,

mas não dessas de faz-de-conta:

dessas que o dinheiro compra...

Mas o ser feito a sua própria nave.)

 

Agora

a utopia virou um bem comum —

um modo de estar lá,

que não se vende ou compra

( só pra quem realmente pode ).

A intuição

tornou-se o corpo paralelo do pensar —

olhos que vêem por dentro...

 

Agora

a esperança

virou coisa acontecida

na antecâmara da fé.

E a fé, — a senha de chegar,

o comprar sem dinheiro.

Sim: o invisível

já se pega com os olhos.

 

E agora, André,

que fazer com esse agora?

Esse agora

que já nem é coisa-tempo,

mas um degrau de vida

ou só um respirar mais fundo

pra perguntar ao coração

se o caminho está certo?

 

E agora, André, que até as pedras

aprenderam inglês

( e de quebra o intencionês...) —

aonde vão enfiar

aquele furibundo economês?

LA 06/001

 

 

 

 

Drama Ambulante

 

Não fosse seu não saber,

o sábio se suicidaria —

não pelo que lhe faltasse,

mas pelo saber errado:

pela sabença acumulada

que lhe virou angústia —

busca impotente da certeza

e da serenidade.

Sua condição trágica —

condenação à racionalidade

e seu oposto-delícia:

o fascínio da loucura.

 

És homem?

Então tens uma marca,

um ferrete —

a tua angústia,

que vem dos lados das paixões,

dos ideais:

do que te foi plantado

no velho ego

desde papais-mamães atrás.

Como renascer — eis a questão —

desse ego mais-que-velho?

Como morrinascer-se outro?

E o que fazer com o velho renascer

se o seu renovar será sempre

um outro processo de velhice,

uma outra morte?

 

Sim, de que vale tudo isso,

se a realidade

não é isto nem aquilo —

mas este ou aquele estado

em que de tempos em tempos

se busca outro

e morre parecido

com a necessidade

de renascer diferente?

 

Homem,

ou drama ambulante?

Os dois:

os dois em um —

que se quer eximir

do destino raivoso,

ou melhor: dolo-penoso

de existir.

LA 08/001

    

 

 

 

Destino-Imaginação

 

O mundo conta mentiras

que adoramos

e em que fingimos acreditar.

Acreditar

é dar de mamar aos sonhos

e vê-los correr crianças

nas varandas do coração.

Vê-los meninos e meninas

pelas ruas de nós mesmos,

isso nos forja um modo

de pensar —

um jeito de querermos ser:

(a)venturas/desventuras,

heróis/bandidos,

o belo, o feio,

o bom, o desprezível,

o forte, o fraco...

Misérias e grandezas.

Luz e trevas.

Os opostos que se explicam

e conciliam os seres

e as coisas.

Sim: há um elo emblemático

da ficção

com o destino-imaginação

do homem.

Um desejo de moldar-se

segundo o intento

em que se quer a si mesmo

transcendido:

chegando-se na garupa

de um sonho

agarrado na cintura

de si mesmo...

Sonhar é ser lá em mais tarde.

LA 08/001