OUTONO, A VIDA A LIMPO Laerte Antonio (capítulo 2)
Bilhete
Te mando, amada, estes cachimbos, estas rosas de pano, estes garfos, do tempo do Império, duas ceroulas do meu avô ( peças para o museu da família ) para que vás, querida, te enfronhando com a família cujo Brasão pretendes doravante defender. Seguem também uma binga, quatro espartilhos, um cinto de castidade ( este, pelo tamanho, deve servir-te ), um relógio de bolso da marca Roskoff Patent — para usares no pescoço quando estiveres fazendo amor ( comigo ). Vai também uma bela cadeira de defecar, toda em óleo-cabriúva, trabalhada por finas mãos da terra de Ronsard — para dela te servires, amor, quando estiveres inspirada a conceber poemas metafísicos. Mandamos-te outrossim o pito de barro da nossa ''Bisa'', com cabo de junco inglês — para espantares pernilongos numa dessas tuas pescarias pelas águas de bidê do Sena. Vai também, minha prenda, uma cadeira com dois pés transversais mais curtos que se prestava aos meus tataravós na deliciosa arte de se amarem. Nossa ''Bisa'' contava que fora gerada nessa gangorra que cutucava o soalho três vezes por semana e que só cessava quando os galos, indignados, misturavam os seus cantos com protestos. Enviamos a aliança da ''Bisa'' — arremessada na cara do ''Biso'' por 37 vezes: quando aqui se instalou, com labutas do prefeito, a mais formidável casa de tolerância ( francesa ) — com cancã de aperitivo, e de iguarias aqueles pratos que o mundo inteiro conhece e se arrepia só de pensar que existem. Dizia minha avó que os homens, no geral, ficavam verdadeiramente enfermos, doentes de verdade, a ponto de muitas consortes, compreensivas, levarem, elas mesmas, seus amados a serem medicados. Inclusive o então padre Hortênsio... toda a cidade se comoveu tamanhamente com suas febres e olhos vidrados — que o levavam de sete em sete dias a entabular com o indizível... Voltava sempre agradecido — disposto como um saci. Dizem que seus sermões foram-se tornando cada vez mais amenos e brilhantes ( Kundalini subiu-lhe pela espinha — segredavam-se os místicos... ) e sua própria pessoa fazia-se mais e mais fraterna, dona de um sorriso que era um céu pela ternura-enlevo que emanava. .............................................................................................................. Desculpa-me, querida, se me alonguei com o cancã — é que até eu ( bem menino ) tinha problemas sérios quando ouvia um pouco de sua história: contada de soslaio, de modo sincopado e reticente — a meio-tom, à meia-voz, à meia-boca — o que, para mim, não deixava nunca de ser um strip-tease narrativo, fazendo-me subir em paredes ensaboadas...
Por hoje é só, minha comparsa. Amanhã te mando mais. Assim vamos montando o nosso Museu de Família.
Um beijo na tua pinta. LA 99/04
Antídoto
Pra alguma coisa serve essa impotência, essa fraqueza. Esse pensarmos que podemos, acreditarmos que fazemos ou que sabemos — esse pensar que “sim” lá por terras de “não”.
Pra alguma coisa serve essa fraqueza, essa não-suficiência — esse não sermos nunca o lado de cá dos nossos sonhos.
Talvez nisso esteja o antídoto contra uma tal arrogância bem maior da que arrastamos — velhos diabos, lembrando-se de muita luz — mas [trancados] num egoísmo sem janelas. LA 99/04
O Homem E O Canto
Cantastes vossas pátrias, vossas gentes, vossos valores, vossas tradições, e a vida breve e a glória longa ( era a hora de diversificar e fixar ). [Cantar é (era) o termo: insuflar de modo ludoverbal: agradável-sedutor e sempre reificado e recriado.]
Hoje quem canta é o universal no homem. E a hora é aquela de unir e oniabranger com o plasma de uma consciência que saiba — em sua carne e essência — o que é bom para cada um e o que é bom para todos. LA99/04
Penélope
Vê se paras de tecer minha mortalha, Penélope, e casa logo, minha nora, com um dos cem pretendentes. Achas justo, ó de Ulisses, que te salves tecendo a minha morte?... Meu filho haverá de te perdoar: venceu as próprias águas — suplantou o passado e renasceu no futuro. O que é que falta, minha nora, a um homem como Ulisses? — Alguém que lhe corresponda com o que a vida mais preza: amor e gratidão, meu genro. LA 99/04
Pau De Sebo
É, sim, Rosinha, a vida é um pau de sebo, e subir lá, por vezes não compensa. Mas se não sobes lá, minha Rosa, aquela vozinha azucrinante ( que mora em cada um de nós ) vai ficar te confundindo a vida inteira ( cobrando o que não te deves ) — principalmente naquelas horas de cansaço, algum desânimo ou quando um amigo ( sem intenção nenhuma, é claro ) quiser saber por que não foste... Portanto, vai, Rosinha, sobe lá ( o filme é antigo mas vale a pena locá-lo ): machuca, esfola um pouco o físico e o coração e a alma e o espírito. Assim, quando um dia te lembrares de teres lá subido — poderás sorrir em alma, e, loucamente tranqüila, dizer: não a vida não é um pau de sebo. LA 99/04
Antes e depois da denúncia, do estranhamento, a arte vive — conta e reconta aquilo de que é capaz o homem. LA 99/04
Pois É, Amor
Pergunte ao filho de Davi — Mais vale um babaca vivo que um sábio morto. E por experiência, diria o homem sensato: Uma mulher com uma só perna vale mais que todas as quatro da cadeira de qualquer rei.
Meu reino, amor, por tuas pernas. Meu cavalo por teus serviços. ( Se estás com cinto de castidade — tenho martelo e talhadeira.)
Pois é, amor: pior que um babaca vivo é um sábio morto. Mais terrível que ter uma só perna são todas as catacreses mentindo coisas que não são. Mais lamentável que não ter cavalo ( para trocar pelos teus ''honorários'' ) — só mesmo não ter martelo e talhadeira para cortar-te o cinto e liberar-te o centerplay. LA 99/04
Prêmio
A morte da consorte entortara-lhe o sorriso, o ânimo, a vida. Até que surgiu Rute — jeito de bailarina e profetisa hebréia. E bela: bela e adorável como agiota desmemoriado... ou gato surrando cachorro que já nos mordeu.
E a doce Rute alevantou-lhe o sorriso e tudo o mais. LA 99/04
Doações
Versátil, era o doar-se em pessoa. Doou-se pra rua toda, pro bairro, pra cidade, pra região. E disse que mais doara se mais tivera. Virgínia. Era linda a Virgínia. LA 99/04
De Um Beócio
A vida é uma tocaia — dizia um filósofo beócio: uma tocaia. Quem não souber vivê-la ( acrescentava , mascando o humor, cuspindo o riso, bocejando a ironia, coçando o escroto ) — vai se dar mal. E terminava: Mas não me levem a sério, pois, se gosto de futebol, detesto carnaval, e adoro todas as mulheres em cujas paredes nem nunca vou pregar meus pregos, parafusar meus parafusos. LA 99/04
Para Duda ( em todas as idades )
Não se assente debaixo da jaqueira, que estrelas podem cair sobre você, e duendes com chapéus cor de infinito hão de querer levar a pedraria e delas fazer pingentes para as fadas.
Não se assente debaixo da jaqueira, que pétalas de flor hermafrodita podem cair sobre você. Além do mais, se passar sua mão na casca da jaqueira, você acorda o sonho verde da floresta...
Não se assente debaixo da jaqueira, que lhe caem na cabeça penas de sanhaço, enquanto um vento azul passa assoviando as canções que aprendeu com aqueles anões que batem para a chuva a corda do arco-íres.
Não se assente debaixo da jaqueira, a não ser quando os pássaros de sol já tiverem comido as suas frutas e brisas vindas lá de trás dos morros ensinem para os homens o sonho dos girassóis. LA 99/05
Saudade daqueles carrapatinhos... Lembras, Rosinha, como o sol relinchava sobre o fofo da grama? LA 99/05
Disse ao padre que não era por preconceito não, mas preferia que tudo fosse à paisana. LA 99/05
Pinta
Deixou de amar Ritinha quando ela perdeu a pinta... que só ele conhecia e ela jamais creria que tão depressa alguém a visse tão logo assim a perderia. LA 99/05
Ficávamos conversando até as estrelas despencarem dentro da luz. LA 99/05
Os elos da corrente seguram tanto quanto aqueles da mente. ( Coisa velha, mas que se finge esquecer.) LA 99/05
Seja feliz bem baixinho — senão a vida pensa que lhe está dando muito. LA 99/05
Confia no amor, na vida e na felicidade. Afinal, confiar — além de chique, é positivo. LA 99/05
Um trabalho em equipe: elas seguram o muro, eles batem a estaca. LA 99/05
Haicai
Segura aqui, vai. É um ovo de sonhossilgo... Segura, ou... ai, cai! LA 99/05
Enquanto
Enquanto for bonito pensar assim-assim, sentir, agir dessa ou daquela forma — a humanidade sofrerá terríveis, belas torpezas. LA 99/04
Em Nome De...
Em nome da liberdade — quantos crimes, quantas prisões. Em nome do amor — quanta desumanidade. Em nome da família — quanta servidão.
Em nome de qualquer nome — sempre uma inculcação inoculando o vírus de alguma dominação. LA 99/04
Riso-Bumerangue
Temos rido do que somos em muitas personagens. Em geral as achamos ridículas, mesquinhas, dissimuladas e chatas — medonhamente chatas. E hipócritas e indiscretas. Maledicentes, invejosas e muito mais, bem mais que isso — além daquelas que chamamos de tolas-inteligentes.
Pelos circos da vida, pelo convívio, pela arte, por toda a mídia e relacionamentos — temo-nos rido do que somos em muitas, muitas personagens. LA 99/04
Cognatos De Norma
Desesperado, o homem busca sua identificação — ainda que por espelhos. Busca um modelo de ser: pois o normal dos homens não se deixa aflorar — antes, calca-se em alguém a quem imita. Ser normal é muito bom, sobretudo para quem anormalmente domina.
Norma normal normalidade normalizar normalmente anormal — o homem faz desses cognatos não só um jogo marcado, mas uma predestinação. LA 99/04
Um Dedo ( Um Ou Dois? )
Pobres goivos, fostes tão rimados com noivos que a espécie entrou em extinção.
Aqueles peitos doridos, malferidos de tanto amor, pararam de doer assim que viram que sua dor tinha de ser reinventada.
O fúnebre, o macabro — quando não se mataram, foram fazer análise.
Lábios, palavras melífluas — enjoaram até às tripas.
O erótico unido ao religioso gemia muito alto — e os vizinhos reclamaram.
Os índios se fizeram tão nobres, que ouvi-los era sentir-se Bastião ou Fidúrcio.
Os sentimentos piegas tiveram de seguir regras — e aprenderam a pensar.
As idéias e pensamentos tiveram de se pentear.
As paixões se coraram de seus arrulhos roxos de rolas.
O amor duelava, e a não ser em arroubos metafísicos — o amor morria no amante morto.
Os poetas tiveram de tomar banho e depois de várias ensaboadas — começaram a cheirar a realismo.
Mas o delírio valeu. Não fosse ele, o homem seria hoje mais pobre. O mundo se transcendeu: enfiou o dedo no fiofó e assobiou uma área de Mozart. LA 99/04
Definição
O homem é um animal trepante, beligerante e... racional. LA 99/05
Mascando A Espera
Vinhas, não vinhas. Fiquei mascando o estresse até perder o açúcar.
Vinhas, não vinhas — não vieste. Nem por isso a manhã deixou de vir — só a do meu coração ficou nublada até cerca de oito e meia... Foi quando te vi virando a esquina — iluminei-me: corri encontrar-te — mas não eras. Era uma sósia. Sósia tardia: eu já estava iluminado de meu engano. Nem por isso deixou de cair a noite, se bem não vi nenhuma estrela — ainda estava iluminado. Dali a duas horas chegaste. Mas como vinhas anoitecida, não pôde haver encontro... Talvez por isso o vento tenha injuriado tanto as rosas naquela noite. LA 99/04
Sempre Vou
À tua casa sempre vou. E tomo o teu café e como os teus bolinhos. E saboreio as tuas ternuras. À tua casa sempre vou.
E se por vezes me esqueço de ir à tua casa, meu coração me leva — me pega pela mão, e leva. À tua casa sempre vou, mas nunca chego. LA 99/05
Loucura
Coisa horrível, Senhor, — para chegar à Tua casa eu preciso morrer. É tão louco o Teu Plano, meu Pai, que mais louco do que ele — só a minha loucura, que além de nele crer ainda Te ama e sabe que somos Um. Ou Tua casa, Senhor, é em mim dentro? Não somos um, meu Pai, quando meu dedo clica a fé que tenho em Ti? Sim, clicar-Te em minha fé não é acender-me em Ti, sermos a mesma luz? LA 99/05
Canção De Espantar O Frio
Corre, corre, minha Zefa, pra debaixo das cobertas — que o bicho papão do frio vem vindo aí de tremer. Vem vindo de parceria com o vento: vai judiar. Vem vindo de enregelar, vem vindo de endurecer e fazer dentes bater.
Tira os trapos dessa mala e joga em cima da gente. Cobre bem a minha orelha com teu bafo e riso quente. E capricha, minha Zefa, devagar e prestimosa, enquanto o estrado da cama vai musicando a floresta. LA 99/05
Dignidade Roubada
Amores chiques — Flambados com safra rara, degustados com charme.
Amores caros — glamurizados de iates, pérolas, pedras mordidas por metais nobres e chiliques fidalgos.
Amores raros— faiscando luxo-luxúria e a redundante riqueza — dignidade roubada aos pobres. LA 99/05
Ladrão E Amigo
Tempo, meu ladrão e saltimbanco, te entendo necessário. Ao que me roubas por fora me acrescentas por dentro. Não és mordomo, mas cúmplice da vida.
Fundo me escavas — a terra e a ganga se me vão, fica-me a alma do ouro e das pedras que já nem lembra a sua argila-corpo.
Roubas-me mais e mais. Roubas-me sempre. Cumpres — ladrão e amigo — tua função de dínamo-consciência. Roubas-me sempre mais — até que eu fique livre de mim, de ti, de tudo. Até que eu fique rico de não ter nada, e nada tendo, a luz me sorva. LA 99/05
O Roer Do Rato
O mesmo rato que roeu a roupa do rei, roeu a do bobo da corte e a dos fidalgos e mendigos. E vem roendo a nossa, amada.
O mesmo rato roeu não só a roupa, mas o que estava sob ela — mais os segredos e medos e as doçuras e enganos — os belíssimos enganos e tantas coisas tão amadas.
De tudo, o que restou? Um pouco. Só um bem pouco. Os sonhadores e seus sonhos — quase todos roídos. Só um resto de memória — sendo roída —, ainda resta entre os dentes de faminto do roer desse rato a roer ( sem ruído ) em meio ao já roído — roendo, roendo (inclusive) roendo o seu roer. LA 99/05
Esse A Mais
Esse a mais que o homem busca, a um tempo em que se vê a andar-se sozinho lá em si mesmo — sempre a pegar o sonho pela sombra ou pelas plumas... Esse algo a mais, sal das aspirações, especiarias dos desejos no coração humano — como achá-lo-e-viver senão no sonho para as “Índias” do nosso agora-sempre? Senão pelo ousar seus frutos e sementes lá em chãos de nós mesmos?
Esse a mais são degraus por nós que a vida nos faz subir. Esse a mais sabe que há mais. E por sabê-lo — há mais força em ele ousá-lo. LA 99/05
Pelo Dizer
Elabora o teu dizer — dize-o, e ficas livre dele.
Dizer é metabolizar a vida, direcionar sua essência.
Pelo dizer o homem se reinventa — a si e ao mundo.
Pelo dizer é que o homem se encontra dentro do tempo.
Pelo dizer é que o ser se transcende em sua essência. LA 99/05
Todas as Línguas
O coração não fala a língua do exílio — já que não encontra respostas nem no mundo, nem em si mesmo.
Para a razão o mundo é mais compreensível: 2 + 2 = 4 ( ou 6... ); a tal dança, tal compasso.
Entre o exílio e a falsa casa, a vida é um ''sim'' que se veste de ''não''.
Coração e razão quando unidos — falam todas as línguas. LA 99/05
Autoconselho
Diga como quem se coça, como quem urina ou defeca. Diga como quem não sabe.
Mas não diga como quem se coça com vergonha, como quem urina no poste, defeca no sofá ou como quem pensa que sabe dizer.
Diga reaprendendo com o próprio dizer que a dicção só se aprende com dizer e redizer. LA 99/05
OTAN, 99
Quero um verso tão frio, que quem o leia sinta o gelo entrando-lhe pelos pés.
Quero um verso bem chupado, tão esquálido, esquelético — que mostre a morte na carne.
Quero um verso tão ausente, tão omisso e indiferente quanto o humano do ser.
Um verso tão estrondoso que lembre a OTAN bombardeando os pobres dos povos pobres. LA 99/05
Estátuas De Sal
Disse que havia nascido ali, e ali haveria de morrer. Acertou na profecia mas não creio que tivesse ganho alguma coisa com isso.
Seus olhos viveram enterrados no mundozinho paterno. Por paisagem, a alma. Por sonhos — o chulear de dias e noites. E o mascar de esperança com cada vez menos açúcar.
A vida tem cada uma, que para nos conformarmos — só olhando para trás... se bem corramos o risco de nos tornarmos em estátuas de sal. LA 99/05
Só Um Jogo
A peteca foi feita para cair. Mantê-la no ar é só um jogo — não é a vida. Quando cai a pete- ca a gente a pega e joga-a para outro. E ri, e vê que o jogo ser só um jogo — até que é bom. LA 99/05
Círculo
Por vezes não gostamos do que somos. Mas, no fundo, sabemos: somos aquele quem-o-quê que nos profetizamos sempre em continuidade com o já-profetizado.
Com a argila do mental moldamos e remoldamos o nosso ser: criamos universos que fingimos não termos de gerir. Plasmamos risos-lágrimas que temos de rir-chorar.
Nosso inconsciente é ciente do nosso ser total — pra quem o tempo apenas serve como mordomo que o ajuda a organizar-se em dramas-entes ( de maneira que ser é um constante sair-se pelas portas dos fundos e retornar-se outro pelo portal de ser-se.)
Quase sempre não gostamos do que somos, nem queremos assumir que apenas somos aquele-aquilo que nos recriamos com os germes-sentenças do já-profetizado. LA 99/05
Ao Pé Do Ouvido
Minha vizinha Eletrieth, pequena, graciosa e loira, me dizia bem aos soprinhos, junto ao ouvido, que o marido, um sessentão cor de cinza ( eu era ainda bem menino ), lhe tirava de entre as pernas fios da mais pura lã com que fabricava as malhas que vendia à vizinhança.
Pedi à minha tia, e ela me comprou uma das blusas — cor das manhãs de setembro... Eu a vestia com ardumes e calafrios pelo corpo, e quando a sós, pelos cantos, acariciava-a com o rosto — cheirava e advinhava coisas...
Também percebi que as meninas ( que compravam das mesmas malhas ) tinham místicos chiliques e se abraçavam com os próprios braços...
Tentava explicar a elas do que eram feitas essas blusas... mas, entre rubras e nervosas ( suas blusas eram cinza ), me diziam com voz firme que não queriam ouvir coisas que só adultos sabem...
Precisei crescer um pouco pra entender a mercadoidice daquele casalzinho sueco que agasalhou anos e anos os meninos e as meninas ( em segredos risonhos... ), não só do nosso bairro como de toda a cidadela e de jovens forasteiros — todos querendo mergulhar nas alfazemas e anis daquela lã especial — para fazer amor em metonímia. LA 99/05
Recesso
O amor está de recesso e hermafroditamente menstruado. Senhoras e senhores, dai-lhe um tempo.
( O coração-razão do mundo está menstruado e de ressaca.)
Esperai amor parar de sangrar e de trançar as pernas, depois, — fartai-vos!
Fazei o amor e a guerra em toda a terra — mas só depois, agora amor não pode: amor está de recesso, ou melhor, de quarentena. LA 99/05
Pobreza
Pobre país — se precisar da cera de algum nariz.
Pobre mundo em barafunda — se precisar do assobio de uma só bunda.
Pobre do humano — a recontar-se histórias de auto-engano.
Pobre de quem é rico ou pobre. O amor está com gosto salobre e muito aguado. LA 99/05
À Moda Da Casa
Matou-a de um modo caseiro — com três marteladas. O enterro? Bucólico — debaixo da mangueira.
No outro dia foi lá na cova disfarçar com capim seco... — Vixemaria! Cadê a defunta? Na cova num tá não... Enquanto perguntava levou uma pazada, e outra... mais oito ou dez... e caiu enterrado na cova que fizera.
Dª. Jandira, com três galos na cabeça, lavou o rosto, as mãos ( cheios de terra ) e foi fazer o almoço. LA 99/05
Contra
Sou contra porque a favor existe muita gente — todos aqueles que não se pronunciaram.
Ser contra é uma maneira de ver o que sobe e desce, com os pés nas duas margens.
( Sou contra porque a favor não se deve dever favores. )
Sou contra porque a vida sempre sobe a correnteza e espermatiza as águas de um sonho que liberta. LA 99/05
Vocação Grimpante
Menino, foi alpinista das boçorocas. Moço, unhou os seus alpes de um sonhar arrivista ( melhor a guerra que a conquista ). Hoje? Hoje é feminista — adora escalar mulheres sem mesuras nem talheres. LA 99/05
Breve
Seja breve, como a neve. Como o vento e o momento. Não se deixe acumular para não desagradar.
Assim também faz a rosa: vive gloriosa pelas sedas das horas entre duas auroras. LA 99/05
Aquele Piano
Aquele piano que tocava ''Sobre as Ondas'' lá na esquina de eu menino... Aquele piano se calou. Passou o som e as ondas. Passou a infância e a mocidade. Só não passou haver um piano naqueles dias por onde transitava a minha infância.
Piano nenhum é igual àquele piano. Piano nenhum ousaria tocar assim tão bonito como aquele piano — que me tocava ‘’Sobre as Ondas’’... entre as manhãs ainda escuras e a minha infância. LA 99/05
Sempre-Vivas
Bom é saber que o amor é um sonho sempre maior que a nossa maior angústia.
Bom saber que não finda nenhuma estrada em seu fim, mas que há sempre um ainda.
Te mando sempre-vivas para que depois de mortas te lembrem que tudo é vida. LA 99/05
Pobreza
Pobre mundo, que sempre luta por sepultar o diferente. Pobre mundo, que disputa o igual com o desigual, igualmente.
Pobre mundo, tão rico de inteligência dialética — com os pés sempre fincados um no ''não'', outro no ''sim''.
Pobre mundo, que não entra nem permite que se entre. Pobre mundo, a gestar-se no coração da gente. LA 99/05
Charme Verbal
Uma elegância verbal de pés profissionais sobre patins, ou sons afiados de esgrima reverberando ao sol de manhã de olhos azuis com o ar sangrando o alvo perfume de flores que se adivinham. Os gitanos correndo nas veias de um sonho com gosto de chão e liberdade. Um jeito leve, lúcido, esguio de narrar o orgulho andaluz pisando o branco cheiroso das flores das laranjeiras.
Charme verbal. Elegância. Vôos do Espírito empalhados de brisa. Silêncio! Lorca escreve. LA 99/05
Tença
A cabeça que em nós pensa, por vezes não é a nossa. Pensar ou ser pensado — isto faz a diferença. A cabeça que em nós pensa não deveria andar pensa. Se se machuca tal cabeça, quem a pensa a acrescentar-lhe uma pensa? LA 99/05
Bem Gago
Não escrevas, que não leio a não ser depois que apago. Se me falas com o seio, te respondo com afago. Se queres uva, dou-te um bago — que, se muito, corto ao meio. Se a luz machuca, apago. Se não for muito, gostaria de um chilique bem gago — claro que não aqui à beira-lago com esse vento rouco e vago, clitoriando a rosa com tremeliques de mago... Um chilique que não tem pressa em prensar as três uvas... e totalmente sem luvas. Sim: um chilique num gesto pasmo-chique... e longamente bem gago. LA 99/05
Os normais se acham normais,ou só os anormais é que se julgam normais? LA 99/05
Soma Dialética
Se somarmos lucros e perdas veremos que não perdemos muito — uma vez que na vida ganhar-perder caminham juntos. Assim o dia ganha a luz — seu corpo e alma, mas se não fosse a noite, nem um nem outro teria a sua identidade. LA 99/05
Identificação
Somos pessoas das boas ( eu, você e quem nos ouve ). Nobres apesar de pobres. Pessoas chiques e craques, todas com tiques e taques, tremeliques e sotaques, chiliques e piripaques. Mas boas, boas pessoas — pobres sim, mas feitas do cobre em que nossa mãe fazia o doce e nós, com uma colher e uma alegria saltitante, raspávamos o tacho sempre felizes da vida. LA 99/05
Poema Esquisito
As flores que por vezes brotam por sobre a mesa, enquanto escrevo, mando-as todas a você. Se não as vê — é que seu corpo mental ainda não tem mãos de receber. Por outra, você pode sentir-lhes o perfume — se fechar ( sorrindo ) os olhos e disser ao seu coração que ele é capaz de amar com as nuanças da alma tornadas em paixão. LA 99/05
Companheiros
As delícias da ilusão, a droga de ler-escrever, o charme da vaidade, a loucura de bolso, os belos-fiéis enganos, aquele diabo, velho amigo... a certeza da fé, o humor, o riso, a ironia, a força da esperança, a comunhão com Aquele, as alfazemas do amor, a piada, a paródia, o chiste, o já estar-lá da utopia... as pitadas de neurose, o material do sonho que corporifica os desejos — se alguém quiser exorcizar-te tais companheiros tão humanos, dá uns dois passos para trás e pergunta: O que tem para me dar em troca? LA 99/05
Encadeadamente
Depois da tempestade vem a enxurrada. Mas isso não é nada para quem não mora lá. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Depois da guerra vem a fome, mas isso não é nada para quem já não come. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Quando a polícia chega, isso também não é nada — se você é o chefe da tropa. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> O prédio desmoronou, mas isso foi pura graça — para os que não tinham chegado. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> O padre fez um sermão terrível — porém não inquietou a quem sabia que ele apenas queria o dízimo. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Explodia muitas vilas o avião, mas isso não foi nada — porque ele era da OTAN. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> O presidente mentiu, burlou, mas não teve importância — ninguém nem desconfiou. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Depois do dilúvio, segurem na orelha do monte — que Noé não demora. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Se ela disse que vinha e acabou por não vir — agradeça: o infeliz podia ser você. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Se pediu uma graça e não foi concedida — agradeça poder agradecer. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Se o cônjuge se foi com outro, é agradecer a gentileza de ter deixado uma vaga. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> O padre cochilou enquanto confessavas? Pecados de rotina. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> — Mãe, quero ser garota de programa. — O nome é até bonito — mas acho que papai não vai gostar. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Pra separar esses dois — só mesmo um pé de cabra. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Chifres são tão normais, que não tê-los será problema: falta de relacionamentos. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Casamento era tão sério, que os cônjuges usavam tarjas — ouvindo o réquiem de um sonho... >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Sua coisa era tão grande, que sentia preguiça em colocá-la de pé. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Só ele tinha jeito para tirar os carrapatos da vizinha fazendeira. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Ela fazia um cuscus, que o jovem primo adorava comer na cama. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> Quá-Quá-Quá... ai-ai-ai-ai — os vizinhos escutavam toda a santa noite. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> O mesmo sol que nos beija o rosto faz nossa sombra rastejar. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> No que puseram o presidente ''na parede'' ( uma porta falsa se abre e o engole ) — aí falaram em arrebatamento... teletransporte feito pela NASA... rapto por anjos ou Ets — até verificarem que ele estava em seu banheiro hiper-secreto defecando lado a lado com a secretária. LA 99/05
Um, Dois E...
Não chores não. Senta aqui, vamos cantar ( de raiva ) uma canção qualquer. Nem que seja pelo nariz, cantemos.
Não chores não, que a vida não é do lado dos que choram — não é do lado dos fracos ou delicados. A vida é um marujo sempre de porre com os próprios sonhos — fingindo sempres e simulando apegos. No fundo, esse marujo gosta mesmo é do seu navegar e parecer diverso em cada porto.
Vamos lá: um, dois e... cantemos juntos uma canção qualquer. Qualquer canção é boa pra descentralizar o coração e dizer a quem chora ou ri que a beleza de tudo é tudo estar passando — enquanto vamos aprendendo a ser eternos. LA 99/05 Falta
Esse frio, esse nada, esse não ser, não ter — procura sem achar.
Essa quase loucura: buscar uma ventura — só feita de sonhar.
Esse buscar no outro o que o outro não tem — esse duplo faltar.
Essa guerra sem paz, essa paz que é a guerra em seu chover-secar.
Esse sentir que ''sim'' já sabendo que ''não'' — e a mão a se queimar.
Esse querer que o Diabo seja sincero a Deus — mentiras a flambar.
Essa falta, essa ausência que queremos preencher com o tal verbo amar. LA 99/05
Moeda Da Sorte
Se você sabe, me diga: por que essa coisa fere tanto se tão pouco tem pra dar?
Que coisa é essa coisa que constrói e destrói com a mesma facilidade de mão que não se vê?
Desfiladeiro, penhasco, boneco feito de neve, flor de maio a rolar entre as pedras do rio — é essa coisa que se tem? Essa, a coisa que se busca?
Bengala com estilete, flor com haste de punhal, risos flambados de mentiras — é isso o que se tem a dar? O que se tem recebido?
A morte, a destruição, a traição computada com extremo desvelo — isso é que mora na coisa que move o ser humano?
Se você sabe, me diga: o homem só tem essa coisa e o outro lado dela ( que é a guerra ) — uma e outra face da moeda da sua sorte? LA 99/05
Pedaço De Sonho
Desci ao Hades em mim e conversei com meu pai a noite inteira do meu sono. Calmo, tranqüilo estava e bem mais jovem do que eu — já que a morte nos livra da Máquina do Tempo e nos devolve o gesto orvalhado de ser. Calmo, tranqüilo estava e já nem lhe roçava a angústia de saber que o tempo é vida a morrer. Olhei-o dentro dos olhos e com o olhar o abracei, e logo lhe arremessei a terrível pergunta: — Meu pai, o que lhe falta é o mesmo que lhe faltava e que nos falta a nós? — Sim, meu caro, continua aquela ausência de ser — aquela coisa que falta, aquele faltar-se em-si. — E como ser-se, bastar-se e eliminar o vazio? — Ninguém se basta ou se é, nem se pode preencher. O que nos preencheria não vem do nosso esforço — não podemos construir nem mão humana pode. O que nos falta só existe como um complemento da Graça à espera, não de nossas mãos, — mas de atitudes-sintonia num viver cosmo-ligado com a Sagrada-Fonte — o Verbo Santo de Deus que aciona todas as coisas e orbita a vida no ser. ........................................................................ — Meu pai, de onde é que o senhor... — Não sou seu pai — atalhou-me —, sou você mesmo procurando-se — procurando-se em mim-você.
Em seguida, acordei. Sentei na cama e anotei tudo quanto contei — pensando que pudesse, de algum modo, ser útil para mim e você. LA 99/05
No Tempo Das Gerais
Vendi o ouro, Eulália. O ouro que meus escravos garimparam lá nas gerais. Foi ouro de fazer carro de boi chiar.
Compro-te mais escravos, reformo-te a casa-grande e a senzala, deixo-te uma soma no banco — e me vou para a Corte. Vou estudar — fazer Direito, meu sonho de menino. E afagar e/ou afogar as vergonhas das cortesãs — outro sonho de menino-moço. Dedicação exclusiva: Porres, Mulheres e Direito. — Deixo-te uma soma no banco. Uma, ou duas, ou três, ou quatro... Tu vais gerir nossa fazenda, Eulália, com carta-branca e mordomias. Topas? — Topo e tapo a boca — cumplicidade total.
— Só mais um detalhezinho... — Já sei... já o mandei engraxar, lubrificar, trocar os fechos, amaciar as chaves... — Então concordas em usar o cinto de castidade, herança avoenga de Castela? — Claro, amor, fidelidade não me custa. — Padre Libório, além de padre, meu amigo, ficará com as chaves. — Claro, senhor meu, ele tem feito isso com todas as que usam o tal cinto, fazendo dessa peça a coisa mais natural e suportável desse mundo. Vai, meu senhor, e estaremos bem servidas. Aliás, não é a primeira vez que esse filho de Deus nos serve.
PS. De botões para botões, curioso é saber que tais mulheres, trancadas a chave em suas coisas, mostram-se mais que felizes o tempo todo — sob a bênção e jurisdição do prestimoso cura. ...................................................................................... Padre Libório cumpria à risca sua tarefa, naquela determinação camoniana de ir além do que pode a força humana. LA 99/05
Indo E Vindo
— Tchau, Nina. Vou lá para as Gerais ver se cavo algum ouro — pra tirar o pé da jaca, amor. — Tchau, amorzão. ( E se passaram longos dez minutos...) — Nina! Quem é esse negrão tirando pó dos móveis? — Um homem negro, uai, — ouro negro, amorzão! LA 99/05
Pneuma-Morada
Sob ruínas construo meu endereço no ar — no ar mais perene que a pedra, porque vive a recriar-se. O verbo poético me salva — livra-me da destruição por me dar a conhecer-me e por filtrar-se por mim em todo o seu humano ser. A poesia me é um modo de eu ser-me além de mim — além de não-obstante eu.
Pelo verbo sobrevivo-me — vitória sobre o meu fracasso. Minha casa de vento está construída. Meu pneuma-morada está fundado. O que restar de mim restará encarnado no verbo que sustenta a rosa e a eternidade. LA 99/05
Saiba-Se Ou Não
Viver é deixar as mãos iluminarem-se na garimpagem daquilo que nos falta.
Viver ( saiba-se ou não ) é moer as trevas em grânulos de luz e i-los metabolizando em ser-essências de novas nóias — encarnação do brilho no sonho feito verdade na transciência lúcida da consciência a transformar-se em chispas que inauguram penúltimas formas-sopros.
O ser está por aqui até que a morte lhe abra a claridade de si mesmo. LA 99/05 Sobrevivência
O ser se sobrevive em conhecer-se e transcender-se e em transformar sua derrota em vitória verbal — em dar espírito à letra morta. Vestir de primavera o outono-inverno. Assim o ser se sobrevive: de ser em ser-se. LA 99/05
Viva O Seu Dia
Seja você quem for — dê festas, muitas festas lá no seu coração. Viva o seu dia. Deixe entrar o piano, as estrelas, a lua, o vinho. Chame os convivas e curta o burburinho da alegria. O tilintar das taças é dom gratuito — basta você saber que o melhor desta vida é pura graça.
Dê festas, faça festas lá no seu coração. Aliás, o dia em que você se for — saiba que muita gente ( muita, mas muita gente ) estarão naturalmente em festa. Festeje o agora dentro do hoje que é o seu dia. LA/99/05
Cremoso Engano
Se espera tranqüilidade para ser feliz — saiba que nunca o será. Tranqüilidade para fazer, criar ou ser feliz — cremoso engano. Tais coisas só se dão quando se atrevem, quando ousam se dar.
Se a vida é graça, nada nela se faz de graça — mas se constrói pelo ousar. É debaixo de balas que o soldado sabe o que fazer ( ou não sabe ).
Viver é estar num mundo em guerras. Não se constrói a paz esperando-se pela paz — mas trabalhando em sua construção entre rugidos e ameaças.
Quanto mais intranqüilo, mais força tem o vento — que vai para onde quer...
Tranqüilidade é algo que se tem lá em-si ( ou não se tem ).
Fazer, criar ou ser feliz não são um desafio do homem — mas da vida para todos os homens. LA 99/05 Tempo E Arte
O tempo aprisionado, no ato sobrevivente ao corpo — é arte. Pela linguagem da arte o homem se liberta da total destruição: conhecendo-se a si mesmo, transfere-se para o outro — e este vai lhe adiando a morte, enquanto aprende com ele que toda vida anseia por imortalizar-se. LA 99/05
Respostas
Dentro da própria destruição edifico a minha casa — feita do plasma de me conhecer e organizar-me em tempo-ser.
O abismo que se me abre aos pés — encho-o com o azul do meu sonho. À morte que me chama — respondo-lhe pela arte. À perda que meus olhos vêem — acrescento-lhe o ganho carbonodiamantizado. Ao verme que me espera — respondo-lhe com a consciência que sobrevive ao meu corpo. Ao desenfoque da carne, orbitarei na luz — elo entre mim e Aba-Pai. LA 99/05
Corrimão
O poeta se debruça sobre si e os seus que marcham por corredores de tempo — que os gera e come, gera e come... Pela palavra escrita, corporifica o desejo de ser uma voz que clama — uma réstia de luz que sirva de corrimão nas trevas. Pelo labirinto do tempo, essencializa a sua voz entre o Ser e seu Destino. LA 99/05
Construção Entre Ruínas
Lá longe nas igrejas, em barracões e sob árvores — os marginais se reúnem e lêem textos, cantam hinos — comungando em nome Daquele que se lhes fez de passarela entre o mundo de César e a Casa de Seu Pai.
E entre rugidos e metralhas e chacinas e fomes e o zumbir de risadas — os marginais vão construindo suas moradas lá no seu coração — que já se encontra em Casa. LA 99/05
Não Sopre
Cuidado. Fale, mas não sopre. Só temos esta vela e nem mais um palito — e há muito, muito escuro.
Fale, grite, esbraveje, berre, tire as calças e pise em cima, mas por favor — nem pense em esmurrar a mesa e sobretudo — não sopre.
É pouca a luz que temos, muito pouca. Pouca, tênue como nossa vida. Sim, muito pouca. Essa luz é pobre e pouca. Por isso fale, xingue, chore, uive, ulule, ruja — mas lembre sempre: não sopre. Não sopre sobre o pó que somos, que a nossa vela se apaga e vira tudo noite, e fica tudo muito escuro em nós. LA 99/05
Porta Aberta
Não é fácil usar uma roupa sobre outra. Como não é fácil aprender — incorporar em nós — em corpo, em alma e espírito um novo aprendizado, uma nova construção mudança.
Agora, se enfraquecermos nosso pensar que sabemos — então a história é outra. A atitude de não saber é porta aberta ao aprender — e ao mudar: eliminando a resistência, deixando o novo construir-se. LA 99/05
Jornada Do Anti-Herói
Se o melhor do momento é te fazeres covarde — não hesites. Entre te acovardares e ousar, vai só uma questão de notas musicais — só precisas saber quando usar uma ou outra.
Covardia ou coragem ( Fazer ou não fazer ) são filhos inteligentes da nossa experiência — ora chamamos por um, ora por outro. Usemo-las como ferramentas — sem apegos nem preferências. Ferramentas descartáveis — o que importa é a construção. LA 99/05
Canização Barroca
Diabo de vida sufocada pelas mãos dos que pegaram o mundo para si. Quadro obsceno pintado com o sangue das esperanças do povo e das vísceras dos ( feitos ) pobres.
Diabo de afogamento em sangue — sonhos tornados em bolinhos de boteco. Sede e fome sempre frustradas — justiça eternamente adiada.
Diabo de tempos criando estalactites de nódoa-nojo-náusea. Perversidade oficiada à Deusa Ganância — canização barroca do homem. Chãos de palácios e mansões lavados com lágrimas humanas. Paranóias de cimento-armado freqüentadas ( última moda ) em derredor por crianças e velhos abandonados e por milhões de coisas-andando — pedindo emprego e esmola.
Diabo de dias estrangulados aos sons de Bolsas e Mercados — ao ar-condicionado de coniventes ''ismos'' e ''ias'' — férreas justificativas, flácidas democracias sob as bênçãos de estranhas teologias.
Diabo de crucificações em volta e fora das cidades — milhares de crucificados todos os dias a toda hora e instante. Já dentro das cidades, — matam de inanição, desprezo, asfixia... e diferente indiferença.
Diabo de liberdade que em seu próprio nome — amarra, amordaça e mata.
Diabos de bárbaros fazendo leis e tornando a justiça instrumento de seu contrário — marionete de sua gula, melhor: de sua gulatria.
Diabo de sinfonia em cínicos améns — o homem feito cachorro do homem. LA 99/05
O Homem E Sua Mente
O homem diz, a sua mente escuta. E torna a dizer, sempre-sempre. E ela escuta, escuta sempre, e ele então já não diz: fabula. Ele fabula e fabula. E vai acreditando... e eis acredita e crê nas suas fabulações. E suas fabulações ecoando em sua mente — são agora verdades que ele vai defender ( acreditando nelas ). A princípio, vendo-se ( de soslaio ) defendê-las...depois nem mais se vendo... E o que fala se torna a sua vida. Até quando ele julgue ( de esguelha ) que deva sustentá-las para o seu lucro...
Mas a mente, tanto quanto ele, não é confiável: a mente mente, engana e trai... Quando ele pensa que os leõezinhos de suas criações são ainda filhotes, cachorrinhos... eles já estão adultos, e sem nenhuma hesitação nem escrúpulo — começam a devorá-lo. LA 99/05
Oxigênio Da Jornada
Daqui a bem pouco, teremos vergonha de termos pensado o que hoje pensamos.
Como ''bens duráveis'' do homem continuarão intactos — a sua fé, sua esperança, o seu amor a si e ao outro. ( Quem não tiver esses ''bens'', seja o rei ou seu servente — se surpreenderá despido.)
As mãos que não tiverem empreendido um trabalho reflexivo-recíproco ( direta e indiretamente, clara e reiteradamente no seu fazer solidário ) — hão de estar ultrapassadas: cobertas de cinismo e à margem de si mesmas.
A solidariedade será o oxigênio da jornada — ou a jornada não será. LA 99/05
Oração
Flua a Fonte por nosso coração — brilho em que brincam brisas em murmúrios de luz.
Orar se torne livre, leve — simples como respirar; alegre como deslizar ( na infância? ) — por uma calha em pensamento, fácil como sentir o vento.
Uma leveza, um voar feitos de amor e um bem geral: azul. Um revoar de solidariedade a semear no ar a paz, a vida — todos os bens e o bem de todos. LA 99/05
Vó Anita
A rua, o largo, o areão ( hoje praça do Fórum ), a casa, a mesa... o quintal — as jabuticabeiras: adoráveis cúmplices de aventuras-cavalgadas... Dadivosas senhoras vestidas de preto e guardiães dos óbvios segredos. Tios e primos e vizinhos e crianças, muitas crianças. Pedaços, cacos de louça bordados, coloridos... O tanque, o quaradouro, o fogão de lenha. Os arabescos das louças... os armários... o pote. A sopa de caldo de feijão.
Uma sombra do sorriso do meu avô. Um resto de calor do colo de minha mãe. O único deslizar dos dedos de meu pai pela minha cabeça. Um cachorro preto, gatos, canteiros de flores. Muita conversa ( confusa ). Brigas. Ternuras. Medos. Notícias da Guerra. O pessegueiro sorrindo cor-de-rosa em todos os seus galhos. As galinhas. O quintal comprido. As jabuticabeiras exibindo-se de branco para as abelhas... O perfume inesquecível dessas senhoras de branco. Meus pés no chão. Muita gente. Muita. Um frio pelo corpo, concentrado na barriga — querendo colo. O brilho quente da voz, dos braços, do amor de minha vó Anita — unindo os cacos do que foi. LA 99/05
I, VII
Com os pés assim andando em pensamento, transitando-me, múltiplo, por dentro e fora do meu ser, é que me sei caminho-caminhante de um sonho cuja trama, agulha e linha são minha mão a me reconstruir roteiros-eus em alma-sesmaria de Deus em mim tecendo sensações de já nos termos visto no futuro de-nos-veremos-do-pretérito em cima deste hoje — palma da mão do meu Senhor.
O primo-irmão do Anjo que me guia me ditou estes sete versículos do capítulo primeiro de um livro que se chamaria "Caminho-Caminhante''. LA 99/05
NOSTOS
Da roda-tempo escorrego para o centro do seu eixo, e me desvisto de aparências — fico-me livre de antes e depois de mim, em varandas do Eterno, servido (eu ) pelos anjos do Senhor. É ali que sei que preciso não-saber para voltar definitivamente para Casa.
É ali que sei que embarquei num processo de auto-engano — feito com fios do mental, que me tece a ilusão de ter saído de Casa para buscar o que jamais perdi.
Dali é que vejo que preciso voltar pelo caminho da luz — verbalizado em Cristo-Jesus. LA 99/05
Passaporte
A ambição o levou para um lugar muito escuro. Viu então que a força não lhe seria a resposta — ela se quebra dentro do homem. Viu que o poder era um equívoco se ele não se chamasse amor. Quem ama paga a sua conta à vida, aos homens, às coisas e também a si mesmo — liberação a fazer o que deseja.
Só a quem faria para o outro o que faria para si — confere a vida passaporte para Fazer-Criar em seus degraus de luz. LA 99/05
Sinto, Logo Existo
Todo o universo me é com Deus estar-me sendo antes mesmo de tudo ser. Entre Tu e Mim brilha a ilusão de precisarmos. Sinto ser-me no que me falto nalgum tempo-lugar em mim. LA 99/05
Por Veredas De Ser
Toda vez que me intemporizo para colher o fruto antes de refletir a árvore — preciso reafirmar-me para não me perder de mim. Preciso ver se as coisas ainda estão toda vez que elas me são dentro de um ser-essência — antes de degenerar em tempo-espaço. Assim eu sei que para ser-me é só deixar-me ser. Sim, claro!, deixar a luz ( em mim ) brilhar. LA 99/05
Tiques E Taques
Faz tempo, muito tempo — quando as horas eram sonoras e liriais, e batiam e luziam nos metais — o relógio de seu Poggio — tique-taque, taque-tique — empurrava os segundos para fora deste mundo.
Seu Poggio ria do relógio — tique-taque, taque-tique, ... tique... Peças tinindo em timbre esticadinho: umas dançando e saltitando, outras rodando — a tilintar, a cantar com a alma temperada de fractais... ( Ria e dizia que não podia viver sem a companhia e os sons iriais do relógio que falava com a boca dos metais.)
E agradecia: dizia a Deus que não vivia sem seu amigo, que se tornara mais gente que relógio — um membro da família.
Seu Poggio ria ( como ele ria! ) de alegria com seu relógio... Seu companheiro de horas e horas e horas... E o relógio, orgulhoso, lhe dizia: Vai, Poggio, vai almoçar! Poggio, toma o remédio! Poggio, é hora do café! Não se esqueça da missa! Não vai telefonar pro Júnior? E o neto, não vai vê-lo? Não vai buscar sua mulher? Poggio, e o banco? O médico é para hoje às 10. Olha a reunião da câmara! O padeiro! O interurbano!
.....................................................até, até que um dia — tique... ta... que... que... ta... ta... ti... Ah, parou... parou! Não mais tiquetaqueou o relógio de seu Poggio — que comprou outro ( na mesma tarde ), sim: outro que nem tinha tique-taque... E seu Poggio nunca mais se lembrou do tique-taque daquele relógio velho. LA 99/05
Memória Recriativa
Estendendo a mão no tempo, minha memória colhe rosas, e ao desfolhá-las no seu colo — imagina-se feliz: muda ( num vice-versa ) alguma coisa do que foi no que não-foi — e se regala no pretérito presente do seu reinventar e re-sentir a vida. LA 99/05
Espelho Do Sentir
Toda vez que você sente a Fonte a lhe falar em suas sensações — você grava esse lhe falarem no centro das suas células e essencializa — nessa Voz — o seu corpo-consciência. Nesse senti-La mantrizando seu templo-ser a criatura se sente por espelho nos olhos do Criador. LA 99/05
Outono: A Vida A Limpo
As folhas e as promessas do outono — do outono dentro do outono. As folhas. O vento. E as vozes, as muitas vozes no silêncio da vida — circulando na seiva ( como um orgasmo lento ) entre as fibrilas e os sais do sonho de ser de novo primavera.
O despojado silêncio há de explodir em flores e cantos. Quanto a mim, já não sei se colherei mais uma vez os lírios que setembro arranca ao escuro da terra a nos dizer que a vida mais uma vez triunfou da morte. LA 99/05
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