Normal, Normais E O Sonho-Mais

 

Textos-1

 

 

No Sítio Do Pau Torto

 

    A gente faz o que pode

e nunca sabe —

não é mesmo, comadre?

 

    É, sim, compadre.

( Eudorico, meu marido

e seu compadre,

saiu, hoje, pisando orvalho —

foi lá pro roçadão:

e só vem com a noite ).

 

    Pois é, comadre,

a gente nunca sabe,

mas sempre faz o que pode —

a comadre concorda?

 

    Concordo e ainda recordo

que se a gente faz o que pode

e sabe que nunca sabe...

o nosso fazimento

dá sempre certo —

não é, compadre?

 

    Compadre aceita café?

    Aceito.

    Aceita bolinhos?

    Aceito.

    Aprecia rapadura?

    Muito.

    Sarapatel?

    Bastante.

    Queijo de leite de cabra?

    Delícia!

    Doce de leite coalhadinho?

    Adoro.

    E agora, compadre,

que mais quer comer?

    Aquilo que compadre come

sem garfo e sem faca —

numa bandeja irrequieta...

 

    Pois venha depressa, homem,

que a essa altura

já dava pra gente estar

palitando o desejo

e o bocejo.

LA 98/02

 

 

 

 

            É De Fios De Prata

 

    Bela gravata.

    Obrigado.

    Por que a usa?

    Porque querem.

    Querem por quê?

    Para diferenciar.

    Diferenciar pra quê?

    Para se impor.

    Impor o quê?

    Poder de classe.

    E podem mesmo?

    Têm podido.

    Bela gravata.

    É de fios de prata.

    ....................................................................?

    .................................................................

    ......................................?

    ............................

    ..................?

    ...........

    ?

 

Bela gravata.

É de fios de ouro.

LA 98/02

 

 

 

 

            O Que Diz A Rosa

 

Você estava presente

quando a rosa disse

que Deus a fez

para ensinar você a amar a vida

enquanto a tem nas retinas?

 

Toda rosa diz isso —

principalmente

quando a tarde desce impiedosa

sobre a sua beleza —

que se despenha

nas mãos do infinito.

LA 98/02

 

 

 

 

Gemidos Verdes

 

O vento sopra nervoso —

mordisca, morde, desfolha:

uma ardência gemente,

esfrega-se corpo inteiro —

esflora, esfolha, esfola:

faz chovilhar folhas e flores

e sai esporeando,

uivante, cavalgando

luxuriantes corpos

primaveris.

 

Olha lá ele: livre, longe

com seus gemidos verdes,

despenteando o laranjal.

LA 98/03

 

 

 

 

Dança

 

Nós dançamos.

Todos os que vêm ''aqui'' —

dançam.

Mesmo nunca tendo dado um passo,

a gente dança.

Todos os que estão ''aqui'' —

dançam.

Mesmo quem não tem pernas

dança.

A música é ambiente,

e todos dançam.

Ah, se dançam!

A vida faz dançar.

LA 98/03

 

 

 

 

Desengenhos

 

Te presenteio com uma coleira

e um cinto de castidade.

Tu os penduras num lugar visível

pra que te lembres

de quanto aqueles homens

que impunham tais engenhos

ignoravam uma lei da vida:

Quem guarda com muito zelo

só se lembra do que guardou

quando alguém mexe no guardado.

 

O doar-se

vem depois do consentimento

( que é tudo ).

O ato é só a mecânica

do que já foi em alma-coração.

LA 98/03

 

 

 

 

C'Est La Vie

 

Sentimento de perda,

como evitá-lo?

Dizendo-se que não se perdeu nada?

Através de outra perda ( ! ) maior?

Ou de um ganho maior?

 

Mas, e o inconsciente —

acredita nessas lorotas?

Uma perda é uma perda.

Um ganho é um ganho.

Se bem que há ganho que é perda...

e perda que é ganho...

 

Mas, e o inconsciente —

acredita nessas bazófias?

Se não acredita —

azar dele.

 

Perdas e ganhos

são o que a vida tem

e distribui

sem perguntar se pode.

LA 98/03

 

 

 

 

Charme Da Luz

 

Deus fez o amor

e permitiu ao Diabo

cultivasse minhocas

para o amor pescar.

Pescar peixes que há

e peixes que não há.

Não houvesse peixes e minhocas,

o amor seria só divino —

jamais o levaria o Diabo.

Mas que graça teria

neste mundo em que as sombras

são o charme da luz?

LA 98/03

 

 

 

 

Coisa Terrível

 

Há heroísmo e otimismo

de ocasião ( coisa terrível ),

por exemplo:

''Enquanto o chicote sobe

e desce

as costas descansam".

 

No mundo encontrei pessoas

que ( de outra forma )

me diziam — sérias e honestas —

coisas tão cínicas,

tão mentirosas

como essas tais.

 

Às vezes aplaudimos coisas

por anuência

a essas mesmas coisas

do avesso.

LA 98/03

 

 

 

 

Reconstrução

 

Viver sem idéias

é difícil, senão impossível —

não obstante uma idéia

possa ajudar ou obstar.

 

Este estágio mental

de saber-se gerador de idéias

( e estudar-se em tal mister ) —

esse auto-observar(-se)

é o que há de mais belo

no processo de criar

e de gerir idéias

( entre a luz

e o fundo negro do Cosmo ) —

processo de energia infinita

que se torna evidente

na reciclagem da nossa consciência —

o acesso a seus estratos

e à comparação deles:

de transcendência em transcendência —

como sonhos que se ultrapassam...

Reflexão-ação-reflexão:

este o processo de nos reconstruirmos

com nossa vontade e as mãos

do Espírito Enviado

( para os que vão por essa via ).

 

Não sabemos viver, mas vivemos

pela graça da Vida —

que é pródiga e não tem pressa...

Um dia todos chegaremos

àquela Cidade (em nós)

cuja luz

é a presença do Cordeiro.

LA 98/02

 

 

 

 

Notas

 

Ponderando entre um antes

e um depois,

o homem considera a perda

e já remonta o palco

de um novo sonho

para um possível ganho.

De perda-ganho em perda-ganho

o homem perde para o tempo

que lhe vai usurando vida

a seus humanos recomeços.

 

Entre o poscênio e a ribalta,

o homem vê que tudo quanto viveu

foi só um bocado pouco —

por um ângulo mesquinho

do seu meio e de si mesmo.

 

As rosas lhe são agora mais preciosas

e as tardes já não as matam:

as duas morrem de uma só causa —

a de cumprir a vida.

O inverno, agora,

lembra-lhe a primavera —

ressurreição de sonhos congelados.

Uma coisa está na outra,

nada exclui nada

( a não ser na dialética dos homens ):

a vida tem um reencontro

consigo mesma em outras gamas...

A fraqueza dos anos

é compensada pelo entendimento,

que, agora, se multiplica.

Pelo conhecimento

que já lhe vem de graça —

pela analogia das vivenciações.

Maduro como um fruto —

sente o caroço-semente desse fruto

solto em seu coração:

solto e livre do mundo

e de si: da ambição que amarra

e apequena, porque é medo.

 

Quando se lembra de tirar a máscara,

vê que já não a tem,

foi filtrada pelos anos

através de seu rosto:

sua canção de vida

está nas últimas notas —

nas últimas preciosas notas.

Então o homem se aquieta,

estica o ouvido para essas notas —

elas são ele, que parte.

E parte sem medo

quem foi capaz de amar.

LA 98/03

 

 

 

 

Estratégia Escatológica

 

Muitas vezes ele se jogava no sofá

e se deixava trespassar

daquela sensação levitante,

escatológica, bíblica

de fim de mundo.

 

Era uma catarse

dentro de outra catarse —

em que o mundo escorregava

de seus ombros,

seus problemas escorriam

para e pelo chão.

 

Sublime essa sensação:

o mundo irremediavelmente

se acabando,

gostosamente explodindo,

queimando como palha,

esfarinhando-se pelo ar e espaço...

Tudo deliciosamente se perdendo,

inexoravelmente já perdido,

para sempre, eternamente em perdição.

 

Depois de saborear lenta,

magnificamente a sensação

de acabamento acabado,

de fim findado de tudo —

Davi dormia, sonhava

e ressonava por muitas

e muitas longas, intermináveis horas.

 

Acordado, tomava um banho,

comia legumes e frutas

e voltava novinho em folha

para os pregões da Bolsa.

LA 98/03

 

 

 

 

Mesa Posta

 

Quando amanhã for hoje a gente o morde

e cospe o seu caroço para o ontem.

Desse caroço nascerá uma árvore

que dará os seus frutos no amanhã...

 

E nessa roda tríplice, os frutos

do amanhã passam pelas mãos do hoje

e escorrem para o ontem que a memória

recicla no hoje, filho do amanhã...

 

Ontem era hoje e hoje era amanhã —

que gerou hoje, e hoje gerou ontem

que se une ao hoje, vindo do amanhã...

 

Hoje é o ponto de encontro de dois sonhos —

o encontro do futuro com o passado

no hoje, a mesa posta: o pão e o vinho.

LA 98/03

 

 

 

 

Projeto

 

Quem sabe um dia

te faço uma canção

em que te vejas

tão bela quanto nem te sabes

e tão mais adorável

quanto a palavra proferida

no exato instante

de dissuadir o suicida

ou impedir o adultério.

Tão adorável

como esperar de madrugada,

ao vento animado e frio,

alguém que tem um pedaço

da nossa alma

e que desembarcará

entre o vento

vestido de antemanhã

e as estrelas já ensonadas...

LA 98/03

 

 

 

 

Cartilha ''Deles''

 

Assim que ''aqueles''...

nos ensinarem a escrever:

nos orientarem no tema, no léxico,

na morfologia, na colocação ( e palavrões )

e pontuação de gente grande ( sic ) —

exclamação, dois pontos, reticências:

coisas de poeta menor ou natimorto ( sic ).

Cuidados com o poema-piada,

com a piada-poema

e assim por diante...

 

Logo-logo estaremos escrevendo:

assim que nos elegerem um estilo —

''enxuto'',  ''diserto'', ''escorreito'', ''terso'':

talhado a canivete, formão, machadinha,

fórceps e mordidas do sr. Tyson.

Tipos de versos: se brancos, se pretos, se longos,

se curtos, tensos, distensos, fálico-vaginais —

ou quando ''um'', quando ''outro'', quando

''nenhum'' e pourquoi  tal opção...

E mil teorias, não-teorias, antiteorias

( poesia-antipoesia )

com seus supra-suprismos

e infinitos-mais...

 

Como empregar, ou não, o adjetivo,

o gerúndio, os relativos...

Como evitar o antipoético ''para que'' ( final ),

as palavras e expressões-muletas...

e outras evitâncias de quem conhece

a largura, a fundura, o comprimento,

as alturas ( modestamente ) da Arte...

 

E como borrifar nosso estilo

de elegante ironia e fino ( sic ) humor.

E atenção: ao armar ( sic ) o texto —

galvanizá-lo de competente

antropologia holístico-filosófica, etc.

 

Com essas ''dicas'' —  vindas da Cimeira —

qual intelectual que

com o mínimo de vocação

não fará pelo menos

um trabalho maior?

 

Graças a Deus, os Mestres existem.

E tantos

que já nem existem alunos.

 

Doces raios

partam e repartam

tantos canalhas ( ! ).

LA 98/03

         

 

 

 

Escrever

 

Escrever

é um modo de não estar só.

Ler em primeira mão

um poema

é coisa muito agradável —

lisonjeante até.

 

É uma forma de dizer

a mim mesmo e a possíveis

que escrever vale a pena —

desde que a pena valha.

 

Escrever gratifica,

desde que, entre nós e as linhas,

vejamo-nos cobrindo de tinta

os poros do silêncio —

enquanto ele começa a dizer-nos coisas

que livro algum,

pessoa alguma

poderiam dizer-nos

assim tão de dentro das coisas,

coisas assim tão responsivas

a tudo aquilo que indagamos

( de soslaio ) sobre a vida.

 

As linhas, cobertas de frases,

falando, em primeira mão,

diretamente a mim —

são uma companhia

boa e oportuna,

e põem um sentido-flores

em vasos cor de surpresa.

 

Escrever

me é deixar desenrolar um roteiro

de que já tinha me esquecido.

LA 98/03

 

 

 

 

Tintas

 

Você, que detestaria falar de fadas,

que se coraria de ter musa,

que sorriria de anjos da guarda —

claro que respeitamos você.

Você tem razões para rir do infantil,

ou do maduro, ou do sagrado.

 

Nós lhe pediríamos

que nos deixasse usufruir

de todas essas companhias —

mais a esperança,

o sonho,

a fé

e a certeza de que o amor

é o melhor do universo.

 

Quando o homem

se encontra

com a beleza-verdade —

é deixá-lo vivê-la.

Quem então poderia

dar-lhe algo melhor?

 

O inconsciente abrange o coletivo,

mas o consciente é pessoal —

e filtra dados daquele

para escrever nova história

com as tintas da infância

e as do homem maduro:

é preciso sentir que se é

além do tempo e do espaço.

LA 98/03

 

 

 

 

Livre Ou Escravo

 

Liberdade de ser,

de fazer.

 

Ser o quê?

Fazer o quê?

 

Dependendo do que se é

ou se faz —

pode-se muito bem

ser escravo

ou livre

em se ser

e fazer.

 

Liberdade e amor —

estes dois, sim:

podem ser a medida

do que se é,

do que se faz.

 

Amar é não faltar-se.

LA 98/03

 

 

 

 

Piedosa Intercessão

 

Bom é amar

quando o amor transcende o ego:

o homem é então senhor,

jamais vassalo de si mesmo.

 

Quando o amor

supera a carne

e o mundo —

é amor liberto.

 

Nesse caso, o homem

fez da esperança

a sua força ubíqua.

Fez do sonho

seu caminho de travessia.

Fez da fé

o gozo antecipado

do que espera.

Fez da vida

a bênção de ultrapassar-se.

 

Mas o homem só faz isso

pela piedosa intercessão

do Espírito de Deus.

LA 98/03

 

 

 

 

Amigos

são como bicicleta —

para planuras e descidas.

LA 98/03

 

 

 

 

Masculino E Feminino

 

Ser homem ou ser mulher

está além

de ser homem ou ser mulher.

Na dimensão do humano

entram elos de barro

com elos estelares —

argila e luz

que apenas ''passam''

pelo masculino e feminino.

 

Feminino

e masculino

são modos diferentes

de a vida se exprimir

dentro do complexo de ser —

que faz buscar não-ser:

uma realidade,

talvez maior, de ser,

porque pretende de si

um devir sem angústia.

 

Feminino e masculino

são adaptações a aparelhagens

construídas por genes

na humana caminhada.

 

Masculino e feminino

são como luzes e sombras

que produzem o dia —

suporte do real:

realidade e teatro do ser.

LA 98/03

 

 

 

 

Emissão-Aceitação

 

Há palavras

que são pedaços de chumbo

atirado à nossa cruz.

 

Outras há

que são o ombro de Cireneu.

 

A palavra cria,

a palavra castra.

A palavra perde,

a palavra salva.

 

O poder da palavra

está na sua

emissão-aceitação.

 

( Em não havendo aceitação

ela não tem poder... )

 

( Contra a passividade

e a alienação

não pode nada a palavra. )

 

Sem o nosso consentimento

a palavra não nos alcança.

LA 98/03

 

 

 

 

Doença

 

A honestidade

é o quanto pagaríamos

para sermos felizes.

 

O jogo, porém, de mentir,

o hábito de enganar —

são coisas que seduzem

muito mais que felicidade.

 

Tudo isso carreamos

lá dos nossos avoengos —

seu-nosso amor negativo:

seu-nosso amar do avesso.

 

E o mais é doença

que nos impede de amar

a nós mesmos e aos outros.

LA 98/03

 

 

 

 

Banalização

 

A corrupção banalizou-se —

virou algo trivial, normal

como as pessoas se manusearem

antes de encontrarem o parceiro —

a honesta companhia.

 

Roubam-se em seus direitos econômicos

e em seus direitos morais

ou de fruição

do que era seu ou do outro:

o ético lá em si

apanha na bunda e na cara.

A sociedade, banalizada,

se enfraquece.

E, sem dúvida, fabrica cínicos,

iniqüidades e conivências

de sorriso molhado e amarelo

e hilariamente boçal-hipócrita.

 

              Tudo está sendo nivelado

pelo banal,

pelo pequeno e mesquinho,

pelo baixo:

as exceções se fazem regras.

Lamentável,

lamentável momento!

Mas... é o que temos.

Sim: é o que nos criaram-criamos.

Curtamo-lo, portanto, —

cada qual a seu modo.

LA 98/03

 

 

 

 

Re-ex...

 

—Vou até a outra margem,

mas volto logo.

Por favor, diga à sua mãe

que vou buscar algumas coisas

que deixei lá faz algum tempo.

Eu era ainda muito moço...

 

    Sim, meu pai, eu digo a ela.

 

Atravessou

a cidade, a si mesmo,

o grande rio,

foi até a aldeia de pescadores,

onde fora criado, e

por lá ficou um bom tempo.

Apertou mãos, abraçou, beijou rostos.

Reviu-reviu. Papeou-papeou.

Comeu pão com peixe

à beira de fogueiras ( suspiros

de galileu... ). Visitou

parentes e o cemitério.

Depois de muitos goles e engoles

voltou.

 

 

Seu filho pergunta:

— Meu pai trouxe o que foi buscar?

 

— Não havia o que trazer.

Até o gosto do peixe ficou lá.

Não era ''aquele''.

O burburinho das conversas,

o riso dos compadres...

nada já tinha aquele brilho

que retinia de alma em alma...

Fui buscar, não achei.

Vim mais só do que fui.

..................................................................................

Não encontrei o que eu levava na alma,

vi que só estava em mim...

Não encontrei

a não ser a verdade transladada

para o futuro do passado

( do deveria haver, talvez, )

a remexer coisas doídas —

coisas outras, porque vistas

com olhos outros tão mudados.

Coisas estranhas, hoje reesquecidas.

 

Aprendi que a outra margem

já não está em alma:

um engano —

só existe enquanto se está lá.

 

A vida tem apenas uma margem —

aquela que no agora-aqui

tem sentido para nós.

LA 98/03

 

 

 

 

Para Sempre

 

Para sempre? Seja a esperança —

que é força e companhia.

 

Para sempre, seja o sonho

da possibilidade.

 

Para sempre, seja a fé —

que é ter olhos no escuro.

 

Para sempre, seja o amor

ao amor:

em elos de ''eu'' ao ''tu'' e ao ''três'' —

dissolvidos na Unidade.

 

Para sempre, seja crer

que para sempre

tudo é possível ao que crê.

 

Para sempre, seja saber

que para sempre

será possível sonhar.

LA98/03

 

 

 

 

Castelo De Açúcar

 

Todo bípede implume

que quiser se depenar

e despelar,

afora o escárnio acompanhante —

é só arranjar uma/um amante:

dessas/es fatais, libido-angelicais —

cheias/os do bonzo amatório das épocas.

 

Só arranjar uma/um amante

e aguardar a última tarde de chuvas

em seu castelo de açúcar.

LA 98/03

 

 

 

 

Material Astral

 

O Sexo é possível a todos.

O amor , de modo algum.

O amor é lembrança,

florescimento aberto em luz

da energia de uma mesma estrela

na carne e alma e espírito

dos que se sabem

dois corpos

num só desejo e vontade.

( Esse tipo de amor

é para muito poucos,

tanto que o mundo insiste

em que ele não existe.)

Há um mesmo material astral

na carne e alma e espírito

dessas criaturas

que se amam

num requinte de um sonho imortal —

tão lindo quanto infindo.

A morte jamais toca

nesse tipo de amantes:

o amor os arrebata antes

( como lhes fez em sua vida inteira ).

O amor os arrebata para as longidões

orvalhadas de sonho.

A morte apenas fica

com aquilo que embrulhava

as suas esperanças.

LA 98/03

 

 

 

 

Levitação

 

Pela Índia, pela China,

pela Ásia, Oceania

andei procurando mestres

que me ensinassem a arte

de levitar.

Achei. Acharam meu bolso

( eu era um adolescente ):

meditações, palestras,

exercícios ( eso )-exotéricos.

E o máximo que consegui

foi dar uns três passos no ar —

quando pescava e

pisei numa serpente.

 

Daí a uns tempos,

conheci Leda-Eva.

Esta, sim, me suspendeu

até o teto —

quase me quebra a cabeça.

E de cefalalgia

com Leda-Eva erosvitei.

Libivitei.

Nefelibatei muitos dias

com astenia e fastio —

com Leda-Eva orgasvitei.

LA 98/03

 

 

 

 

Já-Já-Já

 

E bendita seja a fé

que nos leva a já termos conquistado

coisas que, hoje, são ainda esperança.

Que nos leva a transitar,

não por uma estrada visível —

mas sobre aquilo que não vemos

e que, com as mãos de Deus,

transforma o material dos nossos sonhos

em coisas-recriações,

em saltos-transcendências

lá em nosso ser.

Pela fé já chegamos,

e nem já precisamos...

porque já somos.

LA 98/03

 

 

 

 

Canção De Amor-Humor

 

Os nossos laços, amada,

não andam lá essas coisas —

têm um sabor de estrada

os beijos que me ousas.

 

Ainda bem que o que morreu

( de face bem-humorada )

foi algo que nem nasceu —

daí não ter sido nada.

 

Lá fora cai a nevada

e o vento uiva, que corta.

Quando saíres, amada,

não me machuques a porta.

LA 98/03

 

 

 

 

Poder E Poder

 

Há o poder que morre,

que vem do pó

e é pó —

constitui-se da ''escuderia''

das raízes de família,

dos restos de fortuna,

dos genes nobres,

dos cargos,

das comissões,

das instituições:

das classes dominantes —

sempre às costas daqueles

a quem investe de seu poder.

Esse é o poder que morre.

Seus limites

são os limites da carne.

 

Há também o poder

que é do tamanho do amor humano

e irmão de sua liberdade.

Nesse poder o homem é

tão mais poderoso,

tão mais liberto

quanto mais ama a Vida,

a humanidade e a si mesmo.

 

Esse poder, irmão da liberdade,

é do tamanho

da humana capacidade de amar —

e vem das mãos santas da Vida.

E nada, ninguém pode driblar seus desígnios.

Esse poder é ubiqüidade

para outros planos-dimensões em nós.

Um poder conferido pela Vida,

aquela que não morre.

LA 98/03

 

 

 

 

Mr. Dédalo

 

Lá nos porões da infância

um medo abléfaro

ouve contos antigos

de amas estúpidas.

 

Tais amas já morreram,

mas os seus cânticos

ecoam pervagantes

em outras gêneses.

 

Lá nos porões da infância

Eros E Tânatos

vagam no labirinto

de Mr. Dédalo.

LA 98/03

 

 

 

 

Lógica Cartesiano-Intuitiva

    ( Monólogo Humano )

 

Penso, logo posso ser presa

de toda ideologia —

se disso não souber.

 

Existo, logo o sonho

é verdade.

 

Intuo a realidade,

logo sei ir além

do pensamento.

 

Sonho, logo posso

reconstruir o real

com o plasma dele mesmo.

 

Profetizo, logo me impregno

de ''matéria negra''

e a vejo iluminar-me,

deixando-a traduzir-me fatos

que ainda veremos —

mas que já foram

em outras gamas-tempo

do universo.

 

Tenho visões,

logo existo em várias gamas

de ver-sentir-pensar-intuir

os estratos de realidade

segundo a minha aparelhagem

que me faculta trabalhá-la.

 

Sinto,

logo tempero as palavras

no fogo do coração —

enquanto meu intelecto

fá-las moldes de vida

do sonho para o papel.

LA 98/03

 

 

 

 

Para Mais Vida

 

Se a vida dói,

faz de conta que dói pouco.

É desaforo

ficar amarrado a dores

pelos cantos de si mesmo.

 

Meu lá dentro me diz

que a vida dói porque está viva

e quer mais vida.

Que a vida dói pra nos dizer

que, assim, não está bem —

que sua moradora, a consciência,

deve buscar o que lhe falta:

ligar-se com a Fonte

e aprender a fluir, água viva.

 

Se a vida não doesse,

como sair do barro

para a luz?

Como organizar o caos

em harmonia?

 

A vida dói? Claro que dói.

Entre um estágio e outro

a vida dói.

Nossos estratos de consciência

são como larvas.

E entre arrastar-se e voar

a vida dói.

LA 98/03

 

 

 

 

Permitam-Me!

 

A minha poesia

tinha de ser diferente

daquela que ''Vocês''

gostariam de escrever.

A minha poesia

é assim, não porque quero —

é assim porque tem de ser assim.

 

Escrever sempre me foi chato —

gostaria de não mais fazê-lo,

não fosse esta irresistível

compulsão para o texto.

 

Não falei em missão

nem em coisa assemelhada.

Disse que, para mim,

escrever é compulsão,

ou melhor: metabolismo.

 

Permitam-me continuar

a escrever —

mesmo porque minha poesia,

se vier ao sol,

virá só bem depois

que o brilho de ''Vocês''

estiver nos escrínios

de suas academias

e feudos.

 

''Vocês'' são o visgo desta hora —

não voam, nem deixam voar.

São o bonzo dos intelectos

fabricados em salas de aula.

De minha parte,

nenhum espanto.

Nem dou meu pranto

a mortos ordinários.

LA 98/03

 

 

 

 

O Caboclo E Seu Amigo

 

O meu amigo, Deus o tenha.

Deus o tenha, mas sei não...

Pelo tanto que malfez

deve arder lá nas profundas

( se bem que o livro de Jó

manda ninguém julgar ninguém ).

Deus me livre e tenha dó

do meu amigo e de mim —

me livrando das profundas:

uma vez que ainda vivo

e meu amigo, coitado,

nem fazer isso já sabe.

A Deus sempre agradeço

pela vida que me dá, —

não importa a qualidade.

Como disse aquele rei

que tinha um delicioso harém

com mais de mil e muitas xotas:

Cachorro vivo não deve

invejar leão morto.

LA 98/03

 

 

 

 

Aba, Meu Pai...

 

Aba, meu Pai, me disse

( bem lá no imo do meu ser )

que quando Ele Se sonhou

dentro de um outro sonho

que jamais O gerou...

Aba, meu Pai, me disse

que desde que Se sonhou

tudo o que existe

é

desde aquele-este-momento.

Aba, meu Pai, me disse que o homem

tem seus genes de Criador

e que estes são acionados pela fé.

Aba, meu Pai, me segredou

que a idade sem idade que Ele tem

tudo o que existe tem.

E Aba, meu Pai, não mente,

pois, se mentisse,

só poderia mentir para Si mesmo.

LA 98/03

 

 

 

 

Pregação

 

O pregador falou

durante muito tempo.

Ia e vinha,

ajuntava e espalhava,

afirmava e negava,

esbofeteava e alisava,

dizia e, jeitosamente,

desdizia —

pausada, estudadamente,

como de frente a um espelho,

ora com pouca,

ora com luz demais.

Por fim, jogando, magistralmente,

com o charme das sombras...

 

A intenção do pregador

( por meio da acusação )

era a de remeter

à culpa,

à vergonha

diante da nossa incapacidade,

diante da nossa ignorância —

a da assembléia ( e a dele própria ).

LA 98/03

 

 

 

 

Ler E Comer

 

Livros,

uns a gente lê,

outros a gente come.

 

Os que devem ser comidos

( metabolizados

e incorporados

ao nosso próprio caminhar ) —

são poucos.

 

Quando os manuseamos

sentimos que alimentam

a nossa outra fome —

a fome do que nos falta:

o outro pão,

o único vinho

que nutrem a Presença

a resgatar em nós

a imagem-semelhança.

LA 98/03

 

 

 

 

 

Humor E Dor

 

Bem melhor pelo humor

que pela dor.

Sempre que me é possível,

opto pelo primeiro —

se bem que este, muitas vezes,

é uma espécie de luto

com músicas e danças.

 

Não raro, para mim, o humor

é uma fórmula de molho

que não como todo dia.

Só quando não aceito a realidade.

LA 98/03

 

 

 

 

Intercessão

 

Abençoa, Senhor,

a todos aqueles

que no seu coração

estão sozinhos e sem respostas.

 

Manda um burro falar com eles,

Senhor,

como fizeste com Balaão.

Manda as suas paredes e seus móveis

falar-lhes com amor,

mansidão e discernimento.

 

Estão cansados de ameaças,

perseguições e medos —

medos do homem,

medos da vida,

medos de Ti, Senhor.

Te pintam bem pior que os piores:

com muito mais maldade

que os mais maldosos.

 

Manda, Senhor, que as pedras

falem com eles

com compreensão e carinho.

Manda, Senhor, que os bichos

lhes dêem calor de vida.

Que as feras

lhes ensinem confiança e complacência.

Manda, Senhor,

que os pobres de espírito

lhes ofereçam o melhor do seu sorriso,

o mais doce de sua voz,

o mais humilde de sua ensinança,

o mais manso de sua loucura.

LA 98/03

 

 

 

 

Só Uma Olhada

 

Dá só uma olhada

nessa faixa de céu azul:

não lhe parece que ri

de nós... e para nós —

bondosa, serenamente?

Não parece dizer:

Para que tanta pressa,

tanto estresse,

tanta angústia?

Porventura esqueceram

que a vida é muito mais

que essa muralha de aparência

que vocês construíram para si

e a reconstroem no dia-a-dia

de suas aflições?

 

Porventura esqueceram

que a vida é mais,

muito mais que só isso?

LA 98/03

 

 

 

 

À Moda Antiga

 

Vai embora, vai pro inferno.

Vai para onde quiser

teu coração, mas não me fiques.

Já não vejo nada de terno

no seu jeito de malmequer —

a não ser manhas, chiliques.

 

Vai pro inferno e lá te peguem

dois ou três demos de mau gosto.

Literalmente te carreguem

broncos diabos dos bem brutos,

e eu nunca mais te veja o rosto —

ao menos por dez minutos.

LA 98/03

 

 

 

 

Você Já Viu?

 

    Quem viu o demo por aí?

 

Todos se entreolharam

com certo constrangimento —

entre o mal-estar e a vergonha.

 

    Então, ninguém viu hoje o demo? —

pergunta o guarda de trânsito.

 

    Vi, sim, — disse uma velhinha —

vi sua mão levar a carteira

de um senhor saindo do banco.

 

    Vi também — disse um moço —

vi o estrago que fez a bomba

que ele explodiu no shopping.

 

    Também eu — disse um senhor —

vi sua astúcia decretar falência

de uma empresa.

 

    Ainda bem — disse o guarda —

que alguns já podem vê-lo

nas intenções e ações dos homens.

 

         — Também nós...

    Pois bem, amigos — interrompeu o guarda —

vamos deixar, agora, que a mídia

nô-lo mostre em cada página.

LA 98/03

 

 

 

 

Pedido

 

Desde bem moço

pedi a meu Senhor

fosse com suas mãos

ao mais fundo de mim —

e dali retirasse o humano

que ele em mim criara

e o potencializasse,

e o verbalizasse

e o trouxesse para fora

realizado em sabedoria

e graça.

E me desse por mestre

o Espírito

para me conduzir

a toda verdade.

E a fé

fosse o meu enxergar no escuro.

E a esperança

fosse eu já viver aqui

o que ainda não vejo.E o amor

fosse eu não dever

o que a vida quer

que eu pague ao outro e a mim.

E a graça

fosse saciar

a outra fome, a outra sede

com aquele outro pão,

com aquele outro vinho.

LA 98/03

 

 

 

 

Por Atritos

 

Tempestade lembra bonança,

não por associação —

mas por seqüência meteorológica.

 

Quem não gostar da tempestade

que espere alguns minutos —

logo haverá de se entediar

com a bonança.

 

A vida tem usado

essas duas vizinhas

de casas geminadas —

em todas as situações                                                

em todas as nossas células.

Entre esses dois opostos,

a consciência deixa o sono

e ousa o discernimento

e a autonomia entre os contrários.

 

Não gostando da tempestade,

espere alguns minutos.

 

( Não apreciando o poema,

leia outro, de outro. )

Se não gostar da vida,

canta a ''Canção do Marinheiro'',

do avesso...

e não se mate —

mas apenas se coce,

tome um bom mate

com biscoitos de chocolate.

LA 98/03

   

 

 

 

Vagamundo

 

Vento que vens de longe,

que mensagem nos trazes

tocando o teu violino

com o arco da ramagem?

 

Que nos trazes, velho vento?

Velho vento

dos fantasmas de poeira...

das nuvens puxando rá-pi-das

a sua toalha escura...

da folha que se agarra à vida...

do pólen que está beijando

a flor e o fruto ainda sonho?

 

Que nos trazes, vagamundo?

 

 

 Ah! Tu nos trazes o recado

de que a esperança está viva:

de que o ser cavalga o tempo

lá pelas bandas de ser-se.

LA 98/03

 

 

 

 

Abóbora Cósmica

 

Vem vindo aí um asteróide

( diz a ciência )

do tamanho de uma abóbora cósmica.

 

Que delícia, a coisa vem vindo aí!

Vocês que gostam de escatologia,

que adoram ''apocalipses'',

que amam os sinais dos tempos

e esperam pelo fim do mundo —

podem preparar seus sermões,

suas palestras,

seus livros,

seus panfletos,

seus hinos.

Vai tudo arder como palha.

Vai ser a coisa mais linda

desses últimos tempos.

 

Adeus.

Que a pedra nos seja leve.

LA 98/03

 

 

 

 

Arte E Ver

 

Um dos objetivos da arte

é transtornar

as convenções da aparência.

Pode-se mostrar, por ela,

o que proíbem de se ver —

a inculcação dos rótulos

e dos valores:

os deveres, os hábitos,

os vícios

do fazer ''sempre assim''.

A tirania

do assim-sim, assim-não,

do que cheira a formol:

a criação-manutenção

do Sistema Reprodutivo.

 

Paga-se pela arte um preço

que só se justifica

pela não-omissão

de se contar-mostrar

a si e ao outro

uma outra história-forma

de ver.

LA 98/03

 

 

 

 

Perigo

 

Em todos os campos,

em todos os tempos

fazer-se de bobo

sempre foi um bom negócio.

O problema é que às vezes

ao nos fazermos de bobos —

descobrimos que estamos

sendo bobos de verdade.

LA 98/03

 

 

 

 

Picaresco

 

Desesperar é desaforo.

A vida, Teresa,

não gosta de covardes.

Deus me livre de heroísmos,

mas covardia não é comigo.

Se o mundo for acabar,

me chame dez minutos antes

para comemorar.

Certa vez li num olhar

que aquele que não se atreve

perde a hora e o lugar.

........................................................................

Bem me quer, mal me quer...

Antes de existir o amor —

o que é mesmo que existia?

.........................................................................

Desaforo é desesperar.

O coração, Teresa,

tem razões pra se enganar.

LA 98/03

 

 

 

 

Telenauta

 

Que quero mais,

se tenho a Net

com suas teletudes?

Internautas em reciprocidades.

Estudos. Pesquisas.

Namorares e ficares.

Telecópulas lentíssimas:

com gemidos e orgasmos telenáuticos.

 

Quando é que meu pai pensava

que iria ter um filho safadinho,

capaz de fágicos prazeres:

teledeleites, telecremes, teleméis —

disponibilidades frente e verso

e libido depiladinha ou pilosa

com acoplamentos cárneos-mentais

em teletransas populares,

telefornicações universais

e outras teledelícias fálico-vagínicas —

e ( pasme aí no céu, meu pai ):

tudo, tudinho aqui, sentado,

nesta cadeira, aqui na sala ?

Ah, Net!

Que faria eu sem você?

Como é que eu poderia

cuidar da minha cabeça

sem você?

Ah, Net!

LA 98/03

 

 

 

 

Bobeirólogos

 

De bobeira em bobeira

vamos vivendo

e vamos nos graduando...

e fazemos de conta

que o avesso disso é que vivemos.

 

E vamos nos graduando

e nos especializando

nessa universidade

que os homens levam a sério

e se animam em cursar —

com mestrado e doutorado

em bobeirologia.

 

Bobeirólogos formados,

e registrados —

quem é que pode conosco?

Ninguém.

Uma vez bobeirólogos,

bobeirólogos para sempre.

LA 98/03

 

 

 

 

High Tech

 

Sobeja em nós, Teresa,

amor dos bons, — high tech.

Nesses dias cibernéticos

de ternuras robóticas —

que mais na vida precisamos?

Um amor ''baixos teores'',

de parceria light

e calorias diet

a colorir de azul

os nossos teen

( interiores ) —

que mais na vida,

darling?

Que mais?

Um relacionamento

de ponta.

What more?

Que mais nos falta?

Um acasalamento

de dólares —

investimento

de mundo em alta:

sucesso internetizado

( com e-mail personalizado )

e outras esterlinas...

What life's more,

partner?

Isto é que é vida king size.

High tech love,

darling.

LA 98/03

 

 

 

 

À Porta, À Espera

 

O lugar onde se nasce

é sempre o melhor possível

para o homem elaborar-se.

O nem sempre sair-se bem

são desvios de ser.

A vida a ninguém programa

para o fracasso e miséria.

Ao contrário: pacientemente

espera que cada um

traga de suas entranhas

o humano

de seu destino cósmico.

Esse humano original,

respingado de Deus,

será o resgate final

( e inicial )

da imagem-semelhança.

 

Deus, nossos pais e a vida

não nos ficaram

devendo coisa alguma.

Se nos achamos no escuro,

podemos abrir a janela —

e ela sempre entrará:

a luz fresca do amor —

paciente, à porta, à espera

de um renascer

em alma-coração.

LA 98/03

 

 

 

 

Tiranias

( Das telas de Egon Schiele )

 

Dentre as tiranias,

a da libido

talvez seja a mais terrível:

a que traz atados

ao ardor de vitalícia insatisfação

crianças, adultos e velhos

na ebulição do desejo

ciliciando a existência.

 

Ao homem, escudeiro servil

de tiranias invisíveis,

só lhe resta lutar

( dentro dessa cadeia de servidão )

por sua liberdade —

de libertação em libertação

na contínua transcendência

de si mesmo.

LA/98/03

 

 

 

 

 

Nem-Nem

 

Nem do puro mel,

nem do amargo fel:

um e outro são extremos,

e não o que vivemos.

LA 98/03

 

 

 

 

Estratégia

 

Só depois que morreu

é que verificaram

( pelos escritos que deixou )

que sua bobeira era falsa.

Era apenas um modo

de poder sobreviver

em meio a tanta inveja,

tanta competição medíocre.

 

Apenas uma maneira

de se fazer julgar

passivo e alienado

para viver em paz:

lendo, criando, transcendendo

( em sua casa de silêncio )

entre a palavra e a solidão.

 

Um jeito apenas

de poder sobreviver

próximo aos que têm voz e vez.

 

Uma estratégia apenas

daqueles que se sabem

buscadores do que lhes falta

para ultimarem

a travessia da ponte.

LA 98/03

 

 

 

 

Peripatético

 

Um ver peripatético

pelos desvãos da realidade —

em busca sempre de outras brechas,

de outras fendas-realidade.

Puxar o humano para fora —

fazê-lo prevalecer

na sua interação com o Outro —

todos construindo

com os ossos dos milênios

uma espiral escadaria —

que vai desde a Caverna

ao infinito de si mesmos.

 

Um construir peripatético

( pelos poros do humano )

de n-acessos humanizados —

todos levando àquela estrada,

àquele pão, àquele vinho,

àquele rumo e pegadas

do Filho do Homem.

LA 98/03

 

 

 

 

Libido

( Das telas de Ergon Schiele )

 

Dentre as loucuras genéticas

e aquelas constituídas

( as híbridas e as geminadas ),

a tirania da libido —

quando não sublimada

( não transmutada em força )

a serviço do Humano,

é a que mais revela a miséria

da condição humana.

 

A tirania da libido

se encontra na raiz

de todas as tiranias.

 

Quem domina a sua força,

organizando os seus soldados —

pode crescer

( por sua espinha dorsal )

até a cidade sagrada.

LA 98/03

 

 

 

 

Tecidos Inteligentes

 

Logo usaremos

tecidos ''inteligentes'' —

no inverno nos aquecerão,

no verão, ao contrário.

 

Quem sabe se com a ajuda

de um chip lingüístico

tais roupas não contarão

histórias para o sono,

contos para o despertar.

Quem sabe

não terão em seus chips-alma

gorjeios, brisas, ventos, chuvas,

temporais, raios, trovões,

os sais, os sonhos da terra,

a bênção ( não menos nutriente )

das estrelas?

Quem sabe não nos contarão

histórias que ouviram de Deus,

bem como de seres fantásticos —

tão fantásticos como reais

de uma realidade invisível,

mas nem por isso menos real.

LA 98/03

 

 

 

 

Abençoadamente

 

Se for assim, está bom.

Se não for, está bom também.

Se for de outro jeito,

não acharei ruim —

ainda que os jeitos sejam outros.

Acharei bons todos os jeitos —

contanto que esses tais

sejam abençoados.

 

Havendo bênção,

tudo se ajeita —

dizia minha mãe

( que era uma ''pobre de espírito'' ),

e eu cria que era assim —

foi por isso que sempre

me foi assim.

 

Pouco ou muito,

assim ou não-assim —

aquilo que é abençoado

traz alegria em si,

faz a gente feliz —

mas é preciso ser

pobre de espírito

de verdade.

La 98/03

 

 

 

 

Picada De Mosquito

 

Não me agrada estar aqui

escrevendo isto, agora,

e em desconforto:

com um fiapo

de tristeza de infinito

entre os dentes —

sentindo-me de esguelha

com a vida.

 

Aliás, bem à minha frente,

está um vaso com flores

que alguém muito especial

me pôs defronte aos olhos

pra me dizer, por ele-vaso,

o que não quis dizer por si-pessoa.

De modo que, por causa desse vaso,

a minha dor de vida

é uma dor menos sozinha.

Mesmo assim volto a dizer:

não gostaria de estar aqui

escrevendo isto a esta mesa, agora,

embora saiba ( ou julgue )

que a vida apenas me devolve

aquilo que me programo —

diretamente ou por tabela.

Por isso reconsidero

que estar aqui isto escrevendo, agora,

é apenas ( graças a Deus )

estar aqui isto escrevendo, agora,

se bem que isto já estivera pronto

não fora eu ter ainda pra dizer

que escrever um poema

é como coçar a orelha

picada de mosquito.

LA 98/03

 

 

 

 

Idéia-fixa

 

O que Deus dá

o Diabo vem e toma.

E logo que Deus redá,

o Diabo torna e retoma.

E já faz tempo

que o Diabo põe no bolso

as bolas desse ''pingue-pingue'',

sem ''pongue''.

 

Deus é pródigo —

dá para fartar a todos.

O Diabo desvia o que é de todos

para alguns poucos.

 

O Diabo são esses homens

que atulham, abarrotam suas casas

com aquilo que é de todos.

E o que não cabe em suas casas

carregam para o exterior —

fortuna, ubíqua não:

cosmopolita.

 

O Diabo é uma mentira

das mais verdadeiras.

Vemo-lo travestido em homens

que pegam para si

o que é de todos.

Ou travestido em anjos de luz

pra tentar convencer

aqueles cidadãos

cujo voto não é dele.

 

O problema é que o Diabo

é como o pensamento:

só se faz visível

quando se torna idéia-fixa —

a de pegar para si

o que é de todos.

LA 98/03

 

 

 

 

Chuva E Pés Descalços

 

A lembrança

de um sonho bom

no era uma vez

duas crianças descalças.

 

A beleza

de uma romeira ao sol, ao vento,

à chuva

de nos lembrarmos crianças

com os pés felizes,

os cabelos molhando

nosso sorriso.

 

Onde esses dias?

Rolaram com a chuva?

Não. A chuva não leva

o bom, o belo, o infindo

( do instante findo ).

 

Apenas caminhamos

( num círculo? )

de modo a nos encontrarmos

( nós e o que fomos-sonhamos )

frente a frente.

 

Certamente estaremos outros —

nós e o que fomos,

mas sempre nós:

mais complexos, mais unos

a cada encontro —

até nos transformarmos

na estrada ( agora espiralada )

daquele-desse sonho.

LA 98/03

 

 

 

 

Só Escrevo

 

Só escrevo

porque escrever

é uma maneira de vingar-me

de haver o branco do papel —

de haver o branco da vida

entre a palavra e o silêncio.

 

Só escrevo

porque escrever

é uma forma de ( sem sair de casa )

ter muitos companheiros

e conversar com eles

pela estrada de ser.

 

Só escrevo

porque escrever

é aprender a falar comigo

e com pessoas de todas as épocas —

por essa escada de tempo

que posso subir e descer.

 

Só escrevo

porque escrever

me faz sentir ligado à Fonte

que me liga ao cheiro bom de Casa,

à lembrança do humano em mim

e ao resgate da imagem-semelhança.

LA 98/03

 

 

 

 

Justificativa

 

Justificar é engraçado.

Geralmente é uma maneira

de mentir duas vezes:

uma, pra ''não se sabe quê'',

outra, pra se livrar

daquele ''não se sabe quê''.

 

Justificar é engraçado...

A coisa é ou não é.

 

Justificar é tentar

fazer não ser ser,

e ser não ser.

 

Não termino este poema

porque o papel acabou.

LA 98/03

 

 

 

 

Fim De Festa

 

O momento é de porta de Caverna,

e como tal, não inclui,

exclui —

leva para a subvivência,

essa condição protozoária de vida.

O momento reparte a pobreza —

rebaixa-a à subpobreza.

E concentra a riqueza —

fá-la charme de poucos.

O momento nazistiza o humano —

castra, esteriliza o humano do homem.

O momento apequena, apouca, apaga

aquela chama que Prometeu

ousou passar ao homem.

O momento é de insânia universal

e os gulatras não percebem

estar num fim de festa

e nos últimos dias de um império em chamas.

LA 98/03

 

 

 

 

Titanic

 

O Titanic foi apenas

mais um poema burguês

lançado sobre as águas

da paranóia.

 

O homem adora

tais paranóias —

funde-se,

identifica-se com elas:

no fundo, luz insana —

fruto de autodesafio.

 

Agora, o filme ''Titanic''

traz esse mesmo prato

( com molho ao paladar de hoje )

à sempre morna consciência

adaptada às mesmas-outras paranóias

que embarcam clandestinas

de geração em geração.

LA 98/03

 

 

 

 

Jeito Piloso

 

Teu jeito

tem uns modos lá das cavernas.

Ao mesmo tempo que afaga

( ao pé do fogo

corre atrás com tição.

Sei não, Teresa,

mas se perdes

este teu jeito piloso,

sei não se vou gostar.

Afeto besta,

com uns quês lá das cavernas,

mas danado de bom.

LA/98/03

 

 

 

 

Meninos, Escutem Só!

 

Meninos, eu não vi.

Mas posso imaginar

e lhes contar.

Aquele tal de Bill-Come-Inquieto,

ficou feroz

quando lhe deram um nó

no orgasmo,

e quis ejacular bombas

sobre a cabeça do Iraque.

 

 

Mas já passou.

Sua mulher ( do Tal Lá de Cima )

veio à televisão

( meninos, agora eu vi:

tinha a cara da verdade )

e conseguiu mudar-lhe a alcunha

de Inquieto para Quieto.

 

E tudo se aquietou,

Isto é, fingiu-se quieto.

Logo depois ejaculou

orgasmos-bombas

sobre a cabeça de outros povos

( pobres, é claro ) —

à véspera de passar a faixa

de seu governo.

Meninos,

isto é história da História:

o mundo viu.

LA 98/03

 

 

 

 

Anúncio De Decreto

 

Meninos, abarranquem-se,

que enquanto o vento belisca

os pudores destas árvores,

lhes conto as últimas fresquinhas

que escorrem lá de Palácio

para engrossar nosso piadário.

 

O ministro das abobrinhas

com o ministro das cambuquiras

entraram hoje em cadeia

( claro que  de televisões )

para anunciar o Decreto

que extingue o analfabetismo.

 

Quem desta data em diante

chamar alguém ou disser

analfabeto

será considerado louco,

e banido do gozo

de sua cidadania.

Têm dito.

LA98/03

 

 

 

 

Assunção Necessária

 

Quem não sabe pra onde vai

anda com os pés dos outros.

 

Os pés sociais

nem sempre estão em sincronia

com as passadas que demandam

o norte do ser.

 

Necessário estar a serviço

de si e do outro

enquanto se atravessa a ponte.

 

Necessário assumir

nosso rumo interior

e passarmos sobre as águas

pelas alpondras da nossa fé.

 

Necessário assumir

nosso destino e vontade

e penetrar o arcano

da Palavra em que vivemos

e aprendemos

o caminho de volta.

 

O Espírito nos ensina

a andar com os próprios pés

e a converter em dia

os enganos da noite.

A converter em esperança

a impaciência de alcançar.

LA 98/03

 

 

 

 

Parte Frontal Esquerda

 

Já sabias, Teresa,

que a alegria mora

ao lado esquerdo do cérebro?

E que quanto mais ativa

a parte frontal esquerda,

tanto mais alegria,

tanto mais felicidade?

 

Isto, Teresa, nos disseram,

esta semana, alguns cientistas.

 

Agora que já sabes, minha sardenta:

lambe, beija, morde,

e acaricia a parte

frontal esquerda do meu cérebro.

Em dando certo,

te faço o mesmo —

tomaremos um banho azul

de alegria

com sais de felicidade

e xampus de ventura.

LA 98/03

 

 

 

 

É Preciso Sarar

 

E no entanto

é preciso sarar.

Antes de tudo

é preciso sarar.

 

Sarar

de tudo o que nos impede

de viver como cidadãos

do reino,

sempre existente em nós.

 

Sarar

de tudo o que nos impede

de fazer abrir em flor

o humano em nós.

 

Sarar

de tudo o que nos impede

de saber que, não sendo Deus,

mesmo assim Deus nos é.

 

Sarar

de tudo o que nos impede

de andar por sobre as águas

do nosso medo.

 

Sarar

de tudo o que nos impede

de aprender a senha de luz

que ilumina os nossos pés

na travessia da ponte.

 

Sarar

de tudo o que nos impede

de conversar com aqueles

que estão em tempos diferentes.

 

Sarar

de tudo o que nos impede

de renascer

das nossas próprias fraquezas.

LA 98/03