OUTONO, A VIDA A LIMPO

                            Laerte Antonio

(capítulo 2)

 

 Bilhete

 

Te mando, amada,

estes cachimbos, estas rosas de pano,

estes garfos, do tempo do Império,

duas ceroulas do meu avô

( peças para o museu da família )

para que vás, querida, te enfronhando

com a família cujo Brasão pretendes

doravante defender.

Seguem também uma binga, quatro espartilhos,

um cinto de castidade

( este, pelo tamanho, deve servir-te ),

um relógio de bolso da marca

Roskoff Patent —

para usares no pescoço

quando estiveres fazendo amor ( comigo ).

Vai também uma bela cadeira de defecar,

toda em óleo-cabriúva, trabalhada

por finas mãos da terra de Ronsard —

para dela te servires, amor,

quando estiveres inspirada

a conceber poemas metafísicos.

Mandamos-te outrossim o pito de barro

da nossa ''Bisa'', com cabo de junco inglês —

para espantares pernilongos

numa dessas tuas pescarias

pelas águas de bidê do Sena.

Vai também, minha prenda, uma cadeira

com dois pés transversais mais curtos

que se prestava aos meus tataravós

na deliciosa arte de se amarem.

Nossa ''Bisa'' contava que fora gerada

nessa gangorra que cutucava o soalho

três vezes por semana e que só cessava

quando os galos, indignados,

misturavam os seus cantos com protestos.

Enviamos a aliança da ''Bisa'' — arremessada

na cara do ''Biso'' por 37 vezes:

quando aqui se instalou, com labutas do prefeito,

a mais formidável casa de tolerância ( francesa ) — com cancã

de aperitivo, e de iguarias

aqueles pratos

que o mundo inteiro conhece e se arrepia

só de pensar que existem.

Dizia minha avó que os homens, no geral,

ficavam verdadeiramente enfermos,

doentes de verdade,

a ponto de muitas consortes, compreensivas,

levarem, elas mesmas, seus amados a serem medicados.

Inclusive o então padre Hortênsio... toda a cidade

se comoveu tamanhamente com suas febres e olhos vidrados —

que o levavam de sete em sete dias

a entabular com o indizível...

Voltava sempre agradecido —

disposto como um saci.

Dizem que seus sermões foram-se tornando

cada vez mais amenos e brilhantes

( Kundalini subiu-lhe pela espinha —

segredavam-se os místicos... )

e sua própria pessoa fazia-se mais e mais fraterna,

dona de um sorriso que era um céu

pela ternura-enlevo que emanava.

..............................................................................................................

Desculpa-me, querida, se me alonguei com o cancã —

é que até eu ( bem menino ) tinha problemas sérios

quando ouvia um pouco de sua história:

contada de soslaio,

de modo sincopado e reticente —

a meio-tom, à meia-voz, à meia-boca —

o que, para mim, não deixava nunca

de ser um strip-tease narrativo,

fazendo-me subir em paredes ensaboadas...

 

Por hoje é só, minha comparsa. Amanhã

te mando mais. Assim vamos montando

o nosso Museu de Família.

 

                                  Um beijo na tua pinta.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Antídoto

 

Pra alguma coisa serve

essa impotência,

essa fraqueza.

Esse pensarmos que podemos,

acreditarmos que fazemos

ou que sabemos —

esse pensar que “sim”

lá por terras de “não”.

 

Pra alguma coisa serve

essa fraqueza,

essa não-suficiência —

esse não sermos nunca

o lado de cá

dos nossos sonhos.

 

Talvez nisso esteja o antídoto

contra uma tal arrogância

bem maior da que arrastamos —

velhos diabos,

lembrando-se de muita luz —

mas [trancados] num egoísmo

sem janelas.

LA 99/04

 

 

           

 

 

O Homem E O Canto

 

Cantastes vossas pátrias, vossas gentes,

vossos valores, vossas tradições,

e a vida breve e a glória longa

( era a hora de diversificar e fixar ).

[Cantar é (era) o termo: insuflar de modo

ludoverbal:

agradável-sedutor

e sempre reificado e recriado.]

 

Hoje quem canta é o universal no homem.

E a hora é aquela

de unir e oniabranger

com o plasma de uma consciência

que saiba — em sua carne e essência —

o que é bom para cada um

e o que é bom para todos.

LA99/04

 

 

 

 

 

 

      Penélope           

 

      Vê se paras de tecer

      minha mortalha, Penélope,

      e casa logo, minha nora,

      com um dos cem pretendentes.

      Achas justo, ó de Ulisses,

      que te salves

      tecendo a minha morte?...

      Meu filho haverá de te perdoar:

      venceu as próprias águas —

      suplantou o passado

      e renasceu no futuro.

      O que é que falta, minha nora,

      a um homem como Ulisses?

    Alguém que lhe corresponda

      com o que a vida mais preza:

      amor e gratidão, meu genro.

      LA 99/04

 

 

 

 

 

 Pau De Sebo

 

É, sim, Rosinha, a vida é um pau de sebo,

e subir lá, por vezes não compensa.

Mas se não sobes lá, minha Rosa,

aquela vozinha azucrinante

( que mora em cada um de nós )

vai ficar te confundindo a vida inteira

( cobrando o que não te deves ) —

principalmente

naquelas horas de cansaço,

algum desânimo

ou quando um amigo

( sem intenção nenhuma, é claro )

quiser saber por que não foste...

Portanto, vai, Rosinha,

sobe lá

( o filme é antigo

mas vale a pena locá-lo ):

machuca, esfola um pouco o físico

e o coração e a alma e o espírito.

Assim, quando um dia te lembrares

de teres lá subido —

poderás sorrir em alma,

e, loucamente tranqüila,

dizer: não a vida

não é um pau de sebo.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Antes e depois da denúncia,

do estranhamento,

a arte vive —

conta e reconta

aquilo de que é capaz

o homem.

LA 99/04

 

 

 

 

 

      Pois É, Amor

 

Pergunte ao filho de Davi —

Mais vale um babaca vivo

que um sábio morto.

E por experiência,

diria o homem sensato:

Uma mulher com uma só perna

vale mais que todas as quatro

da cadeira de qualquer rei.

 

Meu reino, amor,

por tuas pernas.

Meu cavalo por teus serviços.

( Se estás com cinto de castidade —

tenho martelo e talhadeira.)

 

Pois é, amor:

pior que um babaca vivo

é um sábio morto.

Mais terrível que ter uma só perna

são todas as catacreses

mentindo coisas que não são.

Mais lamentável que não ter cavalo

( para trocar pelos teus ''honorários'' ) —

só mesmo não ter martelo e talhadeira

para cortar-te o cinto

e liberar-te o centerplay.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

      Prêmio

 

A morte da consorte

entortara-lhe o sorriso,

o ânimo,

a vida.

Até que surgiu Rute —

jeito de bailarina

e profetisa hebréia.

E bela: bela e adorável

como agiota desmemoriado...

ou gato surrando cachorro

que já nos mordeu.

 

E a doce Rute

alevantou-lhe o sorriso

e tudo o mais.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Doações

 

Versátil,

era o doar-se em pessoa.

Doou-se pra rua toda,

pro bairro,

pra cidade,

pra região.

E disse que mais doara

se mais tivera.

Virgínia. Era linda a Virgínia.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

     De Um Beócio

 

A vida é uma tocaia —

dizia um filósofo beócio:

uma tocaia.

Quem não souber vivê-la

( acrescentava ,

mascando o humor,

cuspindo o riso,

bocejando a ironia,

coçando o escroto ) —

vai se dar mal.

E terminava:

Mas não me levem a sério,

pois, se gosto de futebol,

detesto carnaval,

e adoro todas as mulheres

em cujas paredes

nem nunca vou pregar meus pregos,

parafusar meus parafusos.

LA 99/04               

 

 

 

 

 

 

 

     Para Duda

( em todas as idades )

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

que estrelas podem cair sobre você,

e duendes com chapéus cor de infinito

hão de querer levar a pedraria

e delas fazer pingentes para as fadas.

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

que pétalas de flor hermafrodita

podem cair sobre você. Além do mais,

se passar sua mão na casca da jaqueira,

você acorda o sonho verde da floresta...

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

que lhe caem na cabeça penas de sanhaço,

enquanto um vento azul passa assoviando

as canções que aprendeu com aqueles anões

que batem para a chuva a corda do arco-íres.

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

a não ser quando os pássaros de sol

já tiverem comido as suas frutas

e brisas vindas lá de trás dos morros

ensinem para os homens o sonho dos girassóis.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Saudade

daqueles carrapatinhos...

Lembras, Rosinha,

como o sol relinchava

sobre o fofo da grama?

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Disse ao padre que não era

por preconceito não,

mas preferia

que tudo fosse à paisana.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

     Pinta

 

Deixou de amar Ritinha

quando ela perdeu a pinta...

que só ele conhecia

e ela jamais creria

que tão depressa alguém a visse

tão logo assim a perderia.

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Ficávamos conversando

até as estrelas despencarem

dentro da luz.

LA 99/05

 

 

 

 

Os elos da corrente

seguram tanto

quanto aqueles da mente.

( Coisa velha,

mas que se finge esquecer.)

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Seja feliz bem baixinho —

senão a vida pensa

que lhe está dando muito.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Confia no amor, na vida

e na felicidade.

Afinal, confiar —

além de chique, é positivo.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Um trabalho em equipe:

elas seguram o muro,

eles batem a estaca.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Haicai

 

Segura aqui, vai.

É um ovo de sonhossilgo...

Segura, ou... ai, cai!

LA 99/05

 

 

 

 

 

Enquanto

 

Enquanto for bonito

pensar assim-assim,

sentir,

agir dessa ou daquela forma —

a humanidade sofrerá

terríveis, belas torpezas.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Em Nome De...

 

Em nome da liberdade —

quantos crimes, quantas prisões.

Em nome do amor —

quanta desumanidade.

Em nome da família —

quanta servidão.

 

Em nome de qualquer nome —

sempre uma inculcação

inoculando o vírus

de alguma dominação.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Riso-Bumerangue

 

Temos rido do que somos

em muitas personagens.

Em geral as achamos

ridículas, mesquinhas,

dissimuladas e chatas —

medonhamente chatas.

E hipócritas e indiscretas.

Maledicentes, invejosas

e muito mais, bem mais que isso —

além daquelas que chamamos

de tolas-inteligentes.

 

Pelos circos da vida,

pelo convívio, pela arte,

por toda a mídia

e relacionamentos —

temo-nos rido do que somos

em muitas, muitas personagens.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Cognatos De Norma

 

Desesperado, o homem busca

sua identificação —

ainda que por espelhos.

Busca um modelo de ser:

pois o normal dos homens

não se deixa aflorar —

antes, calca-se

em alguém a quem imita.

Ser normal é muito bom,

sobretudo para quem

anormalmente domina.

 

Norma normal normalidade

normalizar normalmente

anormal —

o homem faz desses cognatos

não só um jogo marcado,

mas uma predestinação.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Um Dedo ( Um Ou Dois? )

 

Pobres goivos,

fostes tão rimados com noivos

que a espécie entrou em extinção.

 

Aqueles peitos doridos,

malferidos de tanto amor,

pararam de doer assim que viram

que sua dor

tinha de ser reinventada.

 

O fúnebre, o macabro —

quando não se mataram,

foram fazer análise.

 

Lábios, palavras melífluas —

enjoaram até às tripas.

 

O erótico unido ao religioso

gemia muito alto —

e os vizinhos reclamaram.

 

Os índios se fizeram tão nobres,

que ouvi-los

era sentir-se Bastião

ou Fidúrcio.

 

Os sentimentos piegas

tiveram de seguir regras —

e aprenderam a pensar.

 

As idéias e pensamentos

tiveram de se pentear.

 

As paixões se coraram

de seus arrulhos

roxos de rolas.

 

O amor duelava,

e a não ser em arroubos metafísicos —

o amor morria no amante morto.

 

Os poetas tiveram de tomar banho

e depois de várias ensaboadas —

começaram a cheirar a realismo.

 

Mas o delírio valeu.

Não fosse ele,

o homem seria hoje mais pobre.

O mundo se transcendeu:

enfiou o dedo no fiofó

e assobiou

uma área de Mozart.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Definição

 

O homem é um animal

trepante,

beligerante

e... racional.

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Mascando A Espera

 

Vinhas, não vinhas.

Fiquei mascando o estresse

até perder o açúcar.

 

Vinhas, não vinhas —

não vieste.

Nem por isso

a manhã deixou de vir —

só a do meu coração

ficou nublada

até cerca de oito e meia...

Foi quando te vi virando a esquina —

iluminei-me:

corri encontrar-te —

mas não eras.

Era uma sósia.

Sósia tardia:

eu já estava iluminado

de meu engano.

Nem por isso deixou de cair a noite,

se bem não vi nenhuma estrela —

ainda estava iluminado.

Dali a duas horas

chegaste.

Mas como vinhas anoitecida,

não pôde haver encontro...

Talvez por isso o vento tenha

injuriado tanto as rosas

naquela noite.

LA 99/04

 

 

 

 

 

       Sempre Vou

 

À tua casa sempre vou.

E tomo o teu café

e como os teus bolinhos.

E saboreio as tuas ternuras.

À tua casa sempre vou.

 

E se por vezes me esqueço

de ir à tua casa,

meu coração me leva —

me pega pela mão, e leva.

À tua casa sempre vou,

mas nunca chego.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Loucura

 

Coisa horrível, Senhor, —

para chegar à Tua casa

eu preciso morrer.

É tão louco o Teu Plano, meu Pai,

que mais louco do que ele —

só a minha loucura,

que além de nele crer ainda Te ama

e sabe que somos Um.

Ou Tua casa, Senhor,

é em mim dentro?

Não somos um, meu Pai,

quando meu dedo clica a fé

que tenho em Ti?

Sim, clicar-Te em minha fé

não é acender-me em Ti,

sermos a mesma luz?

LA 99/05

 

 

 

 

 

Canção De Espantar O Frio

 

Corre, corre, minha Zefa,

pra debaixo das cobertas —

que o bicho papão do frio

vem vindo aí de tremer.

Vem vindo de parceria

com o vento: vai judiar.

Vem vindo de enregelar,

vem vindo de endurecer

e fazer dentes bater.

 

Tira os trapos dessa mala

e joga em cima da gente.

Cobre bem a minha orelha

com teu bafo e riso quente.

E capricha, minha Zefa,

devagar e prestimosa,

enquanto o estrado da cama

vai musicando a floresta.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Dignidade Roubada

 

Amores chiques —

Flambados com safra rara,

degustados com charme.

 

Amores caros —

glamurizados de iates,

pérolas, pedras

mordidas por metais nobres

e chiliques fidalgos.

 

Amores raros—

faiscando luxo-luxúria

e a redundante riqueza —

dignidade roubada aos pobres.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

      Ladrão E Amigo

 

Tempo,

meu ladrão e saltimbanco,

te entendo necessário.

Ao que me roubas por fora

me acrescentas por dentro.

Não és mordomo,

mas cúmplice da vida.

 

Fundo me escavas —

a terra e a ganga se me vão,

fica-me a alma do ouro e das pedras

que já nem lembra

a sua argila-corpo.

 

Roubas-me mais e mais.

Roubas-me sempre.

Cumpres  — ladrão e amigo —

tua função de dínamo-consciência.

Roubas-me sempre mais —

até que eu fique

livre de mim,

de ti, de tudo.

Até que eu fique

rico de não ter nada,

e nada tendo, a luz me sorva.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

O Roer Do Rato

 

O mesmo rato

que roeu a roupa do rei,

roeu a do bobo da corte

e a dos fidalgos e mendigos.

E vem roendo a nossa, amada.

 

O mesmo rato roeu

não só a roupa,

mas o que estava sob ela —

mais os segredos e medos

e as doçuras e enganos —

os belíssimos enganos

e tantas coisas tão amadas.

 

De tudo, o que restou? Um pouco.

Só um bem pouco.

Os sonhadores e seus sonhos —

quase todos roídos.

Só um resto de memória —

sendo roída —,

ainda resta

entre os dentes de faminto

do roer desse rato

a roer

( sem ruído )

em meio ao já roído —

roendo, roendo (inclusive) roendo

o seu roer.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esse A Mais

 

Esse a mais que o homem busca,

a um tempo em que se vê a andar-se

sozinho lá em si mesmo —

sempre a pegar o sonho pela sombra

ou pelas plumas...

Esse algo a mais, sal das aspirações,

especiarias dos desejos

no coração humano —

como achá-lo-e-viver

senão no sonho para as “Índias”

do nosso agora-sempre?

Senão pelo ousar

seus frutos e sementes

lá em chãos de nós mesmos?

 

Esse a mais são degraus por nós

que a vida nos faz subir.

Esse a mais sabe

que há mais.

E por sabê-lo —

há mais força em ele ousá-lo.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Pelo Dizer

 

Elabora o teu dizer —

dize-o,

e ficas livre dele.

 

Dizer

é metabolizar a vida,

direcionar sua essência.

 

Pelo dizer

o homem se reinventa —

a si e ao mundo.

 

Pelo dizer

é que o homem se encontra

dentro do tempo.

 

Pelo dizer

é que o ser se transcende

em sua essência.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Todas as Línguas

 

O coração não fala

a língua do exílio —

já que não encontra respostas

nem no mundo, nem em si mesmo.

 

Para a razão

o mundo é mais compreensível:

2 + 2 = 4 ( ou 6... );

a tal dança, tal compasso.

 

Entre o exílio e a falsa casa,

a vida é um ''sim''

que se veste de ''não''.

 

Coração e razão

quando unidos —

falam todas as línguas.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Autoconselho

 

Diga como quem se coça,

como quem urina

ou defeca.

Diga como quem não sabe.

 

Mas não diga

como quem se coça com vergonha,

como quem urina no poste,

defeca no sofá

ou como quem pensa que sabe

dizer.

 

Diga reaprendendo

com o próprio dizer

que a dicção só se aprende

com dizer e redizer.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

OTAN, 99

 

Quero um verso tão frio,

que quem o leia sinta o gelo

entrando-lhe pelos pés.

 

Quero um verso bem chupado,

tão esquálido, esquelético —

que mostre a morte na carne.

 

Quero um verso tão ausente,

tão omisso e indiferente

quanto o humano do ser.

 

Um verso tão estrondoso

que lembre a OTAN bombardeando

os pobres dos povos pobres.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Estátuas De Sal

 

Disse que havia nascido ali,

e ali haveria de morrer.

Acertou na profecia

mas não creio que tivesse ganho

alguma coisa com isso.

 

Seus olhos viveram enterrados

no mundozinho paterno.

Por paisagem, a alma.

Por sonhos —

o chulear de dias e noites.

E o mascar de esperança

com cada vez menos açúcar.

 

A vida tem cada uma,

que para nos conformarmos —

só olhando para trás...

se bem corramos o risco

de nos tornarmos

em estátuas de sal.

LA 99/05       

 

 

 

 

 

 

     Só Um Jogo

 

A peteca foi feita

para cair.

Mantê-la no ar é só um jogo —

não é a vida.

Quando cai a pete-

ca

a gente a pega

e joga-a para outro.

E ri, e vê que o jogo

ser só um jogo —

até que é bom.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

     Círculo

 

Por vezes não gostamos

do que somos.

Mas, no fundo, sabemos:

somos aquele quem-o-quê

que nos profetizamos

sempre em continuidade

com o já-profetizado.

 

Com a argila do mental

moldamos e remoldamos

o nosso ser:

criamos universos

que fingimos

não termos de gerir.

Plasmamos risos-lágrimas

que temos de rir-chorar.

 

Nosso inconsciente é ciente

do nosso ser total —

pra quem o tempo apenas serve

como mordomo que o ajuda

a organizar-se em dramas-entes

( de maneira que ser

é um constante sair-se

pelas portas dos fundos

e retornar-se outro

pelo portal de ser-se.)

 

Quase sempre não gostamos

do que somos,

nem queremos assumir

que apenas somos

aquele-aquilo que nos recriamos

com os germes-sentenças

do já-profetizado.

LA 99/05

 

 

 

 

              

 

    Ao Pé Do Ouvido

 

Minha vizinha Eletrieth,

pequena, graciosa e loira,

me dizia bem aos soprinhos,

junto ao ouvido, que o marido,

um sessentão cor de cinza

( eu era ainda bem menino ),

lhe tirava de entre as pernas

fios da mais pura lã

com que fabricava as malhas

que vendia à vizinhança.

 

Pedi à minha tia,

e ela me comprou uma das blusas —

cor das manhãs de setembro...

Eu a vestia com ardumes

e calafrios pelo corpo,

e quando a sós, pelos cantos,

acariciava-a com o rosto —

cheirava e advinhava coisas...

 

Também percebi que as meninas

( que compravam das mesmas malhas )

tinham místicos chiliques

e se abraçavam com os próprios braços...

 

Tentava explicar a elas

do que eram feitas essas blusas...

mas, entre rubras e nervosas

( suas blusas eram cinza ),

me diziam com voz firme

que não queriam ouvir

coisas que só adultos sabem...

 

Precisei crescer um pouco

pra entender a mercadoidice

daquele casalzinho sueco

que agasalhou anos e anos

os meninos e as meninas

( em segredos risonhos... ),

não só do nosso bairro

como de toda a cidadela

e de jovens forasteiros —

todos querendo mergulhar

nas alfazemas e anis

daquela lã especial —

para fazer amor em metonímia.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

     Recesso

 

O amor está de recesso

e hermafroditamente menstruado.

Senhoras e senhores,

dai-lhe um tempo.

 

( O coração-razão do mundo

está menstruado

e de ressaca.)

 

Esperai amor parar

de sangrar

e de trançar as pernas,

depois, — fartai-vos!

 

Fazei o amor e a guerra

em toda a terra —

mas só depois,

agora amor não pode:

amor está de recesso,

ou melhor, de quarentena.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

       Pobreza

 

Pobre país —

se precisar da cera

de algum nariz.

 

Pobre mundo em barafunda —

se precisar do assobio

de uma só bunda.

 

Pobre do humano —

a recontar-se histórias

de auto-engano.

 

Pobre

de quem é rico

ou pobre.

O amor

está com gosto salobre

e muito aguado.

LA 99/05

 

 

 

 

 

           

    À Moda Da Casa

 

Matou-a de um modo caseiro —

com três marteladas.

O enterro? Bucólico —

debaixo da mangueira.

 

No outro dia foi lá na cova

disfarçar com capim seco...

 — Vixemaria!

Cadê a defunta?

Na cova num tá não...

Enquanto perguntava

levou uma pazada, e outra...

mais oito ou dez...

e caiu enterrado

na cova que fizera.

 

Dª. Jandira,

com três galos na cabeça,

lavou o rosto, as mãos

( cheios de terra )

e foi fazer o almoço.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

     Contra

 

Sou contra

porque a favor

existe muita gente —

todos aqueles

que não se pronunciaram.

 

Ser contra é uma maneira

de ver o que sobe e desce,

com os pés nas duas margens.

 

( Sou contra

porque a favor

não se deve dever favores. )

 

Sou contra porque a vida

sempre sobe a correnteza

e espermatiza as águas

de um sonho que liberta.

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Vocação Grimpante

 

Menino, foi alpinista

das boçorocas.

Moço, unhou os seus alpes

de um sonhar arrivista

( melhor a guerra que a conquista ).

Hoje? Hoje é feminista —

adora escalar mulheres

sem mesuras nem talheres.

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Breve

 

Seja breve,

como a neve.

Como o vento

e o momento.

Não se deixe acumular

para não desagradar.

 

Assim também faz a rosa:

vive gloriosa

pelas sedas das horas

entre duas auroras.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Aquele Piano

 

Aquele piano

que tocava ''Sobre as Ondas''

lá na esquina de eu menino...

Aquele piano se calou.

Passou o som e as ondas.

Passou a infância e a mocidade.

Só não passou haver um piano

naqueles dias

por onde transitava a minha infância.

 

Piano nenhum é igual

àquele piano.

Piano nenhum ousaria

tocar assim tão bonito

como aquele piano —

que me tocava ‘’Sobre as Ondas’’...

entre as manhãs ainda escuras

e a minha infância.

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Sempre-Vivas

 

Bom é saber que o amor

é um sonho sempre maior

que a nossa maior angústia.

 

Bom saber que não finda

nenhuma estrada em seu fim,

mas que há sempre um ainda.

 

Te mando sempre-vivas

para que depois de mortas

te lembrem que tudo é vida.

LA 99/05

 

      Pobreza

 

Pobre mundo, que sempre luta

por sepultar o diferente.

Pobre mundo, que disputa

o igual com o desigual, igualmente.

 

Pobre mundo, tão rico

de inteligência dialética —

com os pés sempre fincados

um no ''não'', outro no ''sim''.

 

Pobre mundo, que não entra

nem permite que se entre.

Pobre mundo, a gestar-se

no coração da gente.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

      Charme Verbal

 

Uma elegância verbal

de pés profissionais sobre patins,

ou sons afiados de esgrima

reverberando ao sol

de manhã de olhos azuis

com o ar sangrando o alvo perfume

de flores que se adivinham.

Os gitanos correndo nas veias de um sonho

com gosto de chão e liberdade.

Um jeito leve, lúcido, esguio de narrar

o orgulho andaluz pisando o branco cheiroso

das flores das laranjeiras.

 

Charme verbal. Elegância.

Vôos do Espírito

empalhados de brisa.

Silêncio! Lorca escreve.

LA 99/05

 

 

 

 

 

     Tença

 

A cabeça que em nós pensa,

por vezes não é a nossa.

Pensar ou ser pensado —

isto faz a diferença.

A cabeça que em nós pensa

não deveria andar pensa.

Se se machuca tal cabeça,

quem a pensa

a acrescentar-lhe uma pensa?

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

      Bem Gago

 

Não escrevas, que não leio

a não ser depois que apago.

Se me falas com o seio,

te respondo com afago.

Se queres uva, dou-te um bago —

que, se muito, corto ao meio.

Se a luz machuca, apago.

Se não for muito, gostaria

de um chilique bem gago —

claro que não aqui

à beira-lago

com esse vento rouco e vago,

      clitoriando a rosa

com tremeliques de mago...

Um chilique que não tem pressa

em prensar as três uvas...

e totalmente sem luvas.

Sim: um chilique

num gesto pasmo-chique...

e longamente bem gago.

LA 99/05

 

 

 

Os normais se acham normais,

ou só os anormais

é que se julgam normais?

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Soma Dialética

 

Se somarmos lucros e perdas

veremos que não perdemos muito —

uma vez que na vida

ganhar-perder caminham juntos.

Assim o dia ganha a luz —

seu corpo e alma,

mas se não fosse a noite,

nem um nem outro

teria a sua identidade.

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Identificação

 

Somos pessoas das boas

( eu, você e quem nos ouve ).

Nobres apesar de pobres.

Pessoas chiques e craques,

todas com tiques e taques,

tremeliques e sotaques,

chiliques e piripaques.

Mas boas, boas pessoas —

pobres sim, mas feitas do cobre

em que nossa mãe fazia o doce

e nós, com uma colher

e uma alegria saltitante,

raspávamos o tacho

sempre felizes da vida.

LA 99/05

 

 

     

      Poema Esquisito

 

As flores que por vezes brotam

por sobre a mesa, enquanto escrevo,

mando-as todas a você.

Se não as vê —

é que seu corpo mental

ainda não tem mãos

de receber.

Por outra, você pode

sentir-lhes o perfume —

se fechar ( sorrindo ) os olhos

e disser ao seu coração

que ele é capaz de amar

com as nuanças da alma

tornadas em paixão.

LA 99/05

 

              

 

 

 

 

     Companheiros

 

As delícias da ilusão,

a droga de ler-escrever,

o charme da vaidade,

a loucura de bolso,

os belos-fiéis enganos,

aquele diabo, velho amigo...

a certeza da fé,

o humor, o riso, a ironia,

a força da esperança,

a comunhão com Aquele,

as alfazemas do amor,

a piada, a paródia, o chiste,

o já estar-lá da utopia...

as pitadas de neurose,

o material do sonho

que corporifica os desejos —

se alguém quiser exorcizar-te

tais companheiros tão humanos,

dá uns dois passos para trás

e pergunta:

O que tem para me dar em troca?

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

      Encadeadamente

 

Depois da tempestade

vem a enxurrada.

Mas isso não é nada

para quem não mora lá.

      >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

      Depois da guerra vem a fome,

      mas isso não é nada

      para quem já não come.

      >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Quando a polícia chega,

isso também não é nada —

se você é o chefe da tropa.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

      O prédio desmoronou,

      mas isso foi pura graça —

para os que não tinham chegado.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

O padre fez um sermão terrível —

porém não inquietou a quem sabia

que ele apenas queria o dízimo.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

 Explodia muitas vilas o avião,

mas isso não foi nada —

porque ele era da OTAN.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

O presidente mentiu, burlou,

mas não teve importância —

ninguém nem desconfiou.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Depois do dilúvio,

segurem na orelha do monte —

que Noé não demora.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Se ela disse que vinha

e acabou por não vir —

agradeça: o infeliz

podia ser você.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Se pediu uma graça

e não foi concedida —

agradeça poder agradecer.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Se o cônjuge se foi com outro,

é agradecer a gentileza

de ter deixado uma vaga.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

O padre cochilou

enquanto confessavas?

Pecados de rotina.

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    Mãe, quero ser garota de programa.

    O nome é até bonito —

      mas acho que papai não vai gostar.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Pra separar esses dois —

só mesmo um pé de cabra.

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Chifres são tão normais,

que não tê-los será problema:

falta de relacionamentos.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Casamento era tão sério,

que os cônjuges usavam tarjas —

ouvindo o réquiem de um sonho...

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Sua coisa era tão grande,

que sentia preguiça

em colocá-la de pé.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Só ele tinha jeito

para tirar os carrapatos

da vizinha fazendeira.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Ela fazia um cuscus,

que o jovem primo adorava

comer na cama.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Quá-Quá-Quá... ai-ai-ai-ai —

os vizinhos escutavam

toda a santa noite.

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

      O mesmo sol que nos beija o rosto

      faz nossa sombra rastejar.

      >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

      No que puseram

      o presidente ''na parede''

      ( uma porta falsa se abre e o engole ) —

      aí falaram em arrebatamento...

      teletransporte feito pela NASA...

      rapto por anjos ou Ets —

      até verificarem que ele estava

      em seu banheiro hiper-secreto

      defecando lado a lado

      com a secretária.

       LA 99/05

      

 

 

 

 

 

Um, Dois E...

 

Não chores não. Senta aqui,

vamos cantar ( de raiva )

uma canção qualquer.

Nem que seja pelo nariz, cantemos.

 

Não chores não, que a vida

não é do lado dos que choram —

não é do lado dos fracos

ou delicados.

A vida é um marujo

sempre de porre com os próprios sonhos —

fingindo sempres

e simulando apegos.

No fundo, esse marujo gosta mesmo

é do seu navegar

e parecer diverso em cada porto.

 

Vamos lá: um, dois e... cantemos juntos

uma canção qualquer.

Qualquer canção é boa

pra descentralizar o coração

e dizer a quem chora ou ri

que a beleza de tudo

é tudo estar passando —

enquanto vamos aprendendo

a ser eternos.

LA 99/05

Falta

 

Esse frio, esse nada,

esse não ser, não ter —

procura sem achar.

 

Essa quase loucura:

buscar uma ventura —

só feita de sonhar.

 

Esse buscar no outro

o que o outro não tem —

esse duplo faltar.

 

Essa guerra sem paz,

essa paz que é a guerra

em seu chover-secar.

 

Esse sentir que ''sim''

já sabendo que ''não'' —

e a mão a se queimar.

 

Esse querer que o Diabo

seja sincero a Deus —

mentiras a flambar.

 

Essa falta, essa ausência

que queremos preencher

com o tal verbo amar.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Moeda Da Sorte

 

Se você sabe, me diga:

por que essa coisa fere tanto

se tão pouco tem pra dar?

 

Que coisa é essa coisa

que constrói e destrói

com a mesma facilidade

de mão que não se vê?

 

Desfiladeiro, penhasco,

boneco feito de neve,

flor de maio a rolar

entre as pedras do rio —

é essa coisa que se tem?

Essa, a coisa que se busca?

 

Bengala com estilete,

flor com haste de punhal,

risos flambados de mentiras —

é isso o que se tem a dar?

O que se tem recebido?

 

A morte, a destruição,

a traição computada

com extremo desvelo —

isso é que mora na coisa

que move o ser humano?

 

Se você sabe, me diga:

o homem só tem essa coisa

e o outro lado dela

( que é a guerra ) —

uma e outra face da moeda

da sua sorte?

LA 99/05

 

 

 

 

 

      Pedaço De Sonho

 

      Desci ao Hades em mim

      e conversei com meu pai

      a noite inteira do meu sono.

      Calmo, tranqüilo estava

      e bem mais jovem do que eu —

      já que a morte nos livra

     da Máquina do Tempo

     e nos devolve o gesto

     orvalhado de ser.

     Calmo, tranqüilo estava

     e já nem lhe roçava

     a angústia de saber

     que o tempo é vida a morrer.

     Olhei-o dentro dos olhos

     e com o olhar o abracei,

     e logo lhe arremessei

     a terrível pergunta:

— Meu pai, o que lhe falta

     é o mesmo que lhe faltava

     e que nos falta a nós?

— Sim, meu caro, continua

     aquela ausência de ser —

     aquela coisa que falta,

     aquele faltar-se em-si.

— E como ser-se, bastar-se

     e eliminar o vazio?    

— Ninguém se basta ou se é,

     nem se pode preencher.

      O que nos preencheria

      não vem do nosso esforço —

      não podemos construir

      nem mão humana pode.

      O que nos falta só existe

      como um complemento da Graça

      à espera, não de nossas mãos, —

      mas de atitudes-sintonia

      num viver cosmo-ligado

      com a Sagrada-Fonte —

      o Verbo Santo de Deus

      que aciona todas as coisas

      e orbita a vida no ser.

      ........................................................................

    Meu pai, de onde é que o senhor...

    Não sou seu pai — atalhou-me —,

      sou você mesmo procurando-se —

      procurando-se em mim-você.

 

      Em seguida, acordei.

      Sentei na cama e anotei

      tudo quanto contei —

      pensando que pudesse,

     de algum modo, ser útil

      para mim e você.

      LA 99/05

 

 

 

 

 

      No Tempo Das Gerais

 

     Vendi o ouro, Eulália.

     O ouro que meus escravos

     garimparam lá nas gerais.

     Foi ouro de fazer carro de boi chiar.

 

     Compro-te mais escravos,

     reformo-te a casa-grande e a senzala,

     deixo-te uma soma no banco —

     e me vou para a Corte.

     Vou estudar — fazer Direito,

     meu sonho de menino.

     E afagar e/ou afogar

     as vergonhas das cortesãs —

     outro sonho de menino-moço.

     Dedicação exclusiva:

     Porres, Mulheres e Direito.

— Deixo-te uma soma no banco.

     Uma, ou duas, ou três, ou quatro...

     Tu vais gerir nossa fazenda, Eulália,

     com carta-branca e mordomias.

     Topas?

— Topo e tapo a boca —

     cumplicidade total.

 

    Só mais um detalhezinho...

    Já sei... já o mandei engraxar,

      lubrificar, trocar os fechos,

      amaciar as chaves...

    Então concordas em usar o cinto

      de castidade, herança avoenga de Castela?

    Claro, amor, fidelidade não me custa.

    Padre Libório, além de padre, meu amigo,

      ficará com as chaves.

    Claro, senhor meu, ele tem feito isso

      com todas as que usam o tal cinto,

      fazendo dessa peça a coisa mais natural

      e suportável desse mundo.

      Vai, meu senhor, e estaremos bem servidas.

      Aliás, não é a primeira vez

      que esse filho de Deus nos serve.

 

      PS.

      De botões para botões,

      curioso é saber que tais mulheres,

      trancadas a chave em suas coisas,

      mostram-se mais que felizes o tempo todo —

      sob a bênção e jurisdição

      do prestimoso cura.

       ......................................................................................

      Padre Libório cumpria à risca sua tarefa,

      naquela determinação camoniana

      de ir além do que pode a força humana.

      LA 99/05

 

 

 

 

 

            

     Indo E Vindo

 

— Tchau, Nina.

     Vou lá para as Gerais

     ver se cavo algum ouro —

     pra tirar o pé da jaca, amor.

— Tchau, amorzão.

     ( E se passaram longos dez minutos...)

— Nina! Quem é esse negrão

     tirando pó dos móveis?

— Um homem negro, uai, —

     ouro negro, amorzão!

     LA 99/05

 

 

 

 

 

 

     

 Pneuma-Morada

 

Sob ruínas construo

meu endereço no ar —

no ar mais perene que a pedra,

porque vive a recriar-se.

O verbo poético me salva —

livra-me da destruição

por me dar a conhecer-me

e por filtrar-se por mim

em todo o seu humano ser.

A poesia me é um modo

de eu ser-me além de mim —

além de não-obstante eu.

 

Pelo verbo sobrevivo-me —

vitória sobre o meu fracasso.

Minha casa de vento

está construída.

Meu pneuma-morada

está fundado.

O que restar de mim

restará encarnado

no verbo que sustenta a rosa

e a eternidade.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

 Saiba-Se Ou Não

 

Viver é deixar as mãos

iluminarem-se

na garimpagem

daquilo que nos falta.

 

Viver

( saiba-se ou não )

é moer as trevas

em grânulos de luz

e i-los metabolizando

em ser-essências

de novas nóias

encarnação do brilho

no sonho feito verdade

na transciência lúcida

da consciência a transformar-se

em chispas que inauguram

penúltimas formas-sopros.

 

O ser está por aqui

até que a morte lhe abra

a claridade de si mesmo.    LA 99/05

Sobrevivência

 

O ser se sobrevive

em conhecer-se e transcender-se

e em transformar sua derrota

em vitória verbal —

em dar espírito

à letra morta.

Vestir de primavera

o outono-inverno.

Assim o ser se sobrevive:

de ser em ser-se.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Viva O Seu Dia

 

Seja você quem for —

dê festas, muitas festas

lá no seu coração.

Viva o seu dia.

Deixe entrar o piano,

as estrelas, a lua, o vinho.

Chame os convivas

e curta o burburinho

da alegria.

O tilintar das taças

é dom gratuito —

basta você saber

que o melhor desta vida

é pura graça.

 

Dê festas, faça festas

lá no seu coração.

Aliás, o dia

em que você se for —

saiba que muita gente

( muita, mas muita gente )

estarão naturalmente

em festa.

Festeje o agora

dentro do hoje

que é o seu dia.

LA/99/05

 

 

 

 

 

 

Cremoso Engano

 

Se espera tranqüilidade

para ser feliz —

saiba que nunca o será.

Tranqüilidade

para fazer, criar ou ser feliz —

cremoso engano.

Tais coisas só se dão

quando se atrevem,

quando ousam se dar.

 

Se a vida é graça,

nada nela se faz de graça —

mas se constrói pelo ousar.

É debaixo de balas

que o soldado sabe o que fazer

( ou não sabe ).

 

Viver é estar num mundo em guerras.

Não se constrói a paz

esperando-se pela paz —

mas trabalhando

em sua construção

entre rugidos e ameaças.

 

Quanto mais intranqüilo,

mais força tem o vento —

que vai para onde quer...

 

Tranqüilidade

é algo que se tem lá em-si

( ou não se tem ).

 

Fazer, criar ou ser feliz

não são um desafio do homem —

mas da vida para todos os homens.

LA 99/05

Tempo E Arte

 

O tempo aprisionado,

no ato sobrevivente ao corpo —

é arte.

Pela linguagem da arte

o homem se liberta

da total destruição:

conhecendo-se a si mesmo,

transfere-se para o outro —

e este vai lhe adiando a morte,

enquanto aprende com ele

que toda vida anseia

por imortalizar-se.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Respostas

 

Dentro da própria destruição

edifico a minha casa —

feita do plasma de me conhecer

e organizar-me em tempo-ser.

 

O abismo que se me abre aos pés —

encho-o com o azul do meu sonho.

À morte que me chama —

respondo-lhe pela arte.

À perda que meus olhos vêem —

acrescento-lhe o ganho

carbonodiamantizado.

Ao verme que me espera —

respondo-lhe com a consciência

que sobrevive ao meu corpo.

Ao desenfoque da carne,

orbitarei na luz —

elo entre mim e Aba-Pai.

LA 99/05

 

 

 

 

Corrimão

 

O poeta se debruça

sobre si e os seus que marcham

por corredores de tempo —

que os gera e come, gera e come...

Pela palavra escrita,

corporifica o desejo

de ser uma voz que clama —

uma réstia de luz

que sirva de corrimão nas trevas.

Pelo labirinto do tempo,

essencializa a sua voz

entre o Ser e seu Destino.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Construção Entre Ruínas

 

Lá longe nas igrejas,

em barracões e sob árvores —

os marginais se reúnem

e lêem textos, cantam hinos —

comungando em nome Daquele

que se lhes fez de passarela

entre o mundo de César

e a Casa de Seu Pai.

 

E entre rugidos e metralhas

e chacinas e fomes

e o zumbir de risadas —

os marginais vão construindo

suas moradas

lá no seu coração —

que já se encontra

em Casa.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Não Sopre

 

Cuidado.

Fale, mas não sopre.

Só temos esta vela

e nem mais um palito —

e há muito, muito escuro.

 

Fale, grite, esbraveje, berre,

tire as calças e pise em cima,

mas por favor —

nem pense em esmurrar a mesa

e sobretudo —

não sopre.

 

É pouca a luz que temos,

muito pouca.

Pouca, tênue como nossa vida.

Sim, muito pouca. Essa luz

é pobre e pouca.

Por isso fale, xingue, chore,

uive, ulule, ruja —

mas lembre sempre:

não sopre.

Não sopre sobre o pó que somos,

que a nossa vela se apaga

e vira tudo noite,

e fica tudo muito escuro em nós.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Porta Aberta

 

Não é fácil usar uma roupa

sobre outra.

Como não é fácil aprender —

incorporar em nós —

em corpo, em alma e espírito

um novo aprendizado,

uma nova construção mudança.

 

Agora,

se enfraquecermos

nosso pensar que sabemos —

então a história é outra.

A atitude de não saber

é porta aberta ao aprender —

e ao mudar:

eliminando a resistência,

deixando o novo construir-se.

LA 99/05

 

 

 

 

      

Jornada Do Anti-Herói

 

Se o melhor do momento

é te fazeres covarde —

não hesites.

Entre te acovardares e ousar,

vai só uma questão

de notas musicais —

só precisas saber

quando usar uma ou outra.

 

Covardia ou coragem

( Fazer ou não fazer )

são filhos inteligentes

da nossa experiência —

ora chamamos por um,

ora por outro.

Usemo-las como ferramentas —

sem apegos nem preferências.

Ferramentas descartáveis —

o que importa é a construção.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

Canização Barroca                                                                                                     

 

Diabo de vida sufocada

pelas mãos dos que pegaram

o mundo para si.

Quadro obsceno pintado com o sangue

das esperanças do povo

e das vísceras dos ( feitos ) pobres.

 

Diabo de afogamento em sangue —

sonhos tornados em bolinhos de boteco.

Sede e fome sempre frustradas —

justiça eternamente adiada.

 

Diabo de tempos

criando estalactites

de nódoa-nojo-náusea.

Perversidade oficiada

à Deusa Ganância —

canização barroca do homem.

Chãos de palácios e mansões lavados

com lágrimas humanas.

Paranóias de cimento-armado

freqüentadas ( última moda ) em derredor

por crianças e velhos abandonados

e por milhões de coisas-andando —

pedindo emprego e esmola.

 

Diabo de dias estrangulados

aos sons de Bolsas e Mercados —

ao ar-condicionado

de coniventes ''ismos'' e ''ias'' —

férreas justificativas,

flácidas democracias

sob as bênçãos de estranhas teologias.

 

Diabo de crucificações

em volta e fora das cidades —

milhares de crucificados

todos os dias a toda hora e instante.

Já dentro das cidades, — matam

de inanição, desprezo, asfixia...

e diferente indiferença.

 

Diabo de liberdade

que em seu próprio nome —

amarra, amordaça e mata.

 

Diabos de bárbaros fazendo leis

e tornando a justiça

instrumento de seu contrário —

marionete de sua gula,

melhor: de sua gulatria.

 

Diabo de sinfonia

em cínicos améns —

o homem feito cachorro do homem.

LA 99/05

 

 

 

 

 

O Homem E Sua Mente

 

O homem diz, a sua mente escuta.

E torna a dizer, sempre-sempre.

E ela escuta, escuta sempre,

e ele então já não diz:

fabula. Ele fabula e fabula.

E vai acreditando... e eis acredita

e crê nas suas fabulações.

E suas fabulações

ecoando em sua mente —

são agora verdades

que ele vai defender

( acreditando nelas ).

A princípio, vendo-se ( de soslaio )

defendê-las...depois nem mais se vendo...

E o que fala se torna a sua vida.

Até quando ele julgue ( de esguelha )

que deva sustentá-las

para o seu lucro...

 

Mas a mente, tanto quanto ele,

não é confiável:

a mente mente, engana e trai...

Quando ele pensa

que os leõezinhos de suas criações

são ainda filhotes, cachorrinhos...

eles já estão adultos,

e sem nenhuma hesitação nem escrúpulo —

começam a devorá-lo.

LA 99/05

 

 

 

Oxigênio Da Jornada                                               

 

Daqui a bem pouco,

teremos vergonha

de termos pensado

o que hoje pensamos.

 

Como ''bens duráveis'' do homem

continuarão intactos —

a sua fé,

sua esperança,

o seu amor a si e ao outro.

( Quem não tiver esses ''bens'',

seja o rei ou seu servente —

se surpreenderá despido.)

 

As mãos

que não tiverem empreendido

um trabalho reflexivo-recíproco

( direta e indiretamente,

clara e reiteradamente

no seu fazer solidário ) —

hão de estar ultrapassadas:

cobertas de cinismo

e à margem de si mesmas.

 

A solidariedade

será o oxigênio da jornada —

ou a jornada não será.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Oração

 

Flua a Fonte

por nosso coração —

brilho em que brincam brisas

em murmúrios de luz.

 

Orar se torne livre, leve —

simples como respirar;

alegre como deslizar

( na infância? ) —

por uma calha em pensamento,

fácil como sentir o vento.

 

Uma leveza,

um voar

feitos de amor e um  bem geral: azul.

Um revoar

de solidariedade

a semear no ar

a paz,

 a vida —

todos os bens

e o bem de todos.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Vó Anita

 

A rua, o largo, o areão

( hoje praça do Fórum ),

a casa, a mesa... o quintal —

as jabuticabeiras: adoráveis

cúmplices de aventuras-cavalgadas...

Dadivosas senhoras vestidas de preto

e guardiães dos óbvios segredos.

Tios e primos e vizinhos e crianças,

muitas crianças.

Pedaços, cacos de louça

bordados, coloridos...

O tanque, o quaradouro,

o fogão de lenha.

Os arabescos das louças...

os armários... o pote.

A sopa de caldo de feijão.

 

Uma sombra do sorriso

do meu avô.

Um resto de calor

do colo de minha mãe.

O único deslizar

dos dedos de meu pai

pela minha cabeça.

Um cachorro preto,

gatos, canteiros de flores.

Muita conversa ( confusa ).

Brigas. Ternuras. Medos.

Notícias da Guerra.

O pessegueiro sorrindo

cor-de-rosa em todos os seus galhos.

As galinhas.

O quintal comprido.

As jabuticabeiras

exibindo-se de branco

para as abelhas...

O perfume inesquecível

dessas senhoras de branco.

Meus pés no chão.

Muita gente. Muita.

Um frio pelo corpo,

concentrado na barriga —

querendo colo.

O brilho quente

da voz, dos braços,

do amor de minha vó Anita —

unindo os cacos do que foi.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

I, VII

 

Com os pés assim andando em pensamento,

transitando-me, múltiplo, por dentro

e fora do meu ser, é que me sei

caminho-caminhante

de um sonho cuja trama, agulha e linha

são minha mão a me reconstruir

roteiros-eus em alma-sesmaria

de Deus em mim tecendo sensações

de já nos termos visto no futuro

de-nos-veremos-do-pretérito

em cima deste hoje —

palma da mão do meu Senhor.

 

O primo-irmão do Anjo que me guia

me ditou estes sete versículos

do capítulo primeiro

de um livro que se chamaria

"Caminho-Caminhante''.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

NOSTOS

 

Da roda-tempo escorrego

para o centro do seu eixo,

e me desvisto de aparências —

fico-me livre

de antes e depois de mim,

em varandas do Eterno,

servido (eu ) pelos anjos do Senhor.

É ali que sei

que preciso não-saber

para voltar definitivamente

para Casa.

 

É ali que sei

que embarquei num processo de auto-engano —

feito com fios do mental,

que me tece a ilusão

de ter saído de Casa

para buscar o que jamais perdi.

 

Dali é que vejo

que preciso voltar

pelo caminho da luz —

verbalizado em Cristo-Jesus.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Passaporte

 

A ambição o levou

para um lugar muito escuro.

Viu então que a força

não lhe seria a resposta —

ela se quebra dentro do homem.

Viu que o poder era um equívoco

se ele não se chamasse amor.

Quem ama paga a sua conta

à vida, aos homens, às coisas

e também a si mesmo —

liberação

a fazer o que deseja.

 

Só a quem faria para o outro

o que faria para si —

confere a vida passaporte

para Fazer-Criar

em seus degraus de luz.

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Sinto, Logo Existo

 

Todo o universo me é

com Deus estar-me sendo

antes mesmo de tudo ser.

Entre Tu e Mim

brilha a ilusão

de precisarmos.

Sinto ser-me no que me falto

nalgum tempo-lugar em mim.

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Por Veredas De Ser

 

Toda vez que me intemporizo

para colher o fruto

antes de refletir a árvore —

preciso reafirmar-me

para não me perder de mim.

Preciso ver se as coisas

ainda estão

toda vez que elas me são

dentro de um ser-essência —

antes de degenerar

em tempo-espaço.

Assim eu sei que para ser-me

é só deixar-me ser.

Sim, claro!, deixar a luz ( em mim )

brilhar.

LA 99/05

 

 

 

 

         

Tiques E Taques

 

Faz tempo, muito tempo —

quando as horas

eram sonoras

e liriais,

e batiam

e luziam

nos metais —

o relógio

de seu Poggio —

tique-taque,

taque-tique —

empurrava

os segundos

para fora

deste mundo.

 

Seu Poggio ria

do relógio —

tique-taque,

taque-tique,

... tique...

Peças tinindo

em timbre esticadinho:

umas dançando

e saltitando,

outras rodando —

a tilintar, a cantar

com a alma temperada

de fractais...

( Ria e dizia

que não podia

viver sem a companhia

e os sons iriais

do relógio que falava

com a boca dos metais.)

 

E agradecia:

dizia a Deus

que não vivia

sem seu amigo,

que se tornara

mais gente que relógio —

um membro da família.

 

Seu Poggio ria

( como ele ria! )

de alegria

com seu relógio...

Seu companheiro

de horas e horas e horas...

E o relógio, orgulhoso,

lhe dizia:

Vai, Poggio, vai almoçar!

Poggio, toma o remédio!

Poggio, é hora do café!

Não se esqueça da missa!

Não vai telefonar pro Júnior?

E o neto, não vai vê-lo?

Não vai buscar sua mulher?

Poggio, e o banco?

O médico é para hoje às 10.

Olha a reunião da  câmara!

O padeiro!

O interurbano!

 

.....................................................até,

até que um dia —

tique... ta... que... que...

ta... ta... ti...

Ah, parou...

parou!

Não mais tiquetaqueou

o relógio

de seu Poggio —

que comprou outro

( na mesma tarde ),

sim: outro que nem tinha

tique-taque...

E seu Poggio

nunca mais se lembrou

do tique-taque

daquele relógio velho.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Memória Recriativa

 

Estendendo a mão no tempo,

minha memória colhe rosas,

e ao desfolhá-las no seu colo —

imagina-se feliz:

muda ( num vice-versa ) alguma coisa

do que foi no que não-foi

e se regala no pretérito presente

do seu reinventar

e re-sentir a vida.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Espelho Do Sentir

 

Toda vez que você sente

a Fonte a lhe falar

em suas sensações —

você grava esse lhe falarem

no centro das suas células

e essencializa — nessa Voz —

o seu corpo-consciência.

Nesse senti-La mantrizando

seu templo-ser

a criatura

se sente por espelho

nos olhos do Criador.

LA 99/05

 

 

 

Outono: A Vida A Limpo

 

As folhas e as promessas

do outono —

do outono dentro

do outono.

As folhas. O vento.

E as vozes, as muitas vozes

no silêncio da vida —

circulando na seiva

( como um orgasmo lento )

entre as fibrilas

e os sais do sonho

de ser de novo primavera.

 

O despojado silêncio

há de explodir em flores

e cantos.

Quanto a mim, já não sei

se colherei mais uma vez

os lírios que setembro

arranca ao escuro da terra

a nos dizer que a vida

mais uma vez triunfou da morte.

LA 99/05