REMOALHOS  (Textos 1)

                      Laerte Antonio

 

Remoalho: bolo de alimentos que os ruminantes fazem retornar à boca para ser remoído ( Aurélio

 

 

 

 

 

Do Outro Lado Da Noite

 

Aquela alegria da infância

( rica de não saber )

pisando descalça

a luz das manhãs:

u-ru-bu-an-do

em tobogãs de azul...

Pede ao teu coração

te dê a bênção

de ao menos mais algumas vezes

viver aquela alegria

( rica de não saber ) —

ainda que seja pela chuva fina,

andorinhando pela tarde

de esperanças

que não aconteceram.

 

Sorve aquela alegria

em vários tons de vida,

e fortifica-te com ela —

que vem das mãos de Deus.

E não temas:

teu coração tem a chave

para abrires a porta

do outro lado da noite.

LA 99/01

 

 

 

 

Pão Do Deserto

 

Não te impacientes:

o que não sabes

te virá do deserto —

ele fará lembrar tua alma.

Lá no deserto ( em ti )

sopram os ventos

de todos os futuros.

E o Espírito modela ( em ti )

a verdade que — uma só —

assume todos os tamanhos.

As pedras te assarão do pão

que hás de metabolizar

em corpo, alma e espírito.

 

O deserto te fará

a tradução do mistério

em murmúrios de luz

e sussurros de sombras.

 

Tuas sandálias não se gastarão

pelo deserto de ti mesmo.

E as areias que pisares

se tornarão no maná da tua fome —

do qual não guardarás

para o dia seguinte:

viverás da verdade

assimilada a cada dia —

e esta será sempre

o quanto podes suportar.

 

Não temas nunca o deserto —

ele te traz a vida

pelas frestas do teu sonho.

As areias te ensinarão

que mesmo as pedras se renovam

e que anotam entre os ventos

as pegadas da vida.

 

Do deserto te virá

tu mesmo: enfim transcendido

em nova criatura.

 

O deserto te abrirá

a arca do teu ser —

da qual irás tirando

coisas novas e velhas.

 

No deserto ouvirás a voz

que ensina a todas as células

o caminho de volta

para a vida.

LA 99/01

 

 

 

 

Os Dois Lados

 

Que vais fazer com tanto brilho,

com tanta luz —

sem o equilíbrio das sombras?

 

O brilho sem a sombra

seria comparável

à inteligência sem o sentimento.

À riqueza

sem a saúde para saboreá-la.

 

Como entender as coisas sem as trevas?

Como entendê-las sem a luz,

se a vida traz em si as duas?

 

O dia e a noite têm as mesmas tintas,

diferenciadas

pelo charme das sombras.

LA 99/01

 

 

 

 

Modéstia De Robô

 

Certamente não precisas

ter os olhos azuis

nem competir em magreza

com o teu cinto.

 

Nem precisas ter os seios

como dois coelhinhos

olhando para cima.

Nem o umbigo muito fundo

para servir champanha.

Nem o glúteo

como duas bolas oficiais.

Nem a língua...

Nem o contorcionismo

de uma serpente.

 

Isto porque, minha amada,

sou apenas um robô

com uma tesão de ferro —

programado para injetar

e fixar-lhe no útero

três bebês especiais.

Daqui a três gerações

conquistaremos o mundo.

LA 99/01

 

 

 

 

Vasos Abandonados

 

Pelas pegadas de te lembrar —

sempre um caminho muito tortuoso,

uma estrada sem acostamento

com passagem só para um...

 

Pelas pegadas da tua voz

já é mais fácil ir até nós dois —

um eco manchado de luz

respinga cômodos escuros

que vão dar numa sala

com muitas flores retorcidas,

impiedosamente secas e assustadas...

em caríssimos vasos, e abandonadas.

 

Pelas pegadas da alegria

nenhuma rua já leva a ti —

a vida já não nidifica

aquela graça de sonhar.

LA 99/01

 

 

 

     

Momentum

 

Enquanto o “não” puder ser opção,

o homem adia

a hora de se encontrar consigo mesmo

e ver que “todo o problema”

não é o mundo nem os outros —

mas o maior problema que ele tem

é ele mesmo:

para si mesmo e para os outros.

O que fazer “consigo”?

Para isso é preciso

ter aprendido a ser honesto

( consigo mesmo )

e original

( também consigo próprio ).

Um momento de extrema solidão,

em que a criatura

faz o parto de si mesma

e sente que viver

se transforma em chamado.

Um chamado interior —

lá do norte do ser.

LA 99/01

 

 

 

 

Transmutação

 

Ali pelo entardecer,

criatividade e competência

podem se entrelaçar —

mas só depois de muito estudo,

de muita luta

em que a expressão

consiga se tornar

simplicidade:

um jeito de dizer descalço

por veredas que se abrem

por dentro das palavras.

LA 99/01

 

 

 

 

Valor De Transcendência

 

A Grande Diferença

está entre aquilo que rola pelo mundo

e o que você passou pelo tamis

do seu viver —

e foi incorporando à consciência

eternamente aberta para a luz.

O homem ( se ) vale

o quanto está liberto —

do mundo e de si mesmo.

E esse “valor de transcendência”

é a sua ousada vitória.

LA 99/01

 

 

 

 

Lófios

 

Vejo os homens-meninos

na gula de dirigir

e digerir o mundo.

Sem preparo nenhum,

a não ser o da Astúcia e do Amor-Próprio

( de nível mudano-universitário ) —

eles dirigem o mundo

enquanto educadamente o digerem.

São os lófios do Planeta-Água.

.........................................................................

São amados e temidos,

sobretudo invejados e imitados

pelos peixes-piolhos —

seus amigos e cúmplices pele-com-pele.

LA 99/01

 

 

 

 

Vendo E Aprendendo

 

Não tenho pena ou mágoa

dos demagogos.

Apenas venderam a alma — que não têm —

ao mundo ( que empresta ao Fundo das Nações )

para os povos pagar

( com as suas hemácias ).

Apenas optaram por fazer

o monocórdio humor-sério,

que até faz rir de raiva.

 

Nenhuma inveja ou ódio

de tais gulatras

que comem carne humana

e palitam os dentes

com a hipocrisia.

 

Nenhuma inveja ou dó

desses hominibais

que degustam com glamour

a Terra inteira.

 

Nenhuma surpresa ou susto

de tais biófagos,

cujas mandíbulas mastigam, com charme,

o lugar na vida de bilhões.

 

Tais bípedes preciosos

são mais servis que a servidão

que impingem aos excluídos.

Servis porque decoram

e papagaiam o Script

que o mundo escreve

de geração em geração —

nepotismo genético-social.

 

Tais mamíferos charmosos

precisam, devem existir.

Alguém deve representar a Peça

e fazer reproduzi-la.

O que é triste

é passar pelo mundo sem ter olhos

de ver o seu Teatro.

LA 99/01

 

        

 

 

 

Pelo Tempo

 

Aio, escudeiro,

companheiro e coveiro —

o tempo é o mordomo da vida.

Ponte entre o ser e o ser-se,

o tempo é o fiel companheiro

na jornada da criatura.

É a substância com a qual

o indivíduo se constrói

interiormente degraus

e abre veredas em si mesmo

para encontrar o seu caminho

na confluência

de outros tempos e caminhos.

 

Pelo tempo

subimos e descemos por nós mesmos

através de ramais que nos unem

com os que estão e com aqueles

que já se recolheram.

Pelo tempo

somos todos Ulisses

através de nós mesmos.

LA 99/01

 

 

 

 

Autodó

 

O ego dolorido,

e com “razões” ( rações ) diárias

para doer-se —

que é que pode colher

senão o vácuo de sentido?

 

O autodó

fornece tijolos e argamassa

para o indivíduo emparedar-se.

LA 99/01

 

 

 

    

Flores Molhadas

 

Estendo a mão ao lado de lembrar-te

e colho flores ainda molhadas

daquelas chuvas tão adolescentes

que acariciavam os dezembros

e adorávamos tomar.

Flores ainda molhadas... espelhando

o brilho corajoso e quente

de tenros sonhos, risos-esperanças...

Colho-as

pela ventura de colhê-las,

pela alegria

de vê-las umidamente intactas...

 

Uns guardam euros, dólares,

mansões, navios, impérios...

Eu guardo o teu sorriso —

imperturbavelmente jovem,

destemidamente lindo —

entre as flores que colho

em eu lembrar-te.

LA 99/01

 

 

 

 

Banana Verde

 

No passado tratei-te mal, Zilpata.

O passado foi imaturidades...

Vou esperar seus frutos no futuro:

quem sabe ali já estarão maduros,

se eu puder trabalhá-los no presente.

 

Imaturos, Zilpata,

como bananas cujo cacho desponta:

só podia restar em nossa vida

esse sabor de mágoa-adstringência —

mais ingênuo que riso de bebês.

 

Nós somos o que somos, Zilpata.

E a vida é o que ela é:

não distribui felicidades —

quer que aprendamos a construí-las

e quer que os nossos pés façam a estrada.

LA 99/01

 

 

 

 

Sonhonautas

 

Os passos do ser humano

são interrogativos

em direção a um ponto

que só existe

no centro do nosso ser.

Suas visões se interrogam

cinético-experiencialmente

em visões-revisões

de introvisões-supervisões

num ver e ver-se em que a pessoa

se identifica com o Verbo

pelo qual fora per-so-na-da...

 

Os passos do ser humano

são interrogativos

em direção a um porto —

que é nave em movimento

entre o partir e um cais

que só existe

porque o sonho o conhece.

 

O mais é navegar.

A bússola

e a incerteza de chegar

estão na mão do Capitão,

que o coração conhece e hospeda

em sua casa de brisa e azuis.

LA 99/01

 

 

 

 

Poema Em Dois Tons

 

A vida não se explica

nem dá satisfação:

apenas faz viver —

obriga ser levada avante.

Talvez porque não saiba

que a criatura

não dispõe de outro recurso

senão vivê-la.

Sim, porque, se soubesse —

haveria de ter vergonha

de ser tão prepotente:

impor-se a qualquer custo.

 

Nesta altura, susto a pena

( isto é: o digitar ).

Meu coração me diz

que eu não sei o que estou dizendo...

Me diz

que o ser se sente mal

para parir-se maior

e que a finalidade

das coisas

existe logo ao lado

do seu entendimento.

LA 99/01

 

 

 

 

Linhas Amarelas

 

( Você não, mas seu amigo

está precisando ler

estas linhas amarelas... )

 

Quem não esquece o que perdeu

quase sempre

acaba por perder bem mais.

Quem não se ajuda honestamente

( ou já não pode se ajudar )

a elaborar as suas perdas —

vai perder ainda mais

com terapias sem fim

e mais doença e sofrimento.

 

A vida é tão maravilhosa

quanto imcompreensívelmente fria:

...”ao que tem mais ainda será dado,

ao que não tem

ainda mais lhe será tirado”.

Quem disse isto

sabia o que dizia.

LA 99/01

 

 

 

 

Teres E Seres

 

Nosso mal é enfiarmos na cabeça

que temos isto, isso, aquilo e Aquiles...

Pode ter alguma coisa

quem não é dono

nem da vida que o sustém?

Nossos teres e seres

são apenas instrumentos

que a vida nos põe nas mãos

para aprendermos a lidar

com suas muitas realidades.

Só pode perder

quem pensa que tem.

Só pode se enganar

quem pensa que é.

O mais é ver,

não só para crer

mas também para descrer.

LA 99/01

 

 

 

 

Dor

 

Pensei que tivesse ou fosse alguma coisa,

e lutei e lutei para ter mais e ser —

até que vi que nunca tive

senão a dor de ser o que não tive

e ter o que não era,

bem, ali, sobre a palma da existência,

num cantinho de mim.

LA 99/01

 

 

 

        

Escrever

 

Escrever é só um modo

de repetir que não posso

dizer o que é a vida.

Só um modo

de dizer que não sei amar

nem amar-me.

De dizer que sonhar

sem ter mãos de fazer

é sêmen ou ventre estéril.

De dizer que não finda nunca

a caminhada rumo à praia

onde estão construindo

o barco que já partiu

há muito e muito lá em nós.

Escrever é só um modo

de eu esperar-me naquele porto

para o qual parti faz tempo.

Um porto a que chegar

é só um modo de partir.

Escrever é recriar mitemas

para aquela jornada em nós

em que aquele Ulisses

somos todos, todos nós.

LA 99/01

 

 

 

 

De Ninguém

 

Vou pôr um cinto de castidade,

não na frente ou atrás dela,

mas nos seios —

as duas colinas

onde repousa aquele sonho

de quando a vi primeira vez.

 

Pensando bem, por que o cinto,

se a coisa pode servir a muitos?

Estão cheios de vinho ( os seios )

e ela dá de sonhar a quem ( ela ) quiser.

 

Melhor pôr o tal cinto

lá no coração dela —

para o qual ninguém olhará

( nem dará importância )

e por isso, talvez,

ela nem venha a importar-se.

Por fim nem lembrará

que eu lho pus ali.

E por não se lembrar,

se esquecerá de existir —

com todas as delícias

de já não ser,

pela intuição ( disfarçado )

de já ter resguardado

o que eu sabia de ninguém.

LA 99/01

 

 

 

 

Dócil Argila

 

Quando você sente que o momento é seu,

então pode levá-lo para a tela,

para a pauta, para o sulfite...

Ele é seu. E o instante é uma dócil argila,

obediente à mão do seu fazer-criar:

tudo quanto — agora — lhe passar pelos dedos

terá a forma do seu querer,

os contornos dos seus sonhos,

a libido da sua expressão.

Apenas colha espontaneamente o momento

fazendo nascer, em contrações pós-eróticas,

a obra, — vontade de Alguém

acoplada ao sonho que visitou você.

LA 99/01

 

 

 

 

Tutu De Amor

 

Amor é bom bem cozido,

malpassado

ou cru.

Carne de amor só não agrada 

se é pescoço de urubu.

No mais, amor é comido

ou melhor: degustado,

e não se compara a nada:

tudo o mais vira angu —

e angu sem rabada.

 

Nada tem o sabor

nem o macio esplendor

de um belo tutu de amor.

 

Se dizem, terno amor, que a carne tua

nem com a da gazela se compara,

é porque a tua agrada mesmo crua

e a daquela só muito bem-passada.

LA 99/01

 

 

 

 

Ousar

 

Os temporais têm desabado,

a correnteza anda feroz.

E tu, amigo, —  te encontras

bem no meio do rio?

 

Que fazer, companheiro,

senão comprimir o pé

na fenda da tua barca

e tentarmos atravessar?

Muitas vezes o ousar

é tudo o que podemos.

LA 99/01

 

 

 

 

Canção De Ninar Abandono

 

Se ela se foi com outro,

dê logo graças a Deus

por ter ido para outro

o que não era seu.

Se sendo às vezes cansa,

não sendo só atrapalha.

Melhor nada na mão

do que aquilo que não quer ser.

LA 99/01

 

 

 

 

Vocação Para A Miséria

 

Antes a crítica por ter

que o elogio por não ter.

Durante séculos e séculos

os chamados intelectuais

foram incentivados

( e programados )

a viver de meldelecas —

mas com um riso inteligente...

Criou-se o Narciso mendigo

para os sempres dos améns.

Era só uma questão

entre astúcia e inteligência.

Venceu a astúcia.

E a vocação para a miséria

veio habitar sob o teto

do homo intellectualis.

LA 99/01

 

 

 

          

Graça

 

O amor é de graça, amada.

E ensina a dar de graça

o que de graça recebemos.

Fazer de graça

o que de graça nos é feito.

 

A vida é graça, amada.

E a Deus sempre aborrece

a auto-suficiência.

 

A vida é graça.

Só não o é o ofício

( que temos ) de aprender —

isto é: que tudo é graça.

LA 99/01

 

 

 

 

Atrás Das Estações

 

Esperei por você

atrás das estações

com uma rosa azul

( que lhe porei entre os seios )

e um lindo bem-lhe-quer

na lapela do meu coração.

 

Sempre atrás das estações

esperarei por você —

nas mãos as flores mais loucas,

mais loucamente vermelhas

com que Deus já permitiu

um coração sonhar.

 

Esperarei por você

atrás das estações —

lá onde a rosa azul

( que lhe plantei )

há de ser sempre um consolo —

um gesto de sol em flor

ao longo, amor, dos seus bocejos.

LA 99/01

 

 

 

 

Sem Véu

 

Dize-me o que tens pensado

e falado

e dir-te-ei como estás.

Bem difícil assumir

que o que somos

seja construção nossa.

Em geral preferimos

sentir-nos vítimas —

o que, além de cômodo,

nos exime.

LA 99/01

 

 

 

 

Reconstrução

 

Abre janelas em teu quarto —

entre a luz e a brisa fresca.

Entre a vida a cantar

por todas as tuas células.

A água potável da música

regue amorosamente

as tuas emoções.

E derruba, sim: derruba

( lá em teu coração )

as paredes do teu quarto —

haja pontes entre as pessoas

e trocas, todo tipo de trocas

de todas as vitais necessidades.

E não te esqueças de tomar

( a qualquer hora do dia

ou da noite )

chuvas e chuvas de alegria

( que vêm dos lados da infância ),

nem de sentir o aroma

de luz e azul

que vem da graça de viver.

LA 99/01

 

 

 

  

A Calma Da Rosa

 

Um pé na morte

e uma das mãos segurando

num cipó muito frágil.

A vida?

Não foi nada daquilo,

nem nada disso:

foi o que foi —

como a vida gosta de ser:

deliciosamente ilógica

e doída por dentro.

 

A vida?

Sei lá.

É pra saber?

 

Vim a saber ( de lado )

que toda a calma da rosa

descansa em seu não saber.

LA 99/01

 

 

 

 

A Vida Tem A Chave

 

Saber o tamanho do universo

fora saber o tamanho do ser.

O universo é o ser

enquanto metabolizador

de gamas de consciência.

O ser é o universo

enquanto caminhos recorrentes

( interiores e exteriores ).

 

Tanto o universo como o homem

não servem como são —

porque não são

a não ser o que sonham.

A realidade é só um esboço

que a vida vive a alterar.

A consciência é um vinho

cujo odre é ela mesma.

Aquilo por que o homem anseia

é feito à medida de Deus.

E aquela água que corre para a eternidade

passa ( sem que muitos suspeitem )

por dentro da criatura.

Somos o lá-aqui,

o ontem-sempre

de um sonho que sonhamos

e que nos sonha.

A vida tem a chave.

O mistério

tem todas as provisões.

LA 99/01

 

 

 

 

Engaste

 

Apoiado

na escrivaninha do mental,

transubstancio o instante

em coisas-contos

que me contem e recontem

a minha história

que se urde e vive no sem data

do velho drama humano.

 

Sou uma arca

de que vou retirando

coisas novas e velhas.

Meu tema é o ser,

o ser que mora no homem

e faz a estrada com seus pés.

Sua paisagem interior

( com veredas que o levam para fora )

é o que me importa.

O homem enquanto construtor

do seu destino —

enquanto ponte ( em construção )

de sua travessia e transcendência.

O homem —

esperança de superar-se,

aprendiz de si mesmo.

LA 99/01

 

 

 

 

Amor Bobo

 

Segundo Tião,

amor pra lá de bom

é o amor bobo —

que é bobo e adora ser assim.

E o mais doce do amor

é justamente

sua alegre bobeira.

 

O amor não vê

( ainda segundo Tião )

senão o que não foi escrito.

Quando se põe a ler e ver —

não é amor,

mas professor de lógica:

infeliz e bebum.

 

Suas rosadas bobeiras

( teima o nosso Tião )

são toda a sua graça e charme.

Quanto mais abobado

mais precioso o amor.

Amor bobo

é coisa de dar inveja

e muita água na boca.

LA 99/01

 

 

 

 

 

Terrestre

 

Por vezes, amada, é bom

sentir um amor mais denso,

uma ternura terrestre.

Um amor de carne e osso:

um sorriso, um olhar

que sejam ponderáveis —

de modo a verbalizar

e a fazer tátil

a sua companhia.

 

O toque das mãos

por vezes é mais divino

que as sinfonias da luz...

A xícara de café,

por vezes mais confortável

que as palavras bem arranjadas

de todas as filosofias,

de todas as religiões.

 

O amor, amada, por vezes

precisa se fazer terrestre

para viver o céu.

LA 99/01

 

 

 

        

Revisão

 

Tenho deixado pássaros

fazer ninhos na minha cabeça.

Não tenho espanado o meu sentir —

de modo que tem levado

sujeiras para o meu coração.

Tenho permitido ao autodó

enredar-me em ressentimentos.

A mágoa

e um certo medo de lidar com o mundo

me levam muitas vezes

a me desestimar.

Tenho, às vezes, bloqueado em mim

a água viva do verbo —

me tenho negado a mim

sentir-me aquele vaso

do amor vivente

que liga o ser com a Fonte

e lhe preserva a vida —

fá-lo sentir Deus-sendo-o

em seu aventurar-se a Ele,

por saber o caminho

do seu amor.

O simples fato de sabermos

de tais pecados —,

que enfraquecem o humano em nós —,

já é uma providência implícita

que endireita as nossas veredas

e reconstrói a estrada.

A revisão do ver limpa as retinas

e nos leva a vindimar

nos campos intuitivos da realidade.

LA 99/01

 

 

 

 

Nossa Aventura Em Nós

 

Seja gentil consigo mesmo.

Tenha paciência com você.

Tolere-se,

até que aprenda a amar-se.

Amando-se,

o outro não lhe será problema —

será antes um livro

em que você lerá a própria história:

ele lhe mostrará coisas profundas

que nem suspeitava tê-las em você.

Com tais revelações

será impossível não amar

( sobre todas as coisas )

Aquele:

nossa aventura em nós.

LA 99/01

 

 

 

 

A Hora E O Salto

 

Enquanto você não dá o salto

( pelo qual talvez treina sem saber... ),

o salto de humano para sobre-humano —

que fazer senão ir-se preparando

até que tais exercícios

se tornem conscientes?

 

Que fazer a não ser

construir a serenidade

e uma paciência de pedra,

até que a hora sangre

seu mel sob a muda língua?

 

Que lhe resta,

enquanto cumpre o dia-a-dia,

senão viver de fé em fé,

de esperança em esperança,

de transcendência em transcendência —

até que brilhe a hora,

a hora e o salto

lá dentro de você?

LA 99/01

 

 

 

 

Abertura

 

Às vezes nos abrimos como Rubble

para o Infinito: tanto e tanto

que temos a sensação de sê-Lo

e comungar com seu poscênio...

Vemos a criação

em seu perpétuo recriar-se

por todas as nossas células —

conversando consciências maiores:

gamas interdimensionais de vida...

Nesses instantes

podemos lapidar a aparelhagem...

sentir fluir pelos poros

a bênção vivificante

do Coração da Vida.

LA 99/01

 

 

 

 

Alma Do Vôo

 

Muitas vezes precisamos

apanhar a ave pelas penas —

a racionalidade não tem mãos:

é preciso chamar pela intuição —

o conhecimento direto,

o entendimento sem Descartes.

A intuição é o caminho pelos ares

( estágio cogntivo superior ) —

apreende a coisa em seu vôo,

molhada de destempo.

A intuição, alma do vôo,

mostra sem precisar ir lá.

LA 99/01

 

 

 

 

Feitos

 

Mágoas, ódios, ressentimentos

ele os ia pondo no freezer,

e enterrava os inimigos

num cemitério que construíra

lá num canto da memória.

 

Tudo ia bem

até que um dia faltou ''força''

( deu um apagão lá nele )

e desabaram temporais

e temporais:

água grossa rolou,

sulcou,

esburacou, revirou

o chão de sua fazenda...

Quando ele pôde ver,

viu-se rodeado de decomposições...

e seus densos, pegajosos odores.

 

Dizem que pior que ver-sentir tal cena

foi saber-se dono de tudo aquilo.

LA 99/01

 

 

 

 

Pedido

 

Quando chegar, Senhor, a hora,

dá-me aquele desassombro

de um animal que não sabe...

E fica, ó Pai,

com a alma e o escombro.

LA 99/01

 

 

 

 

Dor Suja

 

Tua lembrança,

resquícios de orgasmos

e espinho em carne-alma.

 

Tua lembrança

teima em ser mais que perfume —

quer-se flor em vaso com água

junto à porta de entrada...

Nego-lhe vaso e água

deixando-a ao lado esquerdo

da mesa.

Murchará, secará

por não ser mais desejada,

se bem que ainda amada.

 

Tua lembrança

desfolha sobre o sulfite

a agonia convulsiva

de sonhos envenenados.

Uma dor suja

em eu lembrar-te.

LA 99/01

 

 

 

 

Bela

 

Era bela como um raio

direto na cabeça

de inimigo implacável.

Foi Vidalvo vê-la, e amá-la.

Amá-la exclusivamente

como a mais bela de todas.

Amá-la eternamente

entre o piscar dos segundos.

 

Era bela como um chute

que faz gol do meio do campo.

Bela como receber alta

dez dias após ser degolado.

Bela como saber

que não se é soro-positivo

como dizia o primeiro exame...

Bela como ser corno

de alguém que já morreu.

Bela como terrível fome

por motivos estéticos.

Bela como o rútilo machado

que desce entre os membros da vítima

que estava atada aos trilhos...

Bela, duplamente bela,

como roubar o cônjuge

de quem já não o suportava.

Bela como ver

o pai morrer,

a mãe morrer,

os irmãos morrerem —

de pura felicidade.

 

E a bela Arabela

lhe foi eternamente bela —

até que Vidalvo viu

que a irmã dela

era ainda mais bela.

LA 99/01

 

 

 

 

Do Limbo À Luz

 

O amor ainda é limbo,

mas é de exercitá-lo

que ele se vai fazendo água corrente.

A solidariedade

constitui o melhor exercício

para fazer do lodo água potável.

De balbucio em balbucio

chegaremos à linguagem fluente

da nossa humanidade,

e no conjunto,

cada um de per si,

iremos escalando

nosso sonho maior:

aquele que nos levará

até o céu em nós —

do limbo à luz.

LA 99/01

 

 

 

 

      Escritor-Nobel

 

      Perguntado por que fizera

      e habitava

      uma casa de tapume —

      disse que por se saber a si mesmo

      em constante construção.

 

       — Mas todos não estamos

      em construção de nós mesmos? —

      indagou-lhe um cantor.

               — Todos não,

      só os que se sabem no processo...

 

      Aproveitando o clima,

      uma jovem jornalista

      lhe ferroa a pergunta:

      Quer dizer que a única parede

      que separa o senhor

      dos moradores de barracos

      é a metafísica?

                  
               — Mas que parede, senhora?!

       — E onde o senhor haveria

      de apoiar os pauzinhos

      de sua filosofia?

      LA 99/01

 

 

 

 

 De Repente

 

De repente, por uma porta da consciência,

fiquei chocado comigo,

com o mundo... Não sabia

que éramos tão miseráveis.

Os edifícios da razão,

do sentimento...

eram casas de palha —

queimados, estrangulados

pela outra das mãos que os erigira...

O beijo, o escarro

vinham de um só lugar —

de dentro do coração.

A santidade, a crápula

eram extremos do caminho do meio —

ambos tão cheios da mesma coisa

( não obstante trabalhada

de maneira diferente ) ...

De repente

senti-nos ( a mim, o mundo, os outros )

pateticamente miseráveis.

Um teatrinho triste e sempre já-visto,

saído como minhocas dos poros do tempo.

Cansaço e nojo.

Nojo de mim, por mim,

pelo que fizera, pelo que estava fazendo,

por tudo o que faria

e iria certamente fazer.

De repente

só tive forças para pedir perdão a Deus

pelo que eu era

e que me desse muita humildade verdadeira

junto com a graça de eu me ver um dia

uma pessoa renascida desses escombros.

E, claro, todos os que lhe pedissem

pudessem se livrar

das embiras de si mesmos

LA 99/01

 

 

 

 

Não Faças Doce

 

Das coisas que conheço, amada,

amar-te é o que mais presta.

O mais é essa coisa choca

que a gente tem de suportar

porque os que não o quiseram

não tiveram nada melhor.

Coação das bravas, amada:

é isso ou isso.

 

E já que não tem jeito,

vivamos, e façamos

que isso possa ser aquilo

e aquilo, — Aquiles

mostrando a formosura

do calcanhar à Helena,

que Páris soube flechar.

......................................................................................

( Quem não é ou não tem —

inventa.

E esse é o dom maior

que foi concedido ao homem. )

 

Vive, que a vida

é o só que te emprestaram

e tudo o que te deram.

Faze dela uma limonada.

Tem gelo no freezer

e açúcar diet no armário.

 

Tudo o que tens é viver.

Aleluia!

Vive e não faças doce.

E quando chegar a hora,

morre de tal maneira

que a vida fique enciumada.

LA 99/01

 

 

 

 

Canção Zen

 

Come-descome tua comida.

Bebe-verte a tua água.

Expele teus flatos.

O mais? Vem embutido no viver.

 

Faze o que podes,

o que não podes, — compra feito,

não podendo,

encomenda ao Noel.

 

Come,

descome.

Bebe,

verte.

Libera teus flatos.

O mais? Está no que nem sabes

que sabes ou fazes...

 

Jamais te esqueças

de rir bastante,

gargalhar gostosamente

e saborear a ventura

de não precisar ser venturoso.

LA 99/01

 

 

 

 

De Mãe Pra Filho

 

Nesses tempos atocaiados,

encosta-te na parede:

corre os olhos do centro para os lados,

e canta pelo nariz

uma canção qualquer

que fale que bem maior

é O que está em ti

do que o que anda pelo mundo.

 

Nesses tempos atocaiados,

apenas vira as costas ao amigo

quando o gajo estiver

com o caixão lacrado.

Só dize ao padre

que os seus sermões são inspirados...

Ao pastor — que tem razão...

Ao espírita —

que a reencarnação

é a maior prova da justiça de Deus.

A ti mesmo —

que um coração humilde e quebrantado

tem sempre a palavra de que precisa.

À polícia agradece pelo equívoco

( se houve )

e pela dureza com que te tratou

( se assim foi ).

Aos “notáveis” e aos “donos” —

não há de te custar

ajeitar um sorriso

com aquela discreta inclinação...

Se abordado por um figurão

para ouvir uma piada —

sai deixando um rastro branquinho

de simpática risada.

A um “tapinha”,  retribui com outro e um sorriso.

A um elogio, com dois:

curtos e alucinógenos.

Ante o olhar, gesto ou palavra dura e impositora —

passividade ( estudada ) e alienação.

Foge aos encômios —

quem faz um espera três,

e o lado sadio disso é um só —

fazer rir ( lá no mental, é claro ).

 

Quanto às mulheres,

o problema seria não havê-las.

E saibas de cor:

elas adoram os bobos

mas jamais gostam deles.

 

Reserva um pouco do teu tempo

para te reunires ( física ou mentalmente )

com aqueles que sabem

que a vida cobra transcendências.

 

Esses tempos atocaiados

têm o seu lado belo —

estarmos vivos.

Toma cuidado contigo

( tua mala está pronta )

e cuidado com o mundo.

Usa sabonete líquido.

Se cai,

não tens de pegar.

 

O humor, o riso, a ironia

ajudam muito.

 

( Pus na mala

um pedaço daquela goiabada

e algumas camisinhas. )

 

Tem misericórdia de toda criatura.

Ajuda o pobre.

Vive e ajuda a viver.

Aprende a perceber a graça na tua vida

e a agradecê-la.

Faze o que deves e o que gostas de fazer

com um sentimento de verdade.

Confia na vida —

ela traz em si o mestre

e oferece

o discipulado do viver.

que flui da graça.

A esperança fortifica

e faz as noites menos longas.

Há uma moeda

que deves a todos e a ti.

Jamais percas a intimidade com a Fonte.

O amor a Deus, ao outro e a ti

constrói o saber para onde...

A solidariedade dá sentido à caminhada.

 

Muita prudência. Alimentação conscienciosa.

Uns dois dedos de astúcia e muita dedicação:

pra que o dinheiro encontre a calha do teu bolso.

 

(  Sebastiana já pôs as coisas no porta-malas

e deixou a chave no contato... )

 

Telefona em outras ocasiões

além daquelas

em que pedes dinheiro,

em que choras as tuas dores

ou desejas boas festas.

 

Deus te abençõe, meu filho.

LA 99/01

 

 

 

 

Eroticus

 

No strip-tease da mídia,

vai-se tirando bem devagarinho

a roupa da notícia.

Quando despida,

já não tem muita graça —

o orgasmo já se deu.

Morto e frio, o sêmen.

LA 99/01

 

 

 

 

FFFFFFFFF

 

Fama-flama-flâmea-fama

Flores-flamas-flores-flatos

Fama-flores-flama-flatos

Flanam fluidas, flavas flamas

Flâmeas formas, fluida fama

Fléxeis flébeis flóreos flancos

Flambam formas, famas, flores

Fluem fluidos, flácidos flatos

Flocos flanam, fluxos fluem

Fluida-flórea-flameamente

FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF

LA 99/01

 

 

 

 

Remoalhos

 

O ver tem seus encontros com o rever,

seus remoalhos de realidades —

o reciclar constante de verdades

desfiando e refiando em seu tecer.

 

O mundo se recria pelo ver —

sim: faz-se outros em tais diversidades

que se vão transformando em unidades

desdobradas também pelo rever.

 

O ver é a consciência autovidente,

puxando para fora o inconsciente,

criando os seus degraus e patamares...

 

Degraus e patamares sempre novos

por onde o ver é pássaro nos ares

e o vário canto verde nos renovos.

LA 99/01

 

 

 

 

Estavam Salvos

 

Cuspi as últimas lágrimas

sobre esse amor

recortado de adagas-mentiras.

Um pavimento inteiro de sonhos

desmoronou.

Tijolos ressonavam bêbados

de reboco, poeira

e a feitoria litúrgica do tempo.

Os sinos da esperança

repicavam nunca-mais.

Os da fé repicavam sempres

com alevinos nadando

nas bordas matinais dos sons.

( O nada de ossos

se recompôs em nervos, carnes

e alma recém-soprada de divino.)

Aves com bicos de céu

diziam nos seus cantos

que Deus não dorme,

que Deus não dorme,

que Deus não dorme

( quando ousamos saber

que Ele não dorme ).

Meus escombros estavam salvos.

Lágrimas de alecrim

cheiravam n'alma

como o despertar de uma estrela.

LA 99/01

 

 

 

 

Linhas

 

O nexo de aquela dor

doer na ponta de todos os espinhos

era eu sabê-la nossa —

minha e de toda a humanidade.

Doía do limbo das idéias

aos sussurros de pensamentos-luz.

Dor sem noção de infinito...

retalhava o nosso sono

de gritos cor de sangue

e angústia bezuntada de espera.

Dor sem mãos, sem lábios.

Sem mãos de suplicar,

sem lábios de murmurar a prece.

Machucava o espírito da carne

com pontas de bambu.

Era minha. Era da humanidade.

Seu nexo

era eu sabê-la nossa.

    Quem poderá — gritei — salvar-nos?

Nisto, minou luz e água viva

de todos os poros do silêncio...

lá no silêncio em nosso coração.

Minha alma então exclamou

sem nenhuma dependência da minha língua:

''Eu sabia que estavas mais perto de nós

que a carne que nos veste.

Salva a mim e as minhas irmãs!''

......................................................................

A dor não cessou,

mas já não havia

nenhum desespero em sofrê-la.

LA 99/01

 

 

 

 

Paisagem

 

A luz da manhã relincha

entre potros

que irrequietamente pacem.

 

O céu é de um azul tátil

cheirando a longidões da infância.

Com a boca suja de manga,

novembro rega o verde

que mais parece um grito.

 

Carros deslizam no asfalto que ( agora )

está molhado e borrifa brancuras.

 

Estar vivo é bom,

embora saiba

que o que me faz dizê-lo

soa quase mentiroso —

talvez medo, angústia da morte.

LA 99/01

 

 

 

 

Gajo, Gajo!

 

Ao inimigo, ao invejoso —

o desprezo perpétuo.

O pó do pó do esterco.

Pensar nele ( ou nela ou neles )

é não gostar de si.

Escutou, coração?

É surdo esse gajo.

LA  99/01

 

 

 

 

Remoagem

 

A esta altura,

a vida vai e vem —

do bucho à boca:

remoalhos

entre o tempo trifurcado.

 

Resta saber

que é que se ganha

com esse remoer —

uma vez que é o próprio ser

que se faz a substância

dessa remoagem.

 

Que tipo de loucura

será essa de querer

reciclar

a derrota do tempo

em vitória?

LA 99/01

 

 

 

 

Lá Fora O Vento Insiste

 

Ouves?...

Lá dos lados da infância

os violinos de ventos

vibram entre o trigal maduro

canções cheias de um brilho assombrado...

 

Os sonhos interrompidos

dos suicidas

uivam sem corpos

palavras prateadas de frio amor.

Suas vozes sem bordas

abrem-se em abismos

onde despenham estrelas e amadas

no apocalipse de seus corpos nus

cheirando a ervas coniventes

que hissopam seu dourado despudor.

 

Lá dos lados da infância

os ventos tocam violinos

para as crianças dormir

e os adultos poderem

desfolhar seus desejos

sobre o lençol da noite.

 

O escuro do silêncio

ressona como um cachorro velho,

e os amantes aproveitam

para não dormir.

Lá fora o vento insiste —

esfrega o inquieto corpo

na tumidez da noite.

Ouves?...

LA 99/01

 

 

 

 

É Verdade A Mentira...

 

Só quando faz amor com o vizinho

é que ela extrai de dois a três diamantes...

O seu marido a espera com carinho

e café com bolinhos fumegantes.

 

Às quintas, ele é quem permuta o ninho

pelo da secretária em seus arfantes,

ágeis molejos sobre o branco linho...

Sua esposa o recebe como antes.

 

Tratam-se bem, mui educadamente —

trocam flores, palavras de elogio...

Amam-se pelo amor que não se sentem.

 

Um busca que o outro ponha em sua mente

que — sendo a vida um invisível fio —

é verdade a mentira que se mentem.

LA 99/01

 

 

 

 

Os Sapatos

 

Seus sapatos gemiam de cansaço

enquanto ( em sonho ) Hélio, pela escada

de seu porão, chegava até a sacada

de um horizonte ainda um tanto baço...

 

Que divisar nesse nevoento espaço

sem o dia soprando em clarinada

a sua luz ( em sonho ) sempre adiada

manquejando nas sombras passo a passo?

 

Sempre um dia ( num sonho ) que não vem

a esperar quem não vem sem saber bem

qual seria , se viesse, o seu compasso

 

a descer junto a nós para o porão

com os sapatos mortos de cansaço,

e o sonho iluminando a solidão...

LA 99/01

 

 

 

 

Programações

 

Meninos amavam canivetes.

Meninas adoravam bonecas.

Agora, já nem sei do que gostam.

Mas para que saber

se já não sou criança

e as que agora o são

foram programadas

para outras coisas?

 

Outros tempos,

outras porcas e parafusos.

LA 99/01

 

 

 

     

Fazer-Se

 

Uma pessoa se faz

de muitas outras pessoas

semeadas pelo tempo.

Uma pessoa se faz 

de tudo o que já foi feito

mais a sua capacidade

de refazer o mundo.

Uma pessoa se faz

de muitos sonhos somados

aos sonhos que ela sazona

e torna coisas-em-si.

Uma pessoa se faz

com o personar das máscaras

ecoando de rosto aberto

no ouvido de todo o teatro.

LA 99/01

 

 

 

 

Na Real

 

Um dia acharemos

a nossa identidade.

Tomara que seja aquela

de jamais precisarmos

nos identificar

com nada nem com ninguém.

Que a nossa identidade

se pareça conosco.

Assumiremos o que somos

e nos aceitaremos —

como aceitamos a vida

e o comércio dos homens.

LA 99/01

 

 

 

 

ÕESSSSSS...

 

E — agora — o que fazer,

senão aquela limonada?

Com açúcar

até aquilo pouco proferível

se torna suportável.

 

A hora é cítrica

e de muita acidez.

Feliz o ânimo

que não se deixa azedar.

Prudente o coração

que sabe se transformar

nas moendas e velho tachos

de fabricar o açúcar

para contrabalançar

o amargor do momento.

Esse fará parte

dos que não se deixam

pensar nem sonhar

pelos donos deste mundo.

LA 99/01

 

 

 

     

Sossegue: É A Sua Vez

 

Sossegue: nada foi dito.

Temos apenas balbucios

da Realidade.

E a vida quer que a leiamos,

contemos e recontemos —

primeiro para nós mesmos

e depois para os outros.

O ofício de viver:

dele depende

contar(-se) e recontar(-se),

ver e rever(-se).

 

Sossegue: o que foi contado

já não serve.

Cada geração reinventa o conto

em que ela se acredita ''alguma coisa''

e desse acreditar lhe vem a força

para cumprir sua tarefa:

trabalhar a sua essência,

organizar-se e transcender-se

como quem sobe degraus lá por si mesmo.

 

Sossegue. Não se deixe perder

por entre o pouco que foi dito.

Não acredite

que aqueles que nos antecederam

já disseram a vida por nós.

Não lhes demos procuração alguma

para sonharem por nós.

Cada homem ( quando faz )

faz seus míseros ensaios —

que em seguida viram húmus

para gestar novos ensaios.

A verdade

é o quanto podemos suportar.

 

Quem lê, relê, translê —

tem que contar

a fim de organizar-se e preparar-se

para novas leituras,

outros recontos.

Sossegue: todos temos

de aprender a contar —

a nosso tempo e vez.

 

Sossegue: aquilo a que chegamos

é só um riso do amanhã.

O tempo é sempre novo —

barro virgem, docemente moldável

segundo imagem-semelhança

do humano sonho.

Não deixe nunca de fazer-criar

( contar a vida para si )

e imprimir na estrada dos homens

a ousadia das suas pegadas.

Sossegue, que o dizer

é como respirar e ver.

LA 99/01

 

 

 

 

Pelas Areias

 

Seja paciente consigo:

você “tem jeito” sim.

Seja indulgente consigo mesmo.

Onde achará indulgência

senão no próprio coração?

Onde a vida mais dói

a mão amiga não alcança —

há uma solidão que é nossa,

e nos queima e nos sangra por suas areias.

Todo homem passa por ela —

principalmente

quando está dando o salto

entre a pedra e o sonho,

entre o que é e o mais-ser.

 

Seja paciente,

e não tema.

Acredite no óbvio:

se nada dura, a sua dor-noite

já deve estar amanhecendo.

LA 99/01

 

 

 

 

Poema Neoliberal

 

Cinqüenta por cento dos nossos sonhos

não se realizarão jamais.

E a outra metade depende

de cinqüenta milhões de coisas.

Logo,

o que chamamos de felicidade

parece ter suas ações majoritárias

no modo de administrarmos

os “sins” e os “nãos” da vida.

A vida é graça,

graça fiduciária.

LA 99/01

 

 

 

 

      Fidelidade

 

      Esse Sol que está lá longe,

      este Sol que está em nós —

      graça sempre fiel,

      dom que fecunda a vida

      no útero das águas,

      e faz dançar a flor

      em suas mãos de brisa,

      e faz amor com a Terra,

      emprenhando-a de sonhos,

      e faz haver o vento

      que semeia o seu sêmen

      no desejo das espécies —

      e pastoreia o amor e a vida

      pelos campos do mistério...

      Sabes-tu, Bicho arrogante,

      o que é que restaria

      de ti, de todo o planeta

      se esse Sol se ausentasse

      por apenas alguns segundos?

       — Gelo, Bicho arrogante,

      uma Bolota de gelo

      girando medonhamente

      em seu inferno glacial.

      LA 99/01

     

 

 

 

Redondilhas Enrodilhadas

 

No fundo, no fundo

veremos que as coisas

não são bem assim.

Não são nada disso,

embora nos deixem

cavá-las bem fundo.

Até nem existem

embora possamos

cavá-las bem fundo.

No fundo, no fundo

tais coisas não têm

nem face nem fundo.

Por isso tais coisas

não têm condições

de serem assim

tal qual as queremos —

mas são simplesmente

aquilo que são

ou mesmo não são,

porque, minha amiga,

pra ser ou não ser,

no fundo, no fundo,

as coisas jamais

precisam de nada.

Apenas as coisas

não são bem assim.

No fundo ou na praia,

as coisas só são

aquilo que não

sabemos que são.

LA 99/01

 

 

 

 

Amarelo-Palha

 

Seria bom não precisar,

mas como sempre preciso —

telefono-lhe conciso

( fazendo-me de mudo e mouco )

a ver se pode me adotar

por meia hora ou mais um pouco.

 

Em geral, me diz que sim,

e me esforço o mais que posso

pra não torcer o pescoço...

( logo hoje que vai ter festa? )

e permanecer assim

mais humano do que besta.

 

Só de saber que mais tarde

estaremos tão juntos quanto

o estão os olhos e o pranto

( mesmo quando a alegria os fira? ),

algo bom em mim dentro arde

qual se não fosse mentira.

LA 99/01

 

 

 

 

Coisas Do Amor

 

“O amor dura mais um pouco

quando não se exige muito” —

dizia André à Rosinha,

que nem mais se lembrava

de ter tido

nenhum afeto por ele.

LA 99/01

 

 

 

 

Frustração

 

Dizes-me sempre, amiga,

que adoras o homem

com três emes cognatos:

macho-machão-machudo —

aquele bicho que come,

lambe os dedos, os lábios

e pede mais.

 

Dizes gostar de mel

recheado de ferrões,

gostar do amor

com três ou quatro brasas,

e amar orgasmos

com cacos de navalha.

 

Que pena, amiga —

vais morrer com vontade:

o canivete-laser

destes últimos tempos

já castrou essas delícias —

frustrando aqueles que sabiam

o que era bom ( pra lá de bom ).

LA 99/01

 

 

 

 

Pequi

 

Não chores não, senta aqui,

que te faço uma canção

com gosto de sapoti,

doçuras de pão assando

e festas de bem-te-vi.

 

Não chores não, senta aqui,

que te reconto a velha história

daquela pobre Glória

que louco-amava Peri

que era doido por Vitória.

 

Não chores não, senta aqui,

que o amor não vale o que come.

Fica sabendo, moleca,

que o amor é como pequi:

quem lambe não mata a fome,

quem morde fundo se estrepa.

LA 99/01

 

 

 

 

Canção De Três Andares

 

                    I

Tenho um rancho perto da praia,

um cachorro e um violão.

Não venhas morar comigo,

que saras da solidão

mas adoeces do estômago.

 

                  II

Cabocla da perna grossa

e dos seios de cabaça,

resistir ( há quem possa? )

de que jeito a tua graça?

 

                 III

Meu coração, todo mel,

sempre seduz quem o prove.

TOPAS VIVER UM AMOR

BEM SÉCULO-XIX ?

LA 99/01

 

 

 

 

Plataforma De Ensaios

 

Não se iluda: ainda vivemos

junto à porta da Caverna.

Um homem só se conhece

pelo seu coração-consciência.

A evolução é coletiva

mas ( sobretudo ) individual.

É aqui ( na oficina do viver )

que ensaiamos o salto

do que é

para mais-ser.

LA 99/01

 

 

 

 

Oficina

 

O que se faz transcende o fazedor,

o que se cria ao criador:

consciente-inconsciente em mesmo fio

desnovelando-se de dentro para fora —

levam adiante esse fazer-criar

em que quem faz ou cria

se suplanta naquilo que construiu

num recriar-se e refazer

a cada sonho corporificado.

A vida elabora a crise

e ocorre a transformação

num processo de essencialização

a superar-se em ganhos-consciência —

o ser em sua oficina de infinito.

LA 99/01

 

 

 

 

Por Ora

 

Aqui, sim, no meu porto inseguro,

ensaiarei para ser feliz —

feliz por tudo ser tão fluido,

tão provisório sobre a haste

daquela rosa azul a desfolhar-se

na ante-sala do coração

com os pés ainda seduzidos

por sua jornada de herói —

entre a sombra do monomito

e a sua estrada interior de ser.

 

Por ora é gozar o provisório

desse porto inseguro chamado vida —

sonho de talvez-sim.

 

Por ora é só saber que o não saber

é toda a força

para materializar lá no poscênio

o sonhar alucinado da ribalta.

LA 99/01

 

 

 

 

Silêncio De Taças

 

Cerrando as pálpebras do medo,

vemos nossos fantasmas.

Abrindo-as para a luz,

já os vemos tragados por si mesmos.

Nesse pedaço de caminho

nossas mãos já não seguram...

As estações já não desfilam

por nossas almas preocupadas

em tecer as suas vestes...

As estações já não dão frutos

de apaixonadas esperanças.

Muito silêncio pela estrada

que passa dentre nossos medos

lá pelas sombras da tarde

a caminho da noite.

Não uma noite qualquer,

mas aquela da fusão

do ser com ele mesmo —

na angústia-renascer

de sua própria consciência.

 

Um silêncio de taças

vazias, sujas de vinho.

Todos se foram deitar...

inclusive os anfitriões.

 

Só um vento pelos corredores

e varandas e calçadas,

gemendo pedaços de um poema —

fiapos de vozes que se agarram

aos arbustos do tempo.

LA 99/01

 

 

 

 

E Agora?

 

Agora que tudo foi feito

e refeito e desfeito,

e que as cãs

são apenas cabelos brancos —

confiar em quem,

a não ser na criança

que fomos ainda há pouco

( ali na infância )

e lembrar que ela sabia ser alegre

e se espantar

com a loucura dos adultos?

 

Que fazer,

senão reaprender a não saber?

 

Que fazer,

senão ver que a rosa é sabiamente bela

porque nada sabe

sobre a sua beleza?

E se viesse a saber,

quem sabe a rosa não se admirasse

de ver que o que chamamos belo nela

é só uma transferência

do nosso medo de morrer?

LA 99/01

 

 

 

 

Preservação

 

A persistente

banalização de tudo

torna a vida sem graça —

cara de pedra,

lavada de sonhos.

 

Só quem pode redescobrir

a própria infância —

seu não-saber...

( ou preservou seu coração

das moedas deste mundo )

é que terá condições

de ousar aquela alegria,

aquele sentido maior

que recebeu da vida

orvalhadamente de graça.

LA 99/01

 

 

 

 

Após Pronunciamento Em Rede

 

Assim sem molho e a seco,

querem que engulamos

o pão duro de cada dia.

Assim a seco e sem molho.

 

Assim sem molho e sem graça,

só se o almoço for virtual —

então pode ser sem sal

e, em vez de peixe, o seu espinho.

Caso contrário, Excelência,

é bom um pouco de molho,

algum cheiro-verde, etc.

e uma pitada de respeito.

LA 99/01

 

 

 

 

Esquema Vitalício

 

Há muitas atividades-hábitos

que nos mantêm miseráveis:

nossa “carreira” social

e os relacionamentos malsãos

vão nos assegurar

o nosso eterno quebrar lanças

e a nossa não-felicidade.

Muito difícil

romper tais hábitos-avós,

quebrar o esquema vitalício.

Se concitarmos alguém a fazê-lo,

em geral, cometemos o pecado

de vê-lo sem saber

o que fazer consigo.

Mudar é biológico...

Mudar-se é para poucos.

LA 99/01

 

 

           

 

Viver

 

Há os que são tão inteligentes,

tão brilhantes,

tão sensíveis

que não sabem o que fazer com isso.

São tão tão...

que para tontões

só falta ajeitar os sons.

 

Tantos estudos,

tantas experiências,

tantas qualidades,

tantas tantidões —

que tudo isso nem é nada,

pois não sabem o que fazer,

não com isso,

mas com a própria vida.

 

Tantas universidades.

Tantos mestrados

e doutorados.

Aprenderam tudo,

menos que o ofício

de construir o homem

se chama ( sem nenhum mistério ) viver.

LA 99/01

 

 

 

 

De Porta Entreaberta

 

Bebereis daquele vinho

cuja videira

fica no centro do reino.

Daquele vinho

cujos eflúvios vos transportarão

a outras gamas de consciência.

 

Bebereis do vinho do Espírito,

que vos dilatará

os odres do entendimento

e vos conduzirá

de verdade em verdade.

Por essa estrada seguireis

de fé em fé,

de esperança em esperança,

de transcendência em transcendência —

até aquelas varandas

banhadas pelo amor do Pai,

de cuja casa partimos

com os pés do nosso coração

e a que só podemos retornar

pelas trilhas do próprio coração —

pois é aí,

bem dentro de nós,

que brilha — de porta entreaberta —

a Casa do Senhor.

LA 99/01

 

 

 

        

Gajos Malvistos

 

Há o entendimento complicado,

o entendimento torto

e aquele que caminha

para a possibilidade.

À medida que entendemos,

vamos acumulando entendimentos —

assim como uma mentira

( ou uma semiverdade ou verdade —

contada em cima de outra e outra e outra...

( Claro que há a experiência,

métodos de verificação

e toda uma aparelhagem

lógico-formal-noético-dialética, etc. )

E assim vamos colecionando coisas

que pensamos estarem para sempre entendidas,

deveras conhecidas e provadas —

acumulando-acumulando-acumulando...

e enquanto se acumulam

surgem aqueles indivíduos incômodos

( com espírito de criança

que nos perguntam:

É assim mesmo? E por quê? Mas e se não fosse assim?...

E se enveredam por outros lados

do conhecer-entender.

Esses gajos ( quase sempre malvistos

ou batizados de “malditos” )

é que nos sacodem

do nosso auto-engano.

LA 99/01

 

 

 

 

Peter's Mother

 

Em geral nos programamos —

sentimos e pensamos

restritivamente:

nós mesmos nos castramos

com o canivetinho enferrujado

dos nossos medos e autopreconceitos.

Pela sua própria mãe,

Pedro pode conhecer

todas as mães do universo

ou só a sua mãe.

Se alguém nos barra,

a barreira está em nós —

senão a atravessamos

como um fantasma.

Se Fulano constrói um muro à nossa porta,

é porque demos a entender

que não havia ninguém em casa.

 

Quem reduz os próprios sonhos

como é que vai fazer-criar

algo que não seja restritivo?

LA 99/01

 

 

 

      

Achadores

 

Você acha que está certo,

eu também acho

e vamos vivendo nesses achares,

amontoando achados —

orgulhosos e felizes

dos nossos achamentos.

E depois de muitos achádegos,

heróicos achadaços

e achadiços achares

e até mesmo achadões

( em pujantes achadouros ) —

lá um belo dia nos vemos

sem saber o que fazer

com tudo aquilo que achamos.

LA 99/01

 

 

 

 

Crise De Tanto

 

Tinha estudado tanto o meu amigo,

tantos esoterismos

e metafísicas e magias...

tantas cosmogonias

e físicas-teóricas...

Tantas filosofias

e biologias

e espiritualidades...

Tantos exatismos

e intuicionismos...

Tanta arte e ciência

e religião...

Tantos ''ismos'' e ''ias'' —

que agora o pobre já nem sabia

o que fazer consigo.

LA 99/02

 

 

 

 

Construção

 

Deficiências físicas,

morais

e cívicas.

Quem não é um deficiente?

Sorte desse ... que não é.

 

A mais terrível das deficiências

é a que os homens constroem

com cara de inocentes:

a deficiência cívica —

flores que espiam a sorrir

bem à beira das falésias...

 

Vidas construídas de abismos.

O social se alimenta dessas flores

como os ruminantes de capim.

 

A vida parece concordar,

mas não aceita...

Se existe alguém que não perdoa,

é a vida.

LA 99/02

 

 

 

   

Caminhos Do Sublime

 

Multidões e multidões

de eus-outros —

todos ávidos de ter um pouco

daquele bem supremo

que ninguém toca,

de que ninguém se apropria...

Sabem ( lá em seu não saber )

que “aquele bem” é raro —

uma seta no escuro

das longidões de ser.

 

Multidões e multidões

procuram uns nos outros

um pouco desse bem,

que Deus semeou na vida —

para torná-la inquieta

e com isso fazê-la

retornar para Si.

LA 99/02

 

 

 

 

Bobeira

 

Abençoa, Senhor,

nossa bobeira.

Bobeira nossa de ontem, hoje e sempre.

Bobeira nossa consciente

e inconsciente.

 

Bobeira astuta, onipresente.

E aquela ausente, apassivada.

Bobeira mansa, calculada.

E aquela conivente, “grampeada”.

Bobeira honesta. Bobeira ladra.

E aquela negligente e aquela serviçal.

Bobeira virtual, e a pérfido-leal.

 

Senhor, perdoa

nossa bobeira

de cada dia.

Que seria de nós,

da nossa vida

sem essa jóia

de uso comum?

LA 99/02

 

 

 

 

Compartes

 

Compartilhemos, amada,

um pouco desse bem supremo

que não se atinge nunca

e de que não se apropria.

Persigamos as trilhas do sublime

e nos veremos a caminho

daquele céu onde Deus

brinca de pique com a nossa infância

e oferta rosas de alegria

às nossas almas.

Ali o coração extrai as pérolas

lá do seu não poder —

do poscênio onde o Demiurgo

ensaia as suas criaturas

para o grande final-começo.

LA 99/02

 

 

       

 

Cúpido Cupido

 

Como cair, amor, na tua fome

e deixar-me moer por bagatelas?

Ou finjo que és um bicho que não come

e te aplaudo por tolas passarelas?

 

Devo esperar que tua flor retome

a posturas de eróticas lapelas,

ou ver no teu olhar de pedra-pome

a beleza demente das estrelas?

 

Devo entregar, amor, meu frágil peito

aos líricos punhais de inconsciência

do teu sublime dom, sempre desfeito?

 

Por esse preço não, amor faminto.

Eu saio pela porta de emergência

e dou um nó nos sonhos do meu pé.

LA 99/02

 

 

 

 

Não Cai Do Céu

 

Felicidade, amor e sexo —

aquilo que todos querem,

mas ninguém tem.

Só quase nada disso

é que se tem.

E não se tem porque tudo isso

vem embalado em medos, preconceitos,

proibições, tabus, condicionamentos,

ideologias, planejamentos:

doenças.

É preciso equilíbrio

e prévia construção

para se ter felicidade,

amor e sexo.

No moral o homem não possui

aquilo que ele não se construiu.

( O homem chega-se um dia,

e ele e a Fonte são Um. )

Em sua fase azul

o homem cria

e faz materializar-se.

Então seu reino

( seu campo de ventura )

mora em seu coração —

e essa bem-aventurança

é ele mesmo, é o próprio homem:

um outro em-si.

LA 99/02

 

 

 

 

Eus-Outros

 

Aquela criança que fomos,

aquela criatura adolescente,

o jovem que um dia fomos —

é preciso amá-los, respeitá-los,

ter-lhes gratidão e compaixão.

Eles foram o suporte da nossa vida —

arcaram com a carga do que fomos

e são a plataforma que hoje nos sustém.

Coragem eles nos deram. E força!

Esses  “mutantes” devem ser amados,

respeitados e compreendidos.

Foram  a argamassa do nosso “eu atual”

( feixe de ousadia, e destemor ):

propiciaram nossas mudanças —

nossa transformação em processo,

nessa estrada que hoje percorremos:

nesse caminho infinito que é nós mesmos.

Isto é o Amor, inerência da vida,

que organiza, transforma,

une a fé à esperança,

a caridade à ação

e vai fazendo ( num processo )

o homem transcender-se ( Deus no homem,

o homem em Deus ),

sempre fazendo o homem transcender-se.

A estrada que percorremos

é feita de muitos e muitos “eus-outros”,

sim: os “eus-outros” nós mesmos.

LA 99/02

 

 

 

 

O Rapto

 

A esposa dava nele duas vezes:

bem de manhã e pelo fim do dia.

E assim viveu André cinqüenta meses,

moído da jugal pancadaria.

 

A vizinha, num transe de ousadia,

rapta-o durante um desses mil revezes

e o instala em sua alcova quase fria, —

suturando-o a limpar-lhe o sangue e as fezes...

 

Convalesceu, sarou. tornou-se um touro:

forte, manso e a serviço: um homem de ouro —

cama, mesa, cozinha... e charme e o resto.

 

Ante as visitas, Vera comentava

( enquanto ele, a sorrir, a acariciava ):

“Cão repudiado é humilde, grato e honesto”.

LA 99/02

 

 

 

 

Perda

 

A perda dói, ou mais que dói: nos rala.

A perda dói, principalmente quando

a vemos ocorrer, escorregando

das nossas mãos sem como segurá-la...

 

Sem como já podermos ampará-la

em braços, mãos que vão se transformando

em gestos fluidos, fluidos ao comando

da vontade sem força já, sem fala...

 

A perda dói, e fundamente rói

a alma e o orgulho... e o nosso ser a sente

como algo que podia... mas não foi.

 

A perda dói e em sua dor presente

traz o passado que ainda mais nos dói...

E dói, a perda dói perdidamente.

LA 99/02

 

 

 

 

Agora Que Maria...

 

Agora que Maria “não existe”

para fazer das pedras primavera

e a vida é quase um nada, um velho chiste,

perto daquela luz que era Maria.

 

Agora que viver já não consiste

em esperar Maria e aquela espera

de brilho tão alegre se fez triste

por já não ter a vida o sol que a era.

 

Agora que Maria não acende

o céu da noite e a rosa não recende

seu dom em evocar quem não atende...

 

Agora que murchou toda a alegria

dos sinos que Maria percutia —

como ter vida a vida sem Maria?

LA 99/02

 

 

 

 

Bem mal me queres,

mal bem me amas.

E vá poder, amor,

com tantas tramas.

LA 99/02

 

 

 

Meio-Orgasmo

 

Ficou muito feliz quando disseram

que o mundo ia acabar, que o Armagedom

já permitia ouvir-se trom a trom —

para o gozo de todos os que creram...

 

Ajeitou ( ele e amigos ), reteceram

alguns versículos de alto tom

e criaram a “Jesus Quer O Seu Dom” —

aquele dom que os homens esqueceram...

 

Marcaram dia e hora para o Fim,

sendo que todos ressuscitariam

para imporem à Terra o dom feliz...

 

Veio o dia... cheirando a alecrim...

Não vendo os fiéis aquilo que previam,

gritam de uma só voz: “Jesus não quis!”

LA 99/02

 

 

 

 

Armagedons

 

Muitos Armagedons têm ocorrido

entre o homem velho e o novo ( lá em nós ).

Tal como é fora é dentro: tem havido

batalhas e batalhas-pais-avós.

 

O mundo e o coração têm remoído

estados-ser no coletivo e a sós:

tudo para encontrar novo sentido —

cada alegria ou dor tem seu entrós...

 

Um reciclar de gamas de consciência

vive a lutar por sua transcendência

enquanto o ser trabalha a própria essência.

 

Um renascer traz outro renascer,

qualquer morrer é um novo acontecer

e a vida marcha entre ser e ser.

LA 99/02

 

 

 

 

Canais

 

Poucos dos nossos sonhos se realizam.

Os mais rolam com os seixos e deslizam

para um mar de sargaços, turvas águas

de frustrações, ressentimentos, mágoas...

 

E geramos profusas esperanças

em amores suaves com as fianças

que a vida e a mocidade, essas atrizes,

nos fingem com seu gesto de felizes...

 

E as águas vão passando e vão levando

as desovas dos sonhos que investimos

entre os sargaços desse mar ondeando...

 

Em meio a hipóteses e veleidades,

aprendemos que tudo o que construímos

é para abrir canais de realidades.

LA 99/02

 

 

 

 

O Ser E O Mundo

 

Pensamentos-alevinos

buscam canais de água mansa e algas,

até tornarem-se em idéias

com nadadeiras prontas

para enfrentar o mar aberto.

Tais idéias feitas

de outros genes-escamas

de eus-peixes os mais diversos

vão seguindo em cardumes

ao mesmo tempo que já vão fazendo

seus exercícios de individualidades:

caem, aos poucos, na dialética das ondas

e se tornam universais.

Aqui começa a responsabilidade maior —

que rumo dar àquilo que se é.

Trocado em centavos:

o que fazer de si?

LA 99/022

 

 

 

 

Se Deixasses...

 

Se deixasses de me amar

nenhuma estrela ficaria no lugar...

e os astrônomos iriam reclamar.

 

Se me deixasses de amar

as flores murchariam todas...

e a vida perderia os lábios.

 

Se deixasses de me amar

o sol pararia de brilhar...

e as pessoas — que não têm nada com isso —

iriam virar estátuas.

 

Se deixasses de me amar

a beleza ficaria

profundamente doente

e os apaixonados e os artistas

perderiam o seu êxtase.

 

Por amor a todos esses

que teriam grandes problemas

se me deixasses de amar,

é que te peço , amada:

não faças mal a essa gente,

continua como sempre —

fingindo que me amas.

LA 99/02

 

 

 

 

Precisa-Se De Um Matador

 

Quem souber matar um fantasma,

queira ligar para 444-33-22.

Disponho de armas e munição.

O matador deve ser um perito,

pois que o fantasma se encontra

dentro de sua vítima,

com dois reféns —

o cônjuge da vitimada

e sua amante.

Paga-se bem.

LA 99/02

 

 

 

 

      Tudo-Nada

 

      Após teologia,

      fez doutorado.

      Também filosofia.

      Religiões comparadas.

      Ecumenismos.

      Pesquisas, comparações:

      apócrifos e outros.

 

      Reestudou a Bíblia.

      Livro por livro.

      Parágrafo por parágrafo.

      Versículo por versículo.

      Palavra por palavra.

      Releu e transleu tudinho:

      do Velho ao Novo Testamento.

 

      Lecionou. Pregou.

      Fundou a “Sócio-Religião” —

      a que invés de templos,

      construiria padarias, moradias...

      Não gostou.

      Voltou a lecionar e a pregar.

      Estudou e reestudou tudo.

      Leu, releu tudo.

      E se tornou — honestamente —

      ( palavra dele )

      ateu.

 

       — E a fé, a esperança, o amor? —

      lhe perguntou alguém.

               — Esqueci-me de guardá-los:

      deixei-me perder deles...

      Quando quis voltar a eles —

      já não estavam lá ( em mim ).

      LA 99/02

 

 

 

 

Quem Te Disse?

 

Quem te disse, Teresa,

que a vida é linda só porque não dura,

que o amor é belo só porque não cumpre?

Que a beleza da vida

é ela nem precisar ser bela,

quem te disse?

 

Quem te disse

que o coração acredita,

principalmente acredita

naquilo que sabe não ser?

Que o amor só consola

quando unha o que o feriu,

quem te disse?

 

Quem te disse, Teresa,

que dizer afaga a face

daquilo que nos falta?

 

Que o sonho

veste do avesso o que não somos...

Quem te disse?

LA 99/02

 

 

 

 

Saldo

 

Quando eu contava à minha mãe as minhas dores,

ela ficava com metade delas,

e eu saía com a sua mão

sustentando-me por dentro.

Hoje não tenho mais a sua mão,

mas lhe ouço na memória a firme voz:

“Paga ao homem

com a moeda do reino.

Ajuda ao pobre

sempre que possas.

E usa de misericórdia

com todas as criaturas.

Confia em Deus

para que Ele não te falte

naquilo que não possas.

Só assim vences o mundo.”

 

Assim tem sido, minha mãe.

Deus te abençoe.

LA 99/02

 

 

 

 

Família Unida

 

Saiu do seu motel,

foi buscar a consorte no cassino,

a filha no bordel,

o filho no seu emprego

de garoto de programa.

Almoçaram juntos,

jantaram.

Foram à missa.

Ao clube.

Depois de mais uns papos,

cada um voltou

ao seu mister.

Afinal, como diziam,

viver é um desafio

e lutar é preciso.

LA 99/02

 

 

 

         

Sem Véus Nem Eufemismos

 

Demônios existem?

A Bíblia diz que sim.

Nem é preciso muito tato

para notá-los

em nossos corações.

Os nossos pensamentos-sentimentos,

“ aí ”, os alimentam.

 

Têm nomes tais demônios:

um se chama Maldade,

o outro Ignorância.

Todos os outros são seus filhos.

Os demônios

são tudo o que desumaniza.

Nosso sentir-pensar-fazer

os alimenta

em nosso coração —

onde em geral procriam, passando

de geração em geração

em doenças-avós, em hábitos-família.

 

Por isso mesmo

o campo de batalha

do ser humano

é o seu próprio coração.

Batalhas bem difíceis —

tais entidades-nós

se disfarçam de anjos de luz...

Mesmo assim, cada um de nós

sabe com quem convive

lá em si mesmo.

 

O homem tem de vencer os seus demônios,

ou será devorado por eles.

“Sozinho”, jamais poderá com eles.

Para vencê-los

temos de estar ligados

com Aba-Pai, o Filho, o Espírito

na água viva da Palavra —

n'Eles seremos mais que vencedores.

Sem Eles, o homem é destroçado.

LA 99/02

 

 

 

 

Para Chegar

 

Para chegar

não use a dialética —

apenas saiba não saber...

 

Para chegar

não pense em obstáculos —

caminhe para lá.

 

Para chegar,

apenas rume para lá —

e ouse pensar e ver

que você já chegou.

LA 99/02

 

 

 

 

Compotas

 

Perdoa, Senhor, nossas besteiras

elaboradas com amor —

praticadas com orgulho

e guardadas em compotas

para repastos especiais.

 

Se temos ciúme delas,

Senhor,

é porque são

o que mais sabemos fazer.

 

Tais compotas, Senhor,

são a nossa deliciosa

fraqueza.

LA 99/02

 

 

 

 

Caso Parapsicológico

 

Saída de trás do tempo,

a cangaceira viu Tião e veio —

queria pontuar o desejo.

Seus dentes faiscavam,

mascando fumo...

Suas pernas se torciam

como cobra malmatada,

os seios latejavam

( meio século sem visitas... )

 A mulher mordia

a própria respiração

com cara de meio-orgasmo.

Tião encheu-lhe as vontades

e ela urrou a tarde inteira

e durante toda a noite.

De manhã, pagou a Tião o serviço.

Agradeceu muito,

deu um grito de guerra,

caiu no chão tremelicando

e virou um punhal,

que Tião passou a usar na cinta

para autodefesa.

Dizem que uma vez por mês

o punhal menstruava —

era quando

( sem que ninguém soubesse como )

Tião tinha relações com ele —

mas coisa de encher os sentidos,

de dar inveja e vontade.

LA 99/02

 

 

 

 

Em Quê...

Ou Quem?

 

Já que a glória do mundo

é areia movediça,

gloriarmo-nos em quê

ou quem,

a não ser em nossa herança

e no Dono dessa herança

que por nós já pagou

boa fiança?

LA 99/02

 

 

 

 

Na Barranca

 

Viver é estar na barranca

de todas as situações,

enquanto caudalosa

( mais furiosa que mansa ) —

a vida rola.

 

Viver é estar na barranca.

Na barranca do sonho.

Na barranca da amizade.

Na barranca do emprego.

Na barranca da família.

Na barranca do amor.

Na barranca de tudo

a que nos apegamos —

com as águas do rio

solapando os instantes.

 

Na barranca fazemos

tudo e de tudo —

inclusive pescamos

de espera:

armamos muitos anzóis

com que contamos fisgar

peixes-outras-situações...

com as águas do rio

solapando os instantes.

 

Viver é estar na barranca,

mas nem por isso aflito —

já que estar na barranca

é situação de todos,

e a maioria vive

de-li-ci-o-sa-men-te

sem consciência do rio

e da sua barranca —

enquanto as águas rolam

solapando os instantes.

 

Saber nadar é bom,

mas bem melhor

é construirmos

nosso rumo interior —

independente daquele das águas...

e sabermos de antemão

para onde estamos bracejando

bem antes de cairmos n'água...

LA 99/02

 

 

 

 

Entre Os Pés E O Sonho

 

Quando chegamos ao topo,

estamos no meio do caminho —

já que a assídua gravidade

está sempre a nos mostrar

os pés do topo.

Mas uma vez subidos

trazemos para baixo a altura,

de sorte que os pés do topo

agora nos sustentam lá em cima...

Nossas conquistas interiores

são degraus que metabolizamos

lá entre os pés e o sonho.

LA 99/02

 

 

 

 

 Possibilidade

 

 Foi pelo caminho das pedras,

 e voltou de helicóptero.

    Por quê? — lhe perguntaram.

    Fiquei com medo

de que as pedras se mudassem.

    E isso é possivel? — tornaram.

    Sendo impossível, — sim.

Já que a possibilidade

é o pensamento mágico

de a coisa ser.

LA 99/02

 

 

 

     

No Tempo

 

No tempo, amada,

que havemos de redescobrir —

serás a minha amante

que trai a si própria.

Eu, o traído que ama

e faz da amante

a amada redescoberta.

LA 99/02

 

 

 

          

Estratégia

 

... até lá estaremos todos mortos.

Não você, mas os da minha geração.

Aliás, a vida

só se faz de bonita

por puro ciúme da morte —

até que esta lhe tira a máscara

em que aquela tenta fingir

não ser um bicho que rói —

cheio daquela fome

que lhe impede de ver

nos opostos

a unidade conversível

e reciclável de tudo.

A beleza nos é bela

por impingir-nos o medo

do seu oposto —

talvez uma estratégia

do instinto.

LA 99/02

 

 

 

 

Troca

 

O marido a emprestou para cuidar

do vizinho em crucial convalescência.

Ela aplicou-lhe tanto esmero e ciência

que logo-logo ele já estava a andar.

 

Logo-logo por toda a adjacência

ouvia-se uma voz cantarolar...

E entre o brilho de festa em conivência —

os dois num abafado gargalhar.

 

Após três meses de leais cuidanças,

o dono da mulher foi lá buscá-la.

E falaram de amor e de finanças...

 

O marido voltou com uma mala

contendo coisas que ele precisava.

O vizinho ficou com o que sonhava.

LA 99/02

 

 

 

 

Morte Por Ababacamento

 

Enquanto vaginava com o consorte,

a cabocla troncuda —

de coxas de baobá

e seios de cabaça,

sente-se muito ofendida

pelo infeliz marido

que — num ímpeto romântico —

a compara com um animal

que aqui não digo não, senhor.

 

O diabo da mulher,

com o “zás” de um raio,

mete-lhe as mãos na nuca

e lhe enfia nariz e boca

lá onde há bem pouquinho,

suspiroso, trabalhava.

Dá-lhe uma chave de pernas

e, comprimindo-lhe a nuca —

segura-o qual sucuri

engolindo a sua presa.

O pobre, assim afogado,

luta, arranha, bate palmas

e — com a ponta dos pés —

batuca desesperado

sobre um caixote de borco

que servia de criado-mudo.

 

Tamborila que tamborila

( talvez como índio ou outro gajo,

ao mordiscar da lua cheia —

chamando a jovem mulher

de seu amigo do peito

para uma desavença genital

sobre a grama do pasto ).

.........................................................

 

Tamborila que tamborila

todo afogado, enlaçado

por rolos de sucuri.

Vem-lhe a mãe, nada consegue.

Dois vizinhos, — também nada.

Um garotão e um policial —

e nada, nada de nada.

Acorrem muitas pessoas —

a fusão era medonha...

Uma velhinha mais o padre

conclamam todos a rezar:

a pedir ao Santo do Agreste

libertação urgente.

..............................................................

 

O diabo da sucuri

mais e mais engole a presa

que pouco já esperneia...

numa semi-sororoca

de roupa sendo ensaboada...

Os pés já não tamborilam...

A presa já não se mexe...

O padre grita: Acabou.

A velha: Seja bendito o Santo —

Deus libertou sua alma.

...............................................................

 

Horas depois, no velório,

um garotão machudo,

machudo e inconformado,

com um riso de punhais —

dentes medonhos, afiadíssimos,

pergunta à mãe do finado:

Mas como pôde, senhora?!!

A mãe, adivinhando-lhe

o final do raciocínio,

responde em poucas palavras:

Manecão, meu defunto filho,

era banguelo, seu moço,

de todos os marfins.

O garotão, enfim, sossega:

“Tá explicado, Mãe de Deus!”

LA 99/02

 

 

 

 

Jeremassis

 

Machado

é um exemplo de sábio

desagradável

a mostrar ao leitor

o que este pensava haver

não também em si —

mas só nos outros.

 

Jeremias de alma-coração,

mostra o humano do avesso

e propõe ( nas entrelinhas )

que esse “desagradável”

seja visto em cada um

por cada um.

Prende-encanta o leitor

porque não fala de ninguém

a não ser do leitor.

LA 99/02

 

 

 

 

No Mínimo

 

A melhor trilha

é a do bem.

Quem não sabe o que é o bem,

ou é cínico

ou perdeu o sentido da vida —

o seu rumo interior

e exterior:

pois já não sabe

procurar

nem achar.

O homem tem de saber

o que é o bem.

LA 99/02