Normal, Normais E O Sonho-Mais
Textos-1
No Sítio Do Pau Torto
— A gente faz o que pode e nunca sabe — não é mesmo, comadre?
— É, sim, compadre. ( Eudorico, meu marido e seu compadre, saiu, hoje, pisando orvalho — foi lá pro roçadão: e só vem com a noite ).
— Pois é, comadre, a gente nunca sabe, mas sempre faz o que pode — a comadre concorda?
— Concordo e ainda recordo que se a gente faz o que pode e sabe que nunca sabe... o nosso fazimento dá sempre certo — não é, compadre?
— Compadre aceita café? — Aceito. — Aceita bolinhos? — Aceito. — Aprecia rapadura? — Muito. — Sarapatel? — Bastante. — Queijo de leite de cabra? — Delícia! — Doce de leite coalhadinho? — Adoro. — E agora, compadre, que mais quer comer? — Aquilo que compadre come sem garfo e sem faca — numa bandeja irrequieta...
— Pois venha depressa, homem, que a essa altura já dava pra gente estar palitando o desejo e o bocejo. LA 98/02
É De Fios De Prata
— Bela gravata. — Obrigado. — Por que a usa? — Porque querem. — Querem por quê? — Para diferenciar. — Diferenciar pra quê? — Para se impor. — Impor o quê? — Poder de classe. — E podem mesmo? — Têm podido. — Bela gravata. — É de fios de prata. — ....................................................................? — ................................................................. — ......................................? — ............................ — ..................? — ........... — ?
Bela gravata. É de fios de ouro. LA 98/02
O Que Diz A Rosa
Você estava presente quando a rosa disse que Deus a fez para ensinar você a amar a vida enquanto a tem nas retinas?
Toda rosa diz isso — principalmente quando a tarde desce impiedosa sobre a sua beleza — que se despenha nas mãos do infinito. LA 98/02
Gemidos Verdes
O vento sopra nervoso — mordisca, morde, desfolha: uma ardência gemente, esfrega-se corpo inteiro — esflora, esfolha, esfola: faz chovilhar folhas e flores e sai esporeando, uivante, cavalgando luxuriantes corpos primaveris.
Olha lá ele: livre, longe com seus gemidos verdes, despenteando o laranjal. LA 98/03
Dança
Nós dançamos. Todos os que vêm ''aqui'' — dançam. Mesmo nunca tendo dado um passo, a gente dança. Todos os que estão ''aqui'' — dançam. Mesmo quem não tem pernas dança. A música é ambiente, e todos dançam. Ah, se dançam! A vida faz dançar. LA 98/03
Desengenhos
Te presenteio com uma coleira e um cinto de castidade. Tu os penduras num lugar visível pra que te lembres de quanto aqueles homens que impunham tais engenhos ignoravam uma lei da vida: Quem guarda com muito zelo só se lembra do que guardou quando alguém mexe no guardado.
O doar-se vem depois do consentimento ( que é tudo ). O ato é só a mecânica do que já foi em alma-coração. LA 98/03
C'Est La Vie
Sentimento de perda, como evitá-lo? Dizendo-se que não se perdeu nada? Através de outra perda ( ! ) maior? Ou de um ganho maior?
Mas, e o inconsciente — acredita nessas lorotas? Uma perda é uma perda. Um ganho é um ganho. Se bem que há ganho que é perda... e perda que é ganho...
Mas, e o inconsciente — acredita nessas bazófias? Se não acredita — azar dele.
Perdas e ganhos são o que a vida tem e distribui sem perguntar se pode. LA 98/03
Charme Da Luz
Deus fez o amor e permitiu ao Diabo cultivasse minhocas para o amor pescar. Pescar peixes que há e peixes que não há. Não houvesse peixes e minhocas, o amor seria só divino — jamais o levaria o Diabo. Mas que graça teria neste mundo em que as sombras são o charme da luz? LA 98/03
Coisa Terrível
Há heroísmo e otimismo de ocasião ( coisa terrível ), por exemplo: ''Enquanto o chicote sobe e desce as costas descansam".
No mundo encontrei pessoas que ( de outra forma ) me diziam — sérias e honestas — coisas tão cínicas, tão mentirosas como essas tais.
Às vezes aplaudimos coisas por anuência a essas mesmas coisas do avesso. LA 98/03
Reconstrução
Viver sem idéias é difícil, senão impossível — não obstante uma idéia possa ajudar ou obstar.
Este estágio mental de saber-se gerador de idéias ( e estudar-se em tal mister ) — esse auto-observar(-se) é o que há de mais belo no processo de criar e de gerir idéias ( entre a luz e o fundo negro do Cosmo ) — processo de energia infinita que se torna evidente na reciclagem da nossa consciência — o acesso a seus estratos e à comparação deles: de transcendência em transcendência — como sonhos que se ultrapassam... Reflexão-ação-reflexão: este o processo de nos reconstruirmos com nossa vontade e as mãos do Espírito Enviado ( para os que vão por essa via ).
Não sabemos viver, mas vivemos pela graça da Vida — que é pródiga e não tem pressa... Um dia todos chegaremos àquela Cidade (em nós) cuja luz é a presença do Cordeiro. LA 98/02
Notas
Ponderando entre um antes e um depois, o homem considera a perda e já remonta o palco de um novo sonho para um possível ganho. De perda-ganho em perda-ganho o homem perde para o tempo que lhe vai usurando vida a seus humanos recomeços.
Entre o poscênio e a ribalta, o homem vê que tudo quanto viveu foi só um bocado pouco — por um ângulo mesquinho do seu meio e de si mesmo.
As rosas lhe são agora mais preciosas e as tardes já não as matam: as duas morrem de uma só causa — a de cumprir a vida. O inverno, agora, lembra-lhe a primavera — ressurreição de sonhos congelados. Uma coisa está na outra, nada exclui nada ( a não ser na dialética dos homens ): a vida tem um reencontro consigo mesma em outras gamas... A fraqueza dos anos é compensada pelo entendimento, que, agora, se multiplica. Pelo conhecimento que já lhe vem de graça — pela analogia das vivenciações. Maduro como um fruto — sente o caroço-semente desse fruto solto em seu coração: solto e livre do mundo e de si: da ambição que amarra e apequena, porque é medo.
Quando se lembra de tirar a máscara, vê que já não a tem, foi filtrada pelos anos através de seu rosto: sua canção de vida está nas últimas notas — nas últimas preciosas notas. Então o homem se aquieta, estica o ouvido para essas notas — elas são ele, que parte. E parte sem medo quem foi capaz de amar. LA 98/03
Estratégia Escatológica
Muitas vezes ele se jogava no sofá e se deixava trespassar daquela sensação levitante, escatológica, bíblica de fim de mundo.
Era uma catarse dentro de outra catarse — em que o mundo escorregava de seus ombros, seus problemas escorriam para e pelo chão.
Sublime essa sensação: o mundo irremediavelmente se acabando, gostosamente explodindo, queimando como palha, esfarinhando-se pelo ar e espaço... Tudo deliciosamente se perdendo, inexoravelmente já perdido, para sempre, eternamente em perdição.
Depois de saborear lenta, magnificamente a sensação de acabamento acabado, de fim findado de tudo — Davi dormia, sonhava e ressonava por muitas e muitas longas, intermináveis horas.
Acordado, tomava um banho, comia legumes e frutas e voltava novinho em folha para os pregões da Bolsa. LA 98/03
Mesa Posta
Quando amanhã for hoje a gente o morde e cospe o seu caroço para o ontem. Desse caroço nascerá uma árvore que dará os seus frutos no amanhã...
E nessa roda tríplice, os frutos do amanhã passam pelas mãos do hoje e escorrem para o ontem que a memória recicla no hoje, filho do amanhã...
Ontem era hoje e hoje era amanhã — que gerou hoje, e hoje gerou ontem que se une ao hoje, vindo do amanhã...
Hoje é o ponto de encontro de dois sonhos — o encontro do futuro com o passado no hoje, a mesa posta: o pão e o vinho. LA 98/03
Projeto
Quem sabe um dia te faço uma canção em que te vejas tão bela quanto nem te sabes e tão mais adorável quanto a palavra proferida no exato instante de dissuadir o suicida ou impedir o adultério. Tão adorável como esperar de madrugada, ao vento animado e frio, alguém que tem um pedaço da nossa alma e que desembarcará entre o vento vestido de antemanhã e as estrelas já ensonadas... LA 98/03
Cartilha ''Deles''
Assim que ''aqueles''... nos ensinarem a escrever: nos orientarem no tema, no léxico, na morfologia, na colocação ( e palavrões ) e pontuação de gente grande ( sic ) — exclamação, dois pontos, reticências: coisas de poeta menor ou natimorto ( sic ). Cuidados com o poema-piada, com a piada-poema e assim por diante...
Logo-logo estaremos escrevendo: assim que nos elegerem um estilo — ''enxuto'', ''diserto'', ''escorreito'', ''terso'': talhado a canivete, formão, machadinha, fórceps e mordidas do sr. Tyson. Tipos de versos: se brancos, se pretos, se longos, se curtos, tensos, distensos, fálico-vaginais — ou quando ''um'', quando ''outro'', quando ''nenhum'' e pourquoi tal opção... E mil teorias, não-teorias, antiteorias ( poesia-antipoesia ) com seus supra-suprismos e infinitos-mais...
Como empregar, ou não, o adjetivo, o gerúndio, os relativos... Como evitar o antipoético ''para que'' ( final ), as palavras e expressões-muletas... e outras evitâncias de quem conhece a largura, a fundura, o comprimento, as alturas ( modestamente ) da Arte...
E como borrifar nosso estilo de elegante ironia e fino ( sic ) humor. E atenção: ao armar ( sic ) o texto — galvanizá-lo de competente antropologia holístico-filosófica, etc.
Com essas ''dicas'' — vindas da Cimeira — qual intelectual que com o mínimo de vocação não fará pelo menos um trabalho maior?
Graças a Deus, os Mestres existem. E tantos que já nem existem alunos.
Doces raios partam e repartam tantos canalhas ( ! ). LA 98/03
Escrever
Escrever é um modo de não estar só. Ler em primeira mão um poema é coisa muito agradável — lisonjeante até.
É uma forma de dizer a mim mesmo e a possíveis que escrever vale a pena — desde que a pena valha.
Escrever gratifica, desde que, entre nós e as linhas, vejamo-nos cobrindo de tinta os poros do silêncio — enquanto ele começa a dizer-nos coisas que livro algum, pessoa alguma poderiam dizer-nos assim tão de dentro das coisas, coisas assim tão responsivas a tudo aquilo que indagamos ( de soslaio ) sobre a vida.
As linhas, cobertas de frases, falando, em primeira mão, diretamente a mim — são uma companhia boa e oportuna, e põem um sentido-flores em vasos cor de surpresa.
Escrever me é deixar desenrolar um roteiro de que já tinha me esquecido. LA 98/03
Tintas
Você, que detestaria falar de fadas, que se coraria de ter musa, que sorriria de anjos da guarda — claro que respeitamos você. Você tem razões para rir do infantil, ou do maduro, ou do sagrado.
Nós lhe pediríamos que nos deixasse usufruir de todas essas companhias — mais a esperança, o sonho, a fé e a certeza de que o amor é o melhor do universo.
Quando o homem se encontra com a beleza-verdade — é deixá-lo vivê-la. Quem então poderia dar-lhe algo melhor?
O inconsciente abrange o coletivo, mas o consciente é pessoal — e filtra dados daquele para escrever nova história com as tintas da infância e as do homem maduro: é preciso sentir que se é além do tempo e do espaço. LA 98/03
Livre Ou Escravo
Liberdade de ser, de fazer.
Ser o quê? Fazer o quê?
Dependendo do que se é ou se faz — pode-se muito bem ser escravo ou livre em se ser e fazer.
Liberdade e amor — estes dois, sim: podem ser a medida do que se é, do que se faz.
Amar é não faltar-se. LA 98/03
Piedosa Intercessão
Bom é amar quando o amor transcende o ego: o homem é então senhor, jamais vassalo de si mesmo.
Quando o amor supera a carne e o mundo — é amor liberto.
Nesse caso, o homem fez da esperança a sua força ubíqua. Fez do sonho seu caminho de travessia. Fez da fé o gozo antecipado do que espera. Fez da vida a bênção de ultrapassar-se.
Mas o homem só faz isso pela piedosa intercessão do Espírito de Deus. LA 98/03
Amigos são como bicicleta — para planuras e descidas. LA 98/03
Masculino E Feminino
Ser homem ou ser mulher está além de ser homem ou ser mulher. Na dimensão do humano entram elos de barro com elos estelares — argila e luz que apenas ''passam'' pelo masculino e feminino.
Feminino e masculino são modos diferentes de a vida se exprimir dentro do complexo de ser — que faz buscar não-ser: uma realidade, talvez maior, de ser, porque pretende de si um devir sem angústia.
Feminino e masculino são adaptações a aparelhagens construídas por genes na humana caminhada.
Masculino e feminino são como luzes e sombras que produzem o dia — suporte do real: realidade e teatro do ser. LA 98/03
Emissão-Aceitação
Há palavras que são pedaços de chumbo atirado à nossa cruz.
Outras há que são o ombro de Cireneu.
A palavra cria, a palavra castra. A palavra perde, a palavra salva.
O poder da palavra está na sua emissão-aceitação.
( Em não havendo aceitação ela não tem poder... )
( Contra a passividade e a alienação não pode nada a palavra. )
Sem o nosso consentimento a palavra não nos alcança. LA 98/03
Doença
A honestidade é o quanto pagaríamos para sermos felizes.
O jogo, porém, de mentir, o hábito de enganar — são coisas que seduzem muito mais que felicidade.
Tudo isso carreamos lá dos nossos avoengos — seu-nosso amor negativo: seu-nosso amar do avesso.
E o mais é doença que nos impede de amar a nós mesmos e aos outros. LA 98/03
Banalização
A corrupção banalizou-se — virou algo trivial, normal como as pessoas se manusearem antes de encontrarem o parceiro — a honesta companhia.
Roubam-se em seus direitos econômicos e em seus direitos morais ou de fruição do que era seu ou do outro: o ético lá em si apanha na bunda e na cara. A sociedade, banalizada, se enfraquece. E, sem dúvida, fabrica cínicos, iniqüidades e conivências de sorriso molhado e amarelo e hilariamente boçal-hipócrita.
Tudo está sendo nivelado pelo banal, pelo pequeno e mesquinho, pelo baixo: as exceções se fazem regras. Lamentável, lamentável momento! Mas... é o que temos. Sim: é o que nos criaram-criamos. Curtamo-lo, portanto, — cada qual a seu modo. LA 98/03
Re-ex...
—Vou até a outra margem, mas volto logo. Por favor, diga à sua mãe que vou buscar algumas coisas que deixei lá faz algum tempo. Eu era ainda muito moço...
— Sim, meu pai, eu digo a ela.
Atravessou a cidade, a si mesmo, o grande rio, foi até a aldeia de pescadores, onde fora criado, e por lá ficou um bom tempo. Apertou mãos, abraçou, beijou rostos. Reviu-reviu. Papeou-papeou. Comeu pão com peixe à beira de fogueiras ( suspiros de galileu... ). Visitou parentes e o cemitério. Depois de muitos goles e engoles voltou.
Seu filho pergunta: — Meu pai trouxe o que foi buscar?
— Não havia o que trazer. Até o gosto do peixe ficou lá. Não era ''aquele''. O burburinho das conversas, o riso dos compadres... nada já tinha aquele brilho que retinia de alma em alma... Fui buscar, não achei. Vim mais só do que fui. .................................................................................. Não encontrei o que eu levava na alma, vi que só estava em mim... Não encontrei a não ser a verdade transladada para o futuro do passado ( do deveria haver, talvez, ) a remexer coisas doídas — coisas outras, porque vistas com olhos outros tão mudados. Coisas estranhas, hoje reesquecidas.
Aprendi que a outra margem já não está em alma: um engano — só existe enquanto se está lá.
A vida tem apenas uma margem — aquela que no agora-aqui tem sentido para nós. LA 98/03
Para Sempre
Para sempre? Seja a esperança — que é força e companhia.
Para sempre, seja o sonho da possibilidade.
Para sempre, seja a fé — que é ter olhos no escuro.
Para sempre, seja o amor ao amor: em elos de ''eu'' ao ''tu'' e ao ''três'' — dissolvidos na Unidade.
Para sempre, seja crer que para sempre tudo é possível ao que crê.
Para sempre, seja saber que para sempre será possível sonhar. LA98/03
Castelo De Açúcar
Todo bípede implume que quiser se depenar e despelar, afora o escárnio acompanhante — é só arranjar uma/um amante: dessas/es fatais, libido-angelicais — cheias/os do bonzo amatório das épocas.
Só arranjar uma/um amante e aguardar a última tarde de chuvas em seu castelo de açúcar. LA 98/03
Material Astral
O Sexo é possível a todos. O amor , de modo algum. O amor é lembrança, florescimento aberto em luz da energia de uma mesma estrela na carne e alma e espírito dos que se sabem dois corpos num só desejo e vontade. ( Esse tipo de amor é para muito poucos, tanto que o mundo insiste em que ele não existe.) Há um mesmo material astral na carne e alma e espírito dessas criaturas que se amam num requinte de um sonho imortal — tão lindo quanto infindo. A morte jamais toca nesse tipo de amantes: o amor os arrebata antes ( como lhes fez em sua vida inteira ). O amor os arrebata para as longidões orvalhadas de sonho. A morte apenas fica com aquilo que embrulhava as suas esperanças. LA 98/03
Levitação
Pela Índia, pela China, pela Ásia, Oceania andei procurando mestres que me ensinassem a arte de levitar. Achei. Acharam meu bolso ( eu era um adolescente ): meditações, palestras, exercícios ( eso )-exotéricos. E o máximo que consegui foi dar uns três passos no ar — quando pescava e pisei numa serpente.
Daí a uns tempos, conheci Leda-Eva. Esta, sim, me suspendeu até o teto — quase me quebra a cabeça. E de cefalalgia com Leda-Eva erosvitei. Libivitei. Nefelibatei muitos dias com astenia e fastio — com Leda-Eva orgasvitei. LA 98/03
Já-Já-Já
E bendita seja a fé que nos leva a já termos conquistado coisas que, hoje, são ainda esperança. Que nos leva a transitar, não por uma estrada visível — mas sobre aquilo que não vemos e que, com as mãos de Deus, transforma o material dos nossos sonhos em coisas-recriações, em saltos-transcendências lá em nosso ser. Pela fé já chegamos, e nem já precisamos... porque já somos. LA 98/03
Canção De Amor-Humor
Os nossos laços, amada, não andam lá essas coisas — têm um sabor de estrada os beijos que me ousas.
Ainda bem que o que morreu ( de face bem-humorada ) foi algo que nem nasceu — daí não ter sido nada.
Lá fora cai a nevada e o vento uiva, que corta. Quando saíres, amada, não me machuques a porta. LA 98/03
Poder E Poder
Há o poder que morre, que vem do pó e é pó — constitui-se da ''escuderia'' das raízes de família, dos restos de fortuna, dos genes nobres, dos cargos, das comissões, das instituições: das classes dominantes — sempre às costas daqueles a quem investe de seu poder. Esse é o poder que morre. Seus limites são os limites da carne.
Há também o poder que é do tamanho do amor humano e irmão de sua liberdade. Nesse poder o homem é tão mais poderoso, tão mais liberto quanto mais ama a Vida, a humanidade e a si mesmo.
Esse poder, irmão da liberdade, é do tamanho da humana capacidade de amar — e vem das mãos santas da Vida. E nada, ninguém pode driblar seus desígnios. Esse poder é ubiqüidade para outros planos-dimensões em nós. Um poder conferido pela Vida, aquela que não morre. LA 98/03
Mr. Dédalo
Lá nos porões da infância um medo abléfaro ouve contos antigos de amas estúpidas.
Tais amas já morreram, mas os seus cânticos ecoam pervagantes em outras gêneses.
Lá nos porões da infância Eros E Tânatos vagam no labirinto de Mr. Dédalo. LA 98/03
Lógica Cartesiano-Intuitiva ( Monólogo Humano )
Penso, logo posso ser presa de toda ideologia — se disso não souber.
Existo, logo o sonho é verdade.
Intuo a realidade, logo sei ir além do pensamento.
Sonho, logo posso reconstruir o real com o plasma dele mesmo.
Profetizo, logo me impregno de ''matéria negra'' e a vejo iluminar-me, deixando-a traduzir-me fatos que ainda veremos — mas que já foram em outras gamas-tempo do universo.
Tenho visões, logo existo em várias gamas de ver-sentir-pensar-intuir os estratos de realidade segundo a minha aparelhagem que me faculta trabalhá-la.
Sinto, logo tempero as palavras no fogo do coração — enquanto meu intelecto fá-las moldes de vida do sonho para o papel. LA 98/03
Para Mais Vida
Se a vida dói, faz de conta que dói pouco. É desaforo ficar amarrado a dores pelos cantos de si mesmo.
Meu lá dentro me diz que a vida dói porque está viva e quer mais vida. Que a vida dói pra nos dizer que, assim, não está bem — que sua moradora, a consciência, deve buscar o que lhe falta: ligar-se com a Fonte e aprender a fluir, água viva.
Se a vida não doesse, como sair do barro para a luz? Como organizar o caos em harmonia?
A vida dói? Claro que dói. Entre um estágio e outro a vida dói. Nossos estratos de consciência são como larvas. E entre arrastar-se e voar a vida dói. LA 98/03
Permitam-Me!
A minha poesia tinha de ser diferente daquela que ''Vocês'' gostariam de escrever. A minha poesia é assim, não porque quero — é assim porque tem de ser assim.
Escrever sempre me foi chato — gostaria de não mais fazê-lo, não fosse esta irresistível compulsão para o texto.
Não falei em missão nem em coisa assemelhada. Disse que, para mim, escrever é compulsão, ou melhor: metabolismo.
Permitam-me continuar a escrever — mesmo porque minha poesia, se vier ao sol, virá só bem depois que o brilho de ''Vocês'' estiver nos escrínios de suas academias e feudos.
''Vocês'' são o visgo desta hora — não voam, nem deixam voar. São o bonzo dos intelectos fabricados em salas de aula. De minha parte, nenhum espanto. Nem dou meu pranto a mortos ordinários. LA 98/03
O Caboclo E Seu Amigo
O meu amigo, Deus o tenha. Deus o tenha, mas sei não... Pelo tanto que malfez deve arder lá nas profundas ( se bem que o livro de Jó manda ninguém julgar ninguém ). Deus me livre e tenha dó do meu amigo e de mim — me livrando das profundas: uma vez que ainda vivo e meu amigo, coitado, nem fazer isso já sabe. A Deus sempre agradeço pela vida que me dá, — não importa a qualidade. Como disse aquele rei que tinha um delicioso harém com mais de mil e muitas xotas: Cachorro vivo não deve invejar leão morto. LA 98/03
Aba, Meu Pai...
Aba, meu Pai, me disse ( bem lá no imo do meu ser ) que quando Ele Se sonhou dentro de um outro sonho que jamais O gerou... Aba, meu Pai, me disse que desde que Se sonhou tudo o que existe é desde aquele-este-momento. Aba, meu Pai, me disse que o homem tem seus genes de Criador e que estes são acionados pela fé. Aba, meu Pai, me segredou que a idade sem idade que Ele tem tudo o que existe tem. E Aba, meu Pai, não mente, pois, se mentisse, só poderia mentir para Si mesmo. LA 98/03
Pregação
O pregador falou durante muito tempo. Ia e vinha, ajuntava e espalhava, afirmava e negava, esbofeteava e alisava, dizia e, jeitosamente, desdizia — pausada, estudadamente, como de frente a um espelho, ora com pouca, ora com luz demais. Por fim, jogando, magistralmente, com o charme das sombras...
A intenção do pregador ( por meio da acusação ) era a de remeter à culpa, à vergonha diante da nossa incapacidade, diante da nossa ignorância — a da assembléia ( e a dele própria ). LA 98/03
Ler E Comer
Livros, uns a gente lê, outros a gente come.
Os que devem ser comidos ( metabolizados e incorporados ao nosso próprio caminhar ) — são poucos.
Quando os manuseamos sentimos que alimentam a nossa outra fome — a fome do que nos falta: o outro pão, o único vinho que nutrem a Presença a resgatar em nós a imagem-semelhança. LA 98/03
Humor E Dor
Bem melhor pelo humor que pela dor. Sempre que me é possível, opto pelo primeiro — se bem que este, muitas vezes, é uma espécie de luto com músicas e danças.
Não raro, para mim, o humor é uma fórmula de molho que não como todo dia. Só quando não aceito a realidade. LA 98/03
Intercessão
Abençoa, Senhor, a todos aqueles que no seu coração estão sozinhos e sem respostas.
Manda um burro falar com eles, Senhor, como fizeste com Balaão. Manda as suas paredes e seus móveis falar-lhes com amor, mansidão e discernimento.
Estão cansados de ameaças, perseguições e medos — medos do homem, medos da vida, medos de Ti, Senhor. Te pintam bem pior que os piores: com muito mais maldade que os mais maldosos.
Manda, Senhor, que as pedras falem com eles com compreensão e carinho. Manda, Senhor, que os bichos lhes dêem calor de vida. Que as feras lhes ensinem confiança e complacência. Manda, Senhor, que os pobres de espírito lhes ofereçam o melhor do seu sorriso, o mais doce de sua voz, o mais humilde de sua ensinança, o mais manso de sua loucura. LA 98/03
Só Uma Olhada
Dá só uma olhada nessa faixa de céu azul: não lhe parece que ri de nós... e para nós — bondosa, serenamente? Não parece dizer: Para que tanta pressa, tanto estresse, tanta angústia? Porventura esqueceram que a vida é muito mais que essa muralha de aparência que vocês construíram para si e a reconstroem no dia-a-dia de suas aflições?
Porventura esqueceram que a vida é mais, muito mais que só isso? LA 98/03
À Moda Antiga
Vai embora, vai pro inferno. Vai para onde quiser teu coração, mas não me fiques. Já não vejo nada de terno no seu jeito de malmequer — a não ser manhas, chiliques.
Vai pro inferno e lá te peguem dois ou três demos de mau gosto. Literalmente te carreguem broncos diabos dos bem brutos, e eu nunca mais te veja o rosto — ao menos por dez minutos. LA 98/03
Você Já Viu?
— Quem viu o demo por aí?
Todos se entreolharam com certo constrangimento — entre o mal-estar e a vergonha.
— Então, ninguém viu hoje o demo? — pergunta o guarda de trânsito.
— Vi, sim, — disse uma velhinha — vi sua mão levar a carteira de um senhor saindo do banco.
— Vi também — disse um moço — vi o estrago que fez a bomba que ele explodiu no shopping.
— Também eu — disse um senhor — vi sua astúcia decretar falência de uma empresa.
— Ainda bem — disse o guarda — que alguns já podem vê-lo nas intenções e ações dos homens.
— Também nós... — Pois bem, amigos — interrompeu o guarda — vamos deixar, agora, que a mídia nô-lo mostre em cada página. LA 98/03
Pedido
Desde bem moço pedi a meu Senhor fosse com suas mãos ao mais fundo de mim — e dali retirasse o humano que ele em mim criara e o potencializasse, e o verbalizasse e o trouxesse para fora realizado em sabedoria e graça. E me desse por mestre o Espírito para me conduzir a toda verdade. E a fé fosse o meu enxergar no escuro. E a esperança fosse eu já viver aqui o que ainda não vejo.E o amor fosse eu não dever o que a vida quer que eu pague ao outro e a mim. E a graça fosse saciar a outra fome, a outra sede com aquele outro pão, com aquele outro vinho. LA 98/03
Por Atritos
Tempestade lembra bonança, não por associação — mas por seqüência meteorológica.
Quem não gostar da tempestade que espere alguns minutos — logo haverá de se entediar com a bonança.
A vida tem usado essas duas vizinhas de casas geminadas — em todas as situações em todas as nossas células. Entre esses dois opostos, a consciência deixa o sono e ousa o discernimento e a autonomia entre os contrários.
Não gostando da tempestade, espere alguns minutos.
( Não apreciando o poema, leia outro, de outro. ) Se não gostar da vida, canta a ''Canção do Marinheiro'', do avesso... e não se mate — mas apenas se coce, tome um bom mate com biscoitos de chocolate. LA 98/03
Vagamundo
Vento que vens de longe, que mensagem nos trazes tocando o teu violino com o arco da ramagem?
Que nos trazes, velho vento? Velho vento dos fantasmas de poeira... das nuvens puxando rá-pi-das a sua toalha escura... da folha que se agarra à vida... do pólen que está beijando a flor e o fruto ainda sonho?
Que nos trazes, vagamundo?
Ah! Tu nos trazes o recado de que a esperança está viva: de que o ser cavalga o tempo lá pelas bandas de ser-se. LA 98/03
Abóbora Cósmica
Vem vindo aí um asteróide ( diz a ciência ) do tamanho de uma abóbora cósmica.
Que delícia, a coisa vem vindo aí! Vocês que gostam de escatologia, que adoram ''apocalipses'', que amam os sinais dos tempos e esperam pelo fim do mundo — podem preparar seus sermões, suas palestras, seus livros, seus panfletos, seus hinos. Vai tudo arder como palha. Vai ser a coisa mais linda desses últimos tempos.
Adeus. Que a pedra nos seja leve. LA 98/03
Arte E Ver
Um dos objetivos da arte é transtornar as convenções da aparência. Pode-se mostrar, por ela, o que proíbem de se ver — a inculcação dos rótulos e dos valores: os deveres, os hábitos, os vícios do fazer ''sempre assim''. A tirania do assim-sim, assim-não, do que cheira a formol: a criação-manutenção do Sistema Reprodutivo.
Paga-se pela arte um preço que só se justifica pela não-omissão de se contar-mostrar a si e ao outro uma outra história-forma de ver. LA 98/03
Perigo
Em todos os campos, em todos os tempos fazer-se de bobo sempre foi um bom negócio. O problema é que às vezes ao nos fazermos de bobos — descobrimos que estamos sendo bobos de verdade. LA 98/03
Picaresco
Desesperar é desaforo. A vida, Teresa, não gosta de covardes. Deus me livre de heroísmos, mas covardia não é comigo. Se o mundo for acabar, me chame dez minutos antes para comemorar. Certa vez li num olhar que aquele que não se atreve perde a hora e o lugar. ........................................................................ Bem me quer, mal me quer... Antes de existir o amor — o que é mesmo que existia? ......................................................................... Desaforo é desesperar. O coração, Teresa, tem razões pra se enganar. LA 98/03
Telenauta
Que quero mais, se tenho a Net com suas teletudes? Internautas em reciprocidades. Estudos. Pesquisas. Namorares e ficares. Telecópulas lentíssimas: com gemidos e orgasmos telenáuticos.
Quando é que meu pai pensava que iria ter um filho safadinho, capaz de fágicos prazeres: teledeleites, telecremes, teleméis — disponibilidades frente e verso e libido depiladinha ou pilosa com acoplamentos cárneos-mentais em teletransas populares, telefornicações universais e outras teledelícias fálico-vagínicas — e ( pasme aí no céu, meu pai ): tudo, tudinho aqui, sentado, nesta cadeira, aqui na sala ? Ah, Net! Que faria eu sem você? Como é que eu poderia cuidar da minha cabeça sem você? Ah, Net! LA 98/03
Bobeirólogos
De bobeira em bobeira vamos vivendo e vamos nos graduando... e fazemos de conta que o avesso disso é que vivemos.
E vamos nos graduando e nos especializando nessa universidade que os homens levam a sério e se animam em cursar — com mestrado e doutorado em bobeirologia.
Bobeirólogos formados, e registrados — quem é que pode conosco? Ninguém. Uma vez bobeirólogos, bobeirólogos para sempre. LA 98/03
High Tech
Sobeja em nós, Teresa, amor dos bons, — high tech. Nesses dias cibernéticos de ternuras robóticas — que mais na vida precisamos? Um amor ''baixos teores'', de parceria light e calorias diet a colorir de azul os nossos teen ( interiores ) — que mais na vida, darling? Que mais? Um relacionamento de ponta. What more? Que mais nos falta? Um acasalamento de dólares — investimento de mundo em alta: sucesso internetizado ( com e-mail personalizado ) e outras esterlinas... What life's more, partner? Isto é que é vida king size. High tech love, darling. LA 98/03
À Porta, À Espera
O lugar onde se nasce é sempre o melhor possível para o homem elaborar-se. O nem sempre sair-se bem são desvios de ser. A vida a ninguém programa para o fracasso e miséria. Ao contrário: pacientemente espera que cada um traga de suas entranhas o humano de seu destino cósmico. Esse humano original, respingado de Deus, será o resgate final ( e inicial ) da imagem-semelhança.
Deus, nossos pais e a vida não nos ficaram devendo coisa alguma. Se nos achamos no escuro, podemos abrir a janela — e ela sempre entrará: a luz fresca do amor — paciente, à porta, à espera de um renascer em alma-coração. LA 98/03
Tiranias ( Das telas de Egon Schiele )
Dentre as tiranias, a da libido talvez seja a mais terrível: a que traz atados ao ardor de vitalícia insatisfação crianças, adultos e velhos na ebulição do desejo ciliciando a existência.
Ao homem, escudeiro servil de tiranias invisíveis, só lhe resta lutar ( dentro dessa cadeia de servidão ) por sua liberdade — de libertação em libertação na contínua transcendência de si mesmo. LA/98/03
Nem-Nem
Nem do puro mel, nem do amargo fel: um e outro são extremos, e não o que vivemos. LA 98/03
Estratégia
Só depois que morreu é que verificaram ( pelos escritos que deixou ) que sua bobeira era falsa. Era apenas um modo de poder sobreviver em meio a tanta inveja, tanta competição medíocre.
Apenas uma maneira de se fazer julgar passivo e alienado para viver em paz: lendo, criando, transcendendo ( em sua casa de silêncio ) entre a palavra e a solidão.
Um jeito apenas de poder sobreviver próximo aos que têm voz e vez.
Uma estratégia apenas daqueles que se sabem buscadores do que lhes falta para ultimarem a travessia da ponte. LA 98/03
Peripatético
Um ver peripatético pelos desvãos da realidade — em busca sempre de outras brechas, de outras fendas-realidade. Puxar o humano para fora — fazê-lo prevalecer na sua interação com o Outro — todos construindo com os ossos dos milênios uma espiral escadaria — que vai desde a Caverna ao infinito de si mesmos.
Um construir peripatético ( pelos poros do humano ) de n-acessos humanizados — todos levando àquela estrada, àquele pão, àquele vinho, àquele rumo e pegadas do Filho do Homem. LA 98/03
Libido ( Das telas de Ergon Schiele )
Dentre as loucuras genéticas e aquelas constituídas ( as híbridas e as geminadas ), a tirania da libido — quando não sublimada ( não transmutada em força ) a serviço do Humano, é a que mais revela a miséria da condição humana.
A tirania da libido se encontra na raiz de todas as tiranias.
Quem domina a sua força, organizando os seus soldados — pode crescer ( por sua espinha dorsal ) até a cidade sagrada. LA 98/03
Tecidos Inteligentes
Logo usaremos tecidos ''inteligentes'' — no inverno nos aquecerão, no verão, ao contrário.
Quem sabe se com a ajuda de um chip lingüístico tais roupas não contarão histórias para o sono, contos para o despertar. Quem sabe não terão em seus chips-alma gorjeios, brisas, ventos, chuvas, temporais, raios, trovões, os sais, os sonhos da terra, a bênção ( não menos nutriente ) das estrelas? Quem sabe não nos contarão histórias que ouviram de Deus, bem como de seres fantásticos — tão fantásticos como reais de uma realidade invisível, mas nem por isso menos real. LA 98/03
Abençoadamente
Se for assim, está bom. Se não for, está bom também. Se for de outro jeito, não acharei ruim — ainda que os jeitos sejam outros. Acharei bons todos os jeitos — contanto que esses tais sejam abençoados.
Havendo bênção, tudo se ajeita — dizia minha mãe ( que era uma ''pobre de espírito'' ), e eu cria que era assim — foi por isso que sempre me foi assim.
Pouco ou muito, assim ou não-assim — aquilo que é abençoado traz alegria em si, faz a gente feliz — mas é preciso ser pobre de espírito de verdade. La 98/03
Picada De Mosquito
Não me agrada estar aqui escrevendo isto, agora, e em desconforto: com um fiapo de tristeza de infinito entre os dentes — sentindo-me de esguelha com a vida.
Aliás, bem à minha frente, está um vaso com flores que alguém muito especial me pôs defronte aos olhos pra me dizer, por ele-vaso, o que não quis dizer por si-pessoa. De modo que, por causa desse vaso, a minha dor de vida é uma dor menos sozinha. Mesmo assim volto a dizer: não gostaria de estar aqui escrevendo isto a esta mesa, agora, embora saiba ( ou julgue ) que a vida apenas me devolve aquilo que me programo — diretamente ou por tabela. Por isso reconsidero que estar aqui isto escrevendo, agora, é apenas ( graças a Deus ) estar aqui isto escrevendo, agora, se bem que isto já estivera pronto não fora eu ter ainda pra dizer que escrever um poema é como coçar a orelha picada de mosquito. LA 98/03
Idéia-fixa
O que Deus dá o Diabo vem e toma. E logo que Deus redá, o Diabo torna e retoma. E já faz tempo que o Diabo põe no bolso as bolas desse ''pingue-pingue'', sem ''pongue''.
Deus é pródigo — dá para fartar a todos. O Diabo desvia o que é de todos para alguns poucos.
O Diabo são esses homens que atulham, abarrotam suas casas com aquilo que é de todos. E o que não cabe em suas casas carregam para o exterior — fortuna, ubíqua não: cosmopolita.
O Diabo é uma mentira das mais verdadeiras. Vemo-lo travestido em homens que pegam para si o que é de todos. Ou travestido em anjos de luz pra tentar convencer aqueles cidadãos cujo voto não é dele.
O problema é que o Diabo é como o pensamento: só se faz visível quando se torna idéia-fixa — a de pegar para si o que é de todos. LA 98/03
Chuva E Pés Descalços
A lembrança de um sonho bom no era uma vez duas crianças descalças.
A beleza de uma romeira ao sol, ao vento, à chuva de nos lembrarmos crianças com os pés felizes, os cabelos molhando nosso sorriso.
Onde esses dias? Rolaram com a chuva? Não. A chuva não leva o bom, o belo, o infindo ( do instante findo ).
Apenas caminhamos ( num círculo? ) de modo a nos encontrarmos ( nós e o que fomos-sonhamos ) frente a frente.
Certamente estaremos outros — nós e o que fomos, mas sempre nós: mais complexos, mais unos a cada encontro — até nos transformarmos na estrada ( agora espiralada ) daquele-desse sonho. LA 98/03
Só Escrevo
Só escrevo porque escrever é uma maneira de vingar-me de haver o branco do papel — de haver o branco da vida entre a palavra e o silêncio.
Só escrevo porque escrever é uma forma de ( sem sair de casa ) ter muitos companheiros e conversar com eles pela estrada de ser.
Só escrevo porque escrever é aprender a falar comigo e com pessoas de todas as épocas — por essa escada de tempo que posso subir e descer.
Só escrevo porque escrever me faz sentir ligado à Fonte que me liga ao cheiro bom de Casa, à lembrança do humano em mim e ao resgate da imagem-semelhança. LA 98/03
Justificativa
Justificar é engraçado. Geralmente é uma maneira de mentir duas vezes: uma, pra ''não se sabe quê'', outra, pra se livrar daquele ''não se sabe quê''.
Justificar é engraçado... A coisa é ou não é.
Justificar é tentar fazer não ser ser, e ser não ser.
Não termino este poema porque o papel acabou. LA 98/03
Fim De Festa
O momento é de porta de Caverna, e como tal, não inclui, exclui — leva para a subvivência, essa condição protozoária de vida. O momento reparte a pobreza — rebaixa-a à subpobreza. E concentra a riqueza — fá-la charme de poucos. O momento nazistiza o humano — castra, esteriliza o humano do homem. O momento apequena, apouca, apaga aquela chama que Prometeu ousou passar ao homem. O momento é de insânia universal e os gulatras não percebem estar num fim de festa e nos últimos dias de um império em chamas. LA 98/03
Titanic
O Titanic foi apenas mais um poema burguês lançado sobre as águas da paranóia.
O homem adora tais paranóias — funde-se, identifica-se com elas: no fundo, luz insana — fruto de autodesafio.
Agora, o filme ''Titanic'' traz esse mesmo prato ( com molho ao paladar de hoje ) à sempre morna consciência adaptada às mesmas-outras paranóias que embarcam clandestinas de geração em geração. LA 98/03
Jeito Piloso
Teu jeito tem uns modos lá das cavernas. Ao mesmo tempo que afaga ( ao pé do fogo corre atrás com tição. Sei não, Teresa, mas se perdes este teu jeito piloso, sei não se vou gostar. Afeto besta, com uns quês lá das cavernas, mas danado de bom. LA/98/03
Meninos, Escutem Só!
Meninos, eu não vi. Mas posso imaginar e lhes contar. Aquele tal de Bill-Come-Inquieto, ficou feroz quando lhe deram um nó no orgasmo, e quis ejacular bombas sobre a cabeça do Iraque.
Mas já passou. Sua mulher ( do Tal Lá de Cima ) veio à televisão ( meninos, agora eu vi: tinha a cara da verdade ) e conseguiu mudar-lhe a alcunha de Inquieto para Quieto.
E tudo se aquietou, Isto é, fingiu-se quieto. Logo depois ejaculou orgasmos-bombas sobre a cabeça de outros povos ( pobres, é claro ) — à véspera de passar a faixa de seu governo. Meninos, isto é história da História: o mundo viu. LA 98/03
Anúncio De Decreto
Meninos, abarranquem-se, que enquanto o vento belisca os pudores destas árvores, lhes conto as últimas fresquinhas que escorrem lá de Palácio para engrossar nosso piadário.
O ministro das abobrinhas com o ministro das cambuquiras entraram hoje em cadeia ( claro que de televisões ) para anunciar o Decreto que extingue o analfabetismo.
Quem desta data em diante chamar alguém ou disser analfabeto será considerado louco, e banido do gozo de sua cidadania. Têm dito. LA98/03
Assunção Necessária
Quem não sabe pra onde vai anda com os pés dos outros.
Os pés sociais nem sempre estão em sincronia com as passadas que demandam o norte do ser.
Necessário estar a serviço de si e do outro enquanto se atravessa a ponte.
Necessário assumir nosso rumo interior e passarmos sobre as águas pelas alpondras da nossa fé.
Necessário assumir nosso destino e vontade e penetrar o arcano da Palavra em que vivemos e aprendemos o caminho de volta.
O Espírito nos ensina a andar com os próprios pés e a converter em dia os enganos da noite. A converter em esperança a impaciência de alcançar. LA 98/03
Parte Frontal Esquerda
Já sabias, Teresa, que a alegria mora ao lado esquerdo do cérebro? E que quanto mais ativa a parte frontal esquerda, tanto mais alegria, tanto mais felicidade?
Isto, Teresa, nos disseram, esta semana, alguns cientistas.
Agora que já sabes, minha sardenta: lambe, beija, morde, e acaricia a parte frontal esquerda do meu cérebro. Em dando certo, te faço o mesmo — tomaremos um banho azul de alegria com sais de felicidade e xampus de ventura. LA 98/03
É Preciso Sarar
E no entanto é preciso sarar. Antes de tudo é preciso sarar.
Sarar de tudo o que nos impede de viver como cidadãos do reino, sempre existente em nós.
Sarar de tudo o que nos impede de fazer abrir em flor o humano em nós.
Sarar de tudo o que nos impede de saber que, não sendo Deus, mesmo assim Deus nos é.
Sarar de tudo o que nos impede de andar por sobre as águas do nosso medo.
Sarar de tudo o que nos impede de aprender a senha de luz que ilumina os nossos pés na travessia da ponte.
Sarar de tudo o que nos impede de conversar com aqueles que estão em tempos diferentes.
Sarar de tudo o que nos impede de renascer das nossas próprias fraquezas. LA 98/03
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