REMOALHOS (Textos 1) Laerte Antonio
Remoalho: bolo de alimentos que os ruminantes fazem retornar à boca para ser remoído ( Aurélio
Do Outro Lado Da Noite
Aquela alegria da infância ( rica de não saber ) pisando descalça a luz das manhãs: u-ru-bu-an-do em tobogãs de azul... Pede ao teu coração te dê a bênção de ao menos mais algumas vezes viver aquela alegria ( rica de não saber ) — ainda que seja pela chuva fina, andorinhando pela tarde de esperanças que não aconteceram.
Sorve aquela alegria em vários tons de vida, e fortifica-te com ela — que vem das mãos de Deus. E não temas: teu coração tem a chave para abrires a porta do outro lado da noite. LA 99/01
Pão Do Deserto
Não te impacientes: o que não sabes te virá do deserto — ele fará lembrar tua alma. Lá no deserto ( em ti ) sopram os ventos de todos os futuros. E o Espírito modela ( em ti ) a verdade que — uma só — assume todos os tamanhos. As pedras te assarão do pão que hás de metabolizar em corpo, alma e espírito.
O deserto te fará a tradução do mistério em murmúrios de luz e sussurros de sombras.
Tuas sandálias não se gastarão pelo deserto de ti mesmo. E as areias que pisares se tornarão no maná da tua fome — do qual não guardarás para o dia seguinte: viverás da verdade assimilada a cada dia — e esta será sempre o quanto podes suportar.
Não temas nunca o deserto — ele te traz a vida pelas frestas do teu sonho. As areias te ensinarão que mesmo as pedras se renovam e que anotam entre os ventos as pegadas da vida.
Do deserto te virá tu mesmo: enfim transcendido em nova criatura.
O deserto te abrirá a arca do teu ser — da qual irás tirando coisas novas e velhas.
No deserto ouvirás a voz que ensina a todas as células o caminho de volta para a vida. LA 99/01
Os Dois Lados
Que vais fazer com tanto brilho, com tanta luz — sem o equilíbrio das sombras?
O brilho sem a sombra seria comparável à inteligência sem o sentimento. À riqueza sem a saúde para saboreá-la.
Como entender as coisas sem as trevas? Como entendê-las sem a luz, se a vida traz em si as duas?
O dia e a noite têm as mesmas tintas, diferenciadas pelo charme das sombras. LA 99/01
Modéstia De Robô
Certamente não precisas ter os olhos azuis nem competir em magreza com o teu cinto.
Nem precisas ter os seios como dois coelhinhos olhando para cima. Nem o umbigo muito fundo para servir champanha. Nem o glúteo como duas bolas oficiais. Nem a língua... Nem o contorcionismo de uma serpente.
Isto porque, minha amada, sou apenas um robô com uma tesão de ferro — programado para injetar e fixar-lhe no útero três bebês especiais. Daqui a três gerações conquistaremos o mundo. LA 99/01
Vasos Abandonados
Pelas pegadas de te lembrar — sempre um caminho muito tortuoso, uma estrada sem acostamento com passagem só para um...
Pelas pegadas da tua voz já é mais fácil ir até nós dois — um eco manchado de luz respinga cômodos escuros que vão dar numa sala com muitas flores retorcidas, impiedosamente secas e assustadas... em caríssimos vasos, e abandonadas.
Pelas pegadas da alegria nenhuma rua já leva a ti — a vida já não nidifica aquela graça de sonhar. LA 99/01
Momentum
Enquanto o “não” puder ser opção, o homem adia a hora de se encontrar consigo mesmo e ver que “todo o problema” não é o mundo nem os outros — mas o maior problema que ele tem é ele mesmo: para si mesmo e para os outros. O que fazer “consigo”? Para isso é preciso ter aprendido a ser honesto ( consigo mesmo ) e original ( também consigo próprio ). Um momento de extrema solidão, em que a criatura faz o parto de si mesma e sente que viver se transforma em chamado. Um chamado interior — lá do norte do ser. LA 99/01
Transmutação
Ali pelo entardecer, criatividade e competência podem se entrelaçar — mas só depois de muito estudo, de muita luta em que a expressão consiga se tornar simplicidade: um jeito de dizer descalço por veredas que se abrem por dentro das palavras. LA 99/01
Valor De Transcendência
A Grande Diferença está entre aquilo que rola pelo mundo e o que você passou pelo tamis do seu viver — e foi incorporando à consciência eternamente aberta para a luz. O homem ( se ) vale o quanto está liberto — do mundo e de si mesmo. E esse “valor de transcendência” é a sua ousada vitória. LA 99/01
Lófios
Vejo os homens-meninos na gula de dirigir e digerir o mundo. Sem preparo nenhum, a não ser o da Astúcia e do Amor-Próprio ( de nível mudano-universitário ) — eles dirigem o mundo enquanto educadamente o digerem. São os lófios do Planeta-Água. ......................................................................... São amados e temidos, sobretudo invejados e imitados pelos peixes-piolhos — seus amigos e cúmplices pele-com-pele. LA 99/01
Vendo E Aprendendo
Não tenho pena ou mágoa dos demagogos. Apenas venderam a alma — que não têm — ao mundo ( que empresta ao Fundo das Nações ) para os povos pagar ( com as suas hemácias ). Apenas optaram por fazer o monocórdio humor-sério, que até faz rir de raiva.
Nenhuma inveja ou ódio de tais gulatras que comem carne humana e palitam os dentes com a hipocrisia.
Nenhuma inveja ou dó desses hominibais que degustam com glamour a Terra inteira.
Nenhuma surpresa ou susto de tais biófagos, cujas mandíbulas mastigam, com charme, o lugar na vida de bilhões.
Tais bípedes preciosos são mais servis que a servidão que impingem aos excluídos. Servis porque decoram e papagaiam o Script que o mundo escreve de geração em geração — nepotismo genético-social.
Tais mamíferos charmosos precisam, devem existir. Alguém deve representar a Peça e fazer reproduzi-la. O que é triste é passar pelo mundo sem ter olhos de ver o seu Teatro. LA 99/01
Pelo Tempo
Aio, escudeiro, companheiro e coveiro — o tempo é o mordomo da vida. Ponte entre o ser e o ser-se, o tempo é o fiel companheiro na jornada da criatura. É a substância com a qual o indivíduo se constrói interiormente degraus e abre veredas em si mesmo para encontrar o seu caminho na confluência de outros tempos e caminhos.
Pelo tempo subimos e descemos por nós mesmos através de ramais que nos unem com os que estão e com aqueles que já se recolheram. Pelo tempo somos todos Ulisses através de nós mesmos. LA 99/01
Autodó
O ego dolorido, e com “razões” ( rações ) diárias para doer-se — que é que pode colher senão o vácuo de sentido?
O autodó fornece tijolos e argamassa para o indivíduo emparedar-se. LA 99/01
Flores Molhadas
Estendo a mão ao lado de lembrar-te e colho flores ainda molhadas daquelas chuvas tão adolescentes que acariciavam os dezembros e adorávamos tomar. Flores ainda molhadas... espelhando o brilho corajoso e quente de tenros sonhos, risos-esperanças... Colho-as pela ventura de colhê-las, pela alegria de vê-las umidamente intactas...
Uns guardam euros, dólares, mansões, navios, impérios... Eu guardo o teu sorriso — imperturbavelmente jovem, destemidamente lindo — entre as flores que colho em eu lembrar-te. LA 99/01
Banana Verde
No passado tratei-te mal, Zilpata. O passado foi imaturidades... Vou esperar seus frutos no futuro: quem sabe ali já estarão maduros, se eu puder trabalhá-los no presente.
Imaturos, Zilpata, como bananas cujo cacho desponta: só podia restar em nossa vida esse sabor de mágoa-adstringência — mais ingênuo que riso de bebês.
Nós somos o que somos, Zilpata. E a vida é o que ela é: não distribui felicidades — quer que aprendamos a construí-las e quer que os nossos pés façam a estrada. LA 99/01
Sonhonautas
Os passos do ser humano são interrogativos em direção a um ponto que só existe no centro do nosso ser. Suas visões se interrogam cinético-experiencialmente em visões-revisões de introvisões-supervisões num ver e ver-se em que a pessoa se identifica com o Verbo pelo qual fora per-so-na-da...
Os passos do ser humano são interrogativos em direção a um porto — que é nave em movimento entre o partir e um cais que só existe porque o sonho o conhece.
O mais é navegar. A bússola e a incerteza de chegar estão na mão do Capitão, que o coração conhece e hospeda em sua casa de brisa e azuis. LA 99/01
Poema Em Dois Tons
A vida não se explica nem dá satisfação: apenas faz viver — obriga ser levada avante. Talvez porque não saiba que a criatura não dispõe de outro recurso senão vivê-la. Sim, porque, se soubesse — haveria de ter vergonha de ser tão prepotente: impor-se a qualquer custo.
Nesta altura, susto a pena ( isto é: o digitar ). Meu coração me diz que eu não sei o que estou dizendo... Me diz que o ser se sente mal para parir-se maior e que a finalidade das coisas existe logo ao lado do seu entendimento. LA 99/01
Linhas Amarelas
( Você não, mas seu amigo está precisando ler estas linhas amarelas... )
Quem não esquece o que perdeu quase sempre acaba por perder bem mais. Quem não se ajuda honestamente ( ou já não pode se ajudar ) a elaborar as suas perdas — vai perder ainda mais com terapias sem fim e mais doença e sofrimento.
A vida é tão maravilhosa quanto imcompreensívelmente fria: ...”ao que tem mais ainda será dado, ao que não tem ainda mais lhe será tirado”. Quem disse isto sabia o que dizia. LA 99/01
Teres E Seres
Nosso mal é enfiarmos na cabeça que temos isto, isso, aquilo e Aquiles... Pode ter alguma coisa quem não é dono nem da vida que o sustém? Nossos teres e seres são apenas instrumentos que a vida nos põe nas mãos para aprendermos a lidar com suas muitas realidades. Só pode perder quem pensa que tem. Só pode se enganar quem pensa que é. O mais é ver, não só para crer mas também para descrer. LA 99/01
Dor
Pensei que tivesse ou fosse alguma coisa, e lutei e lutei para ter mais e ser — até que vi que nunca tive senão a dor de ser o que não tive e ter o que não era, bem, ali, sobre a palma da existência, num cantinho de mim. LA 99/01
Escrever
Escrever é só um modo de repetir que não posso dizer o que é a vida. Só um modo de dizer que não sei amar nem amar-me. De dizer que sonhar sem ter mãos de fazer é sêmen ou ventre estéril. De dizer que não finda nunca a caminhada rumo à praia onde estão construindo o barco que já partiu há muito e muito lá em nós. Escrever é só um modo de eu esperar-me naquele porto para o qual parti faz tempo. Um porto a que chegar é só um modo de partir. Escrever é recriar mitemas para aquela jornada em nós em que aquele Ulisses somos todos, todos nós. LA 99/01
De Ninguém
Vou pôr um cinto de castidade, não na frente ou atrás dela, mas nos seios — as duas colinas onde repousa aquele sonho de quando a vi primeira vez.
Pensando bem, por que o cinto, se a coisa pode servir a muitos? Estão cheios de vinho ( os seios ) e ela dá de sonhar a quem ( ela ) quiser.
Melhor pôr o tal cinto lá no coração dela — para o qual ninguém olhará ( nem dará importância ) e por isso, talvez, ela nem venha a importar-se. Por fim nem lembrará que eu lho pus ali. E por não se lembrar, se esquecerá de existir — com todas as delícias de já não ser, pela intuição ( disfarçado ) de já ter resguardado o que eu sabia de ninguém. LA 99/01
Dócil Argila
Quando você sente que o momento é seu, então pode levá-lo para a tela, para a pauta, para o sulfite... Ele é seu. E o instante é uma dócil argila, obediente à mão do seu fazer-criar: tudo quanto — agora — lhe passar pelos dedos terá a forma do seu querer, os contornos dos seus sonhos, a libido da sua expressão. Apenas colha espontaneamente o momento fazendo nascer, em contrações pós-eróticas, a obra, — vontade de Alguém acoplada ao sonho que visitou você. LA 99/01
Tutu De Amor
Amor é bom bem cozido, malpassado ou cru. Carne de amor só não agrada se é pescoço de urubu. No mais, amor é comido ou melhor: degustado, e não se compara a nada: tudo o mais vira angu — e angu sem rabada.
Nada tem o sabor nem o macio esplendor de um belo tutu de amor.
Se dizem, terno amor, que a carne tua nem com a da gazela se compara, é porque a tua agrada mesmo crua e a daquela só muito bem-passada. LA 99/01
Ousar
Os temporais têm desabado, a correnteza anda feroz. E tu, amigo, — te encontras bem no meio do rio?
Que fazer, companheiro, senão comprimir o pé na fenda da tua barca e tentarmos atravessar? Muitas vezes o ousar é tudo o que podemos. LA 99/01
Canção De Ninar Abandono
Se ela se foi com outro, dê logo graças a Deus por ter ido para outro o que não era seu. Se sendo às vezes cansa, não sendo só atrapalha. Melhor nada na mão do que aquilo que não quer ser. LA 99/01
Vocação Para A Miséria
Antes a crítica por ter que o elogio por não ter. Durante séculos e séculos os chamados intelectuais foram incentivados ( e programados ) a viver de meldelecas — mas com um riso inteligente... Criou-se o Narciso mendigo para os sempres dos améns. Era só uma questão entre astúcia e inteligência. Venceu a astúcia. E a vocação para a miséria veio habitar sob o teto do homo intellectualis. LA 99/01
Graça
O amor é de graça, amada. E ensina a dar de graça o que de graça recebemos. Fazer de graça o que de graça nos é feito.
A vida é graça, amada. E a Deus sempre aborrece a auto-suficiência.
A vida é graça. Só não o é o ofício ( que temos ) de aprender — isto é: que tudo é graça. LA 99/01
Atrás Das Estações
Esperei por você atrás das estações com uma rosa azul ( que lhe porei entre os seios ) e um lindo bem-lhe-quer na lapela do meu coração.
Sempre atrás das estações esperarei por você — nas mãos as flores mais loucas, mais loucamente vermelhas com que Deus já permitiu um coração sonhar.
Esperarei por você atrás das estações — lá onde a rosa azul ( que lhe plantei ) há de ser sempre um consolo — um gesto de sol em flor ao longo, amor, dos seus bocejos. LA 99/01
Sem Véu
Dize-me o que tens pensado e falado e dir-te-ei como estás. Bem difícil assumir que o que somos seja construção nossa. Em geral preferimos sentir-nos vítimas — o que, além de cômodo, nos exime. LA 99/01
Reconstrução
Abre janelas em teu quarto — entre a luz e a brisa fresca. Entre a vida a cantar por todas as tuas células. A água potável da música regue amorosamente as tuas emoções. E derruba, sim: derruba ( lá em teu coração ) as paredes do teu quarto — haja pontes entre as pessoas e trocas, todo tipo de trocas de todas as vitais necessidades. E não te esqueças de tomar ( a qualquer hora do dia ou da noite ) chuvas e chuvas de alegria ( que vêm dos lados da infância ), nem de sentir o aroma de luz e azul que vem da graça de viver. LA 99/01
A Calma Da Rosa
Um pé na morte e uma das mãos segurando num cipó muito frágil. A vida? Não foi nada daquilo, nem nada disso: foi o que foi — como a vida gosta de ser: deliciosamente ilógica e doída por dentro.
A vida? Sei lá. É pra saber?
Vim a saber ( de lado ) que toda a calma da rosa descansa em seu não saber. LA 99/01
A Vida Tem A Chave
Saber o tamanho do universo fora saber o tamanho do ser. O universo é o ser enquanto metabolizador de gamas de consciência. O ser é o universo enquanto caminhos recorrentes ( interiores e exteriores ).
Tanto o universo como o homem não servem como são — porque não são a não ser o que sonham. A realidade é só um esboço que a vida vive a alterar. A consciência é um vinho cujo odre é ela mesma. Aquilo por que o homem anseia é feito à medida de Deus. E aquela água que corre para a eternidade passa ( sem que muitos suspeitem ) por dentro da criatura. Somos o lá-aqui, o ontem-sempre de um sonho que sonhamos e que nos sonha. A vida tem a chave. O mistério tem todas as provisões. LA 99/01
Engaste
Apoiado na escrivaninha do mental, transubstancio o instante em coisas-contos que me contem e recontem a minha história que se urde e vive no sem data do velho drama humano.
Sou uma arca de que vou retirando coisas novas e velhas. Meu tema é o ser, o ser que mora no homem e faz a estrada com seus pés. Sua paisagem interior ( com veredas que o levam para fora ) é o que me importa. O homem enquanto construtor do seu destino — enquanto ponte ( em construção ) de sua travessia e transcendência. O homem — esperança de superar-se, aprendiz de si mesmo. LA 99/01
Amor Bobo
Segundo Tião, amor pra lá de bom é o amor bobo — que é bobo e adora ser assim. E o mais doce do amor é justamente sua alegre bobeira.
O amor não vê ( ainda segundo Tião ) senão o que não foi escrito. Quando se põe a ler e ver — não é amor, mas professor de lógica: infeliz e bebum.
Suas rosadas bobeiras ( teima o nosso Tião ) são toda a sua graça e charme. Quanto mais abobado mais precioso o amor. Amor bobo é coisa de dar inveja e muita água na boca. LA 99/01
Terrestre
Por vezes, amada, é bom sentir um amor mais denso, uma ternura terrestre. Um amor de carne e osso: um sorriso, um olhar que sejam ponderáveis — de modo a verbalizar e a fazer tátil a sua companhia.
O toque das mãos por vezes é mais divino que as sinfonias da luz... A xícara de café, por vezes mais confortável que as palavras bem arranjadas de todas as filosofias, de todas as religiões.
O amor, amada, por vezes precisa se fazer terrestre para viver o céu. LA 99/01
Revisão
Tenho deixado pássaros fazer ninhos na minha cabeça. Não tenho espanado o meu sentir — de modo que tem levado sujeiras para o meu coração. Tenho permitido ao autodó enredar-me em ressentimentos. A mágoa e um certo medo de lidar com o mundo me levam muitas vezes a me desestimar. Tenho, às vezes, bloqueado em mim a água viva do verbo — me tenho negado a mim sentir-me aquele vaso do amor vivente que liga o ser com a Fonte e lhe preserva a vida — fá-lo sentir Deus-sendo-o em seu aventurar-se a Ele, por saber o caminho do seu amor. O simples fato de sabermos de tais pecados —, que enfraquecem o humano em nós —, já é uma providência implícita que endireita as nossas veredas e reconstrói a estrada. A revisão do ver limpa as retinas e nos leva a vindimar nos campos intuitivos da realidade. LA 99/01
Nossa Aventura Em Nós
Seja gentil consigo mesmo. Tenha paciência com você. Tolere-se, até que aprenda a amar-se. Amando-se, o outro não lhe será problema — será antes um livro em que você lerá a própria história: ele lhe mostrará coisas profundas que nem suspeitava tê-las em você. Com tais revelações será impossível não amar ( sobre todas as coisas ) Aquele: nossa aventura em nós. LA 99/01
A Hora E O Salto
Enquanto você não dá o salto ( pelo qual talvez treina sem saber... ), o salto de humano para sobre-humano — que fazer senão ir-se preparando até que tais exercícios se tornem conscientes?
Que fazer a não ser construir a serenidade e uma paciência de pedra, até que a hora sangre seu mel sob a muda língua?
Que lhe resta, enquanto cumpre o dia-a-dia, senão viver de fé em fé, de esperança em esperança, de transcendência em transcendência — até que brilhe a hora, a hora e o salto lá dentro de você? LA 99/01
Abertura
Às vezes nos abrimos como Rubble para o Infinito: tanto e tanto que temos a sensação de sê-Lo e comungar com seu poscênio... Vemos a criação em seu perpétuo recriar-se por todas as nossas células — conversando consciências maiores: gamas interdimensionais de vida... Nesses instantes podemos lapidar a aparelhagem... sentir fluir pelos poros a bênção vivificante do Coração da Vida. LA 99/01
Alma Do Vôo
Muitas vezes precisamos apanhar a ave pelas penas — a racionalidade não tem mãos: é preciso chamar pela intuição — o conhecimento direto, o entendimento sem Descartes. A intuição é o caminho pelos ares ( estágio cogntivo superior ) — apreende a coisa em seu vôo, molhada de destempo. A intuição, alma do vôo, mostra sem precisar ir lá. LA 99/01
Feitos
Mágoas, ódios, ressentimentos ele os ia pondo no freezer, e enterrava os inimigos num cemitério que construíra lá num canto da memória.
Tudo ia bem até que um dia faltou ''força'' ( deu um apagão lá nele ) e desabaram temporais e temporais: água grossa rolou, sulcou, esburacou, revirou o chão de sua fazenda... Quando ele pôde ver, viu-se rodeado de decomposições... e seus densos, pegajosos odores.
Dizem que pior que ver-sentir tal cena foi saber-se dono de tudo aquilo. LA 99/01
Pedido
Quando chegar, Senhor, a hora, dá-me aquele desassombro de um animal que não sabe... E fica, ó Pai, com a alma e o escombro. LA 99/01
Dor Suja
Tua lembrança, resquícios de orgasmos e espinho em carne-alma.
Tua lembrança teima em ser mais que perfume — quer-se flor em vaso com água junto à porta de entrada... Nego-lhe vaso e água deixando-a ao lado esquerdo da mesa. Murchará, secará por não ser mais desejada, se bem que ainda amada.
Tua lembrança desfolha sobre o sulfite a agonia convulsiva de sonhos envenenados. Uma dor suja em eu lembrar-te. LA 99/01
Bela
Era bela como um raio direto na cabeça de inimigo implacável. Foi Vidalvo vê-la, e amá-la. Amá-la exclusivamente como a mais bela de todas. Amá-la eternamente entre o piscar dos segundos.
Era bela como um chute que faz gol do meio do campo. Bela como receber alta dez dias após ser degolado. Bela como saber que não se é soro-positivo como dizia o primeiro exame... Bela como ser corno de alguém que já morreu. Bela como terrível fome por motivos estéticos. Bela como o rútilo machado que desce entre os membros da vítima que estava atada aos trilhos... Bela, duplamente bela, como roubar o cônjuge de quem já não o suportava. Bela como ver o pai morrer, a mãe morrer, os irmãos morrerem — de pura felicidade.
E a bela Arabela lhe foi eternamente bela — até que Vidalvo viu que a irmã dela era ainda mais bela. LA 99/01
Do Limbo À Luz
O amor ainda é limbo, mas é de exercitá-lo que ele se vai fazendo água corrente. A solidariedade constitui o melhor exercício para fazer do lodo água potável. De balbucio em balbucio chegaremos à linguagem fluente da nossa humanidade, e no conjunto, cada um de per si, iremos escalando nosso sonho maior: aquele que nos levará até o céu em nós — do limbo à luz. LA 99/01
Escritor-Nobel
Perguntado por que fizera e habitava uma casa de tapume — disse que por se saber a si mesmo em constante construção.
— Mas todos não estamos em construção de nós mesmos? — indagou-lhe um cantor. — Todos não, só os que se sabem no processo...
Aproveitando o clima, uma jovem jornalista lhe ferroa a pergunta: Quer dizer que a única parede que separa o senhor dos moradores de barracos é a metafísica?
— E onde o senhor haveria de apoiar os pauzinhos de sua filosofia? LA 99/01
De Repente
De repente, por uma porta da consciência, fiquei chocado comigo, com o mundo... Não sabia que éramos tão miseráveis. Os edifícios da razão, do sentimento... eram casas de palha — queimados, estrangulados pela outra das mãos que os erigira... O beijo, o escarro vinham de um só lugar — de dentro do coração. A santidade, a crápula eram extremos do caminho do meio — ambos tão cheios da mesma coisa ( não obstante trabalhada de maneira diferente ) ... De repente senti-nos ( a mim, o mundo, os outros ) pateticamente miseráveis. Um teatrinho triste e sempre já-visto, saído como minhocas dos poros do tempo. Cansaço e nojo. Nojo de mim, por mim, pelo que fizera, pelo que estava fazendo, por tudo o que faria e iria certamente fazer. De repente só tive forças para pedir perdão a Deus pelo que eu era e que me desse muita humildade verdadeira junto com a graça de eu me ver um dia uma pessoa renascida desses escombros. E, claro, todos os que lhe pedissem pudessem se livrar das embiras de si mesmos LA 99/01
Não Faças Doce
Das coisas que conheço, amada, amar-te é o que mais presta. O mais é essa coisa choca que a gente tem de suportar porque os que não o quiseram não tiveram nada melhor. Coação das bravas, amada: é isso ou isso.
E já que não tem jeito, vivamos, e façamos que isso possa ser aquilo e aquilo, — Aquiles mostrando a formosura do calcanhar à Helena, que Páris soube flechar. ...................................................................................... ( Quem não é ou não tem — inventa. E esse é o dom maior que foi concedido ao homem. )
Vive, que a vida é o só que te emprestaram e tudo o que te deram. Faze dela uma limonada. Tem gelo no freezer e açúcar diet no armário.
Tudo o que tens é viver. Aleluia! Vive e não faças doce. E quando chegar a hora, morre de tal maneira que a vida fique enciumada. LA 99/01
Canção Zen
Come-descome tua comida. Bebe-verte a tua água. Expele teus flatos. O mais? Vem embutido no viver.
Faze o que podes, o que não podes, — compra feito, não podendo, encomenda ao Noel.
Come, descome. Bebe, verte. Libera teus flatos. O mais? Está no que nem sabes que sabes ou fazes...
Jamais te esqueças de rir bastante, gargalhar gostosamente e saborear a ventura de não precisar ser venturoso. LA 99/01
De Mãe Pra Filho
Nesses tempos atocaiados, encosta-te na parede: corre os olhos do centro para os lados, e canta pelo nariz uma canção qualquer que fale que bem maior é O que está em ti do que o que anda pelo mundo.
Nesses tempos atocaiados, apenas vira as costas ao amigo quando o gajo estiver com o caixão lacrado. Só dize ao padre que os seus sermões são inspirados... Ao pastor — que tem razão... Ao espírita — que a reencarnação é a maior prova da justiça de Deus. A ti mesmo — que um coração humilde e quebrantado tem sempre a palavra de que precisa. À polícia agradece pelo equívoco ( se houve ) e pela dureza com que te tratou ( se assim foi ). Aos “notáveis” e aos “donos” — não há de te custar ajeitar um sorriso com aquela discreta inclinação... Se abordado por um figurão para ouvir uma piada — sai deixando um rastro branquinho de simpática risada. A um “tapinha”, retribui com outro e um sorriso. A um elogio, com dois: curtos e alucinógenos. Ante o olhar, gesto ou palavra dura e impositora — passividade ( estudada ) e alienação. Foge aos encômios — quem faz um espera três, e o lado sadio disso é um só — fazer rir ( lá no mental, é claro ).
Quanto às mulheres, o problema seria não havê-las. E saibas de cor: elas adoram os bobos mas jamais gostam deles.
Reserva um pouco do teu tempo para te reunires ( física ou mentalmente ) com aqueles que sabem que a vida cobra transcendências.
Esses tempos atocaiados têm o seu lado belo — estarmos vivos. Toma cuidado contigo ( tua mala está pronta ) e cuidado com o mundo. Usa sabonete líquido. Se cai, não tens de pegar.
O humor, o riso, a ironia ajudam muito.
( Pus na mala um pedaço daquela goiabada e algumas camisinhas. )
Tem misericórdia de toda criatura. Ajuda o pobre. Vive e ajuda a viver. Aprende a perceber a graça na tua vida e a agradecê-la. Faze o que deves e o que gostas de fazer com um sentimento de verdade. Confia na vida — ela traz em si o mestre e oferece o discipulado do viver. que flui da graça. A esperança fortifica e faz as noites menos longas. Há uma moeda que deves a todos e a ti. Jamais percas a intimidade com a Fonte. O amor a Deus, ao outro e a ti constrói o saber para onde... A solidariedade dá sentido à caminhada.
Muita prudência. Alimentação conscienciosa. Uns dois dedos de astúcia e muita dedicação: pra que o dinheiro encontre a calha do teu bolso.
( Sebastiana já pôs as coisas no porta-malas e deixou a chave no contato... )
Telefona em outras ocasiões além daquelas em que pedes dinheiro, em que choras as tuas dores ou desejas boas festas.
Deus te abençõe, meu filho. LA 99/01
Eroticus
No strip-tease da mídia, vai-se tirando bem devagarinho a roupa da notícia. Quando despida, já não tem muita graça — o orgasmo já se deu. Morto e frio, o sêmen. LA 99/01
FFFFFFFFF
Fama-flama-flâmea-fama Flores-flamas-flores-flatos Fama-flores-flama-flatos Flanam fluidas, flavas flamas Flâmeas formas, fluida fama Fléxeis flébeis flóreos flancos Flambam formas, famas, flores Fluem fluidos, flácidos flatos Flocos flanam, fluxos fluem Fluida-flórea-flameamente FFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF LA 99/01
Remoalhos
O ver tem seus encontros com o rever, seus remoalhos de realidades — o reciclar constante de verdades desfiando e refiando em seu tecer.
O mundo se recria pelo ver — sim: faz-se outros em tais diversidades que se vão transformando em unidades desdobradas também pelo rever.
O ver é a consciência autovidente, puxando para fora o inconsciente, criando os seus degraus e patamares...
Degraus e patamares sempre novos por onde o ver é pássaro nos ares e o vário canto verde nos renovos. LA 99/01
Estavam Salvos
Cuspi as últimas lágrimas sobre esse amor recortado de adagas-mentiras. Um pavimento inteiro de sonhos desmoronou. Tijolos ressonavam bêbados de reboco, poeira e a feitoria litúrgica do tempo. Os sinos da esperança repicavam nunca-mais. Os da fé repicavam sempres com alevinos nadando nas bordas matinais dos sons. ( O nada de ossos se recompôs em nervos, carnes e alma recém-soprada de divino.) Aves com bicos de céu diziam nos seus cantos que Deus não dorme, que Deus não dorme, que Deus não dorme ( quando ousamos saber que Ele não dorme ). Meus escombros estavam salvos. Lágrimas de alecrim cheiravam n'alma como o despertar de uma estrela. LA 99/01
Linhas
O nexo de aquela dor doer na ponta de todos os espinhos era eu sabê-la nossa — minha e de toda a humanidade. Doía do limbo das idéias aos sussurros de pensamentos-luz. Dor sem noção de infinito... retalhava o nosso sono de gritos cor de sangue e angústia bezuntada de espera. Dor sem mãos, sem lábios. Sem mãos de suplicar, sem lábios de murmurar a prece. Machucava o espírito da carne com pontas de bambu. Era minha. Era da humanidade. Seu nexo era eu sabê-la nossa. — Quem poderá — gritei — salvar-nos? Nisto, minou luz e água viva de todos os poros do silêncio... lá no silêncio em nosso coração. Minha alma então exclamou sem nenhuma dependência da minha língua: ''Eu sabia que estavas mais perto de nós que a carne que nos veste. Salva a mim e as minhas irmãs!'' ...................................................................... A dor não cessou, mas já não havia nenhum desespero em sofrê-la. LA 99/01
Paisagem
A luz da manhã relincha entre potros que irrequietamente pacem.
O céu é de um azul tátil cheirando a longidões da infância. Com a boca suja de manga, novembro rega o verde que mais parece um grito.
Carros deslizam no asfalto que ( agora ) está molhado e borrifa brancuras.
Estar vivo é bom, embora saiba que o que me faz dizê-lo soa quase mentiroso — talvez medo, angústia da morte. LA 99/01
Gajo, Gajo!
Ao inimigo, ao invejoso — o desprezo perpétuo. O pó do pó do esterco. Pensar nele ( ou nela ou neles ) é não gostar de si. Escutou, coração? É surdo esse gajo. LA 99/01
Remoagem
A esta altura, a vida vai e vem — do bucho à boca: remoalhos entre o tempo trifurcado.
Resta saber que é que se ganha com esse remoer — uma vez que é o próprio ser que se faz a substância dessa remoagem.
Que tipo de loucura será essa de querer reciclar a derrota do tempo em vitória? LA 99/01
Lá Fora O Vento Insiste
Ouves?... Lá dos lados da infância os violinos de ventos vibram entre o trigal maduro canções cheias de um brilho assombrado...
Os sonhos interrompidos dos suicidas uivam sem corpos palavras prateadas de frio amor. Suas vozes sem bordas abrem-se em abismos onde despenham estrelas e amadas no apocalipse de seus corpos nus cheirando a ervas coniventes que hissopam seu dourado despudor.
Lá dos lados da infância os ventos tocam violinos para as crianças dormir e os adultos poderem desfolhar seus desejos sobre o lençol da noite.
O escuro do silêncio ressona como um cachorro velho, e os amantes aproveitam para não dormir. Lá fora o vento insiste — esfrega o inquieto corpo na tumidez da noite. Ouves?... LA 99/01
É Verdade A Mentira...
Só quando faz amor com o vizinho é que ela extrai de dois a três diamantes... O seu marido a espera com carinho e café com bolinhos fumegantes.
Às quintas, ele é quem permuta o ninho pelo da secretária em seus arfantes, ágeis molejos sobre o branco linho... Sua esposa o recebe como antes.
Tratam-se bem, mui educadamente — trocam flores, palavras de elogio... Amam-se pelo amor que não se sentem.
Um busca que o outro ponha em sua mente que — sendo a vida um invisível fio — é verdade a mentira que se mentem. LA 99/01
Os Sapatos
Seus sapatos gemiam de cansaço enquanto ( em sonho ) Hélio, pela escada de seu porão, chegava até a sacada de um horizonte ainda um tanto baço...
Que divisar nesse nevoento espaço sem o dia soprando em clarinada a sua luz ( em sonho ) sempre adiada manquejando nas sombras passo a passo?
Sempre um dia ( num sonho ) que não vem a esperar quem não vem sem saber bem qual seria , se viesse, o seu compasso
a descer junto a nós para o porão com os sapatos mortos de cansaço, e o sonho iluminando a solidão... LA 99/01
Programações
Meninos amavam canivetes. Meninas adoravam bonecas. Agora, já nem sei do que gostam. Mas para que saber se já não sou criança e as que agora o são foram programadas para outras coisas?
Outros tempos, outras porcas e parafusos. LA 99/01
Fazer-Se
Uma pessoa se faz de muitas outras pessoas semeadas pelo tempo. Uma pessoa se faz de tudo o que já foi feito mais a sua capacidade de refazer o mundo. Uma pessoa se faz de muitos sonhos somados aos sonhos que ela sazona e torna coisas-em-si. Uma pessoa se faz com o personar das máscaras ecoando de rosto aberto no ouvido de todo o teatro. LA 99/01
Na Real
Um dia acharemos a nossa identidade. Tomara que seja aquela de jamais precisarmos nos identificar com nada nem com ninguém. Que a nossa identidade se pareça conosco. Assumiremos o que somos e nos aceitaremos — como aceitamos a vida e o comércio dos homens. LA 99/01
ÕESSSSSS...
E — agora — o que fazer, senão aquela limonada? Com açúcar até aquilo pouco proferível se torna suportável.
A hora é cítrica e de muita acidez. Feliz o ânimo que não se deixa azedar. Prudente o coração que sabe se transformar nas moendas e velho tachos de fabricar o açúcar para contrabalançar o amargor do momento. Esse fará parte dos que não se deixam pensar nem sonhar pelos donos deste mundo. LA 99/01
Sossegue: É A Sua Vez
Sossegue: nada foi dito. Temos apenas balbucios da Realidade. E a vida quer que a leiamos, contemos e recontemos — primeiro para nós mesmos e depois para os outros. O ofício de viver: dele depende contar(-se) e recontar(-se), ver e rever(-se).
Sossegue: o que foi contado já não serve. Cada geração reinventa o conto em que ela se acredita ''alguma coisa'' e desse acreditar lhe vem a força para cumprir sua tarefa: trabalhar a sua essência, organizar-se e transcender-se como quem sobe degraus lá por si mesmo.
Sossegue. Não se deixe perder por entre o pouco que foi dito. Não acredite que aqueles que nos antecederam já disseram a vida por nós. Não lhes demos procuração alguma para sonharem por nós. Cada homem ( quando faz ) faz seus míseros ensaios — que em seguida viram húmus para gestar novos ensaios. A verdade é o quanto podemos suportar.
Quem lê, relê, translê — tem que contar a fim de organizar-se e preparar-se para novas leituras, outros recontos. Sossegue: todos temos de aprender a contar — a nosso tempo e vez.
Sossegue: aquilo a que chegamos é só um riso do amanhã. O tempo é sempre novo — barro virgem, docemente moldável segundo imagem-semelhança do humano sonho. Não deixe nunca de fazer-criar ( contar a vida para si ) e imprimir na estrada dos homens a ousadia das suas pegadas. Sossegue, que o dizer é como respirar e ver. LA 99/01
Pelas Areias
Seja paciente consigo: você “tem jeito” sim. Seja indulgente consigo mesmo. Onde achará indulgência senão no próprio coração? Onde a vida mais dói a mão amiga não alcança — há uma solidão que é nossa, e nos queima e nos sangra por suas areias. Todo homem passa por ela — principalmente quando está dando o salto entre a pedra e o sonho, entre o que é e o mais-ser.
Seja paciente, e não tema. Acredite no óbvio: se nada dura, a sua dor-noite já deve estar amanhecendo. LA 99/01
Poema Neoliberal
Cinqüenta por cento dos nossos sonhos não se realizarão jamais. E a outra metade depende de cinqüenta milhões de coisas. Logo, o que chamamos de felicidade parece ter suas ações majoritárias no modo de administrarmos os “sins” e os “nãos” da vida. A vida é graça, graça fiduciária. LA 99/01
Fidelidade
Esse Sol que está lá longe, este Sol que está em nós — graça sempre fiel, dom que fecunda a vida no útero das águas, e faz dançar a flor em suas mãos de brisa, e faz amor com a Terra, emprenhando-a de sonhos, e faz haver o vento que semeia o seu sêmen no desejo das espécies — e pastoreia o amor e a vida pelos campos do mistério... Sabes-tu, Bicho arrogante, o que é que restaria de ti, de todo o planeta se esse Sol se ausentasse por apenas alguns segundos? — Gelo, Bicho arrogante, uma Bolota de gelo girando medonhamente em seu inferno glacial. LA 99/01
Redondilhas Enrodilhadas
No fundo, no fundo veremos que as coisas não são bem assim. Não são nada disso, embora nos deixem cavá-las bem fundo. Até nem existem embora possamos cavá-las bem fundo. No fundo, no fundo tais coisas não têm nem face nem fundo. Por isso tais coisas não têm condições de serem assim tal qual as queremos — mas são simplesmente aquilo que são ou mesmo não são, porque, minha amiga, pra ser ou não ser, no fundo, no fundo, as coisas jamais precisam de nada. Apenas as coisas não são bem assim. No fundo ou na praia, as coisas só são aquilo que não sabemos que são. LA 99/01
Amarelo-Palha
Seria bom não precisar, mas como sempre preciso — telefono-lhe conciso ( fazendo-me de mudo e mouco ) a ver se pode me adotar por meia hora ou mais um pouco.
Em geral, me diz que sim, e me esforço o mais que posso pra não torcer o pescoço... ( logo hoje que vai ter festa? ) e permanecer assim mais humano do que besta.
Só de saber que mais tarde estaremos tão juntos quanto o estão os olhos e o pranto ( mesmo quando a alegria os fira? ), algo bom em mim dentro arde qual se não fosse mentira. LA 99/01
Coisas Do Amor
“O amor dura mais um pouco quando não se exige muito” — dizia André à Rosinha, que nem mais se lembrava de ter tido nenhum afeto por ele. LA 99/01
Frustração
Dizes-me sempre, amiga, que adoras o homem com três emes cognatos: macho-machão-machudo — aquele bicho que come, lambe os dedos, os lábios e pede mais.
Dizes gostar de mel recheado de ferrões, gostar do amor com três ou quatro brasas, e amar orgasmos com cacos de navalha.
Que pena, amiga — vais morrer com vontade: o canivete-laser destes últimos tempos já castrou essas delícias — frustrando aqueles que sabiam o que era bom ( pra lá de bom ). LA 99/01
Pequi
Não chores não, senta aqui, que te faço uma canção com gosto de sapoti, doçuras de pão assando e festas de bem-te-vi.
Não chores não, senta aqui, que te reconto a velha história daquela pobre Glória que louco-amava Peri que era doido por Vitória.
Não chores não, senta aqui, que o amor não vale o que come. Fica sabendo, moleca, que o amor é como pequi: quem lambe não mata a fome, quem morde fundo se estrepa. LA 99/01
Canção De Três Andares
I Tenho um rancho perto da praia, um cachorro e um violão. Não venhas morar comigo, que saras da solidão mas adoeces do estômago.
II Cabocla da perna grossa e dos seios de cabaça, resistir ( há quem possa? ) de que jeito a tua graça?
III Meu coração, todo mel, sempre seduz quem o prove. TOPAS VIVER UM AMOR BEM SÉCULO-XIX ? LA 99/01
Plataforma De Ensaios
Não se iluda: ainda vivemos junto à porta da Caverna. Um homem só se conhece pelo seu coração-consciência. A evolução é coletiva mas ( sobretudo ) individual. É aqui ( na oficina do viver ) que ensaiamos o salto do que é para mais-ser. LA 99/01
Oficina
O que se faz transcende o fazedor, o que se cria ao criador: consciente-inconsciente em mesmo fio desnovelando-se de dentro para fora — levam adiante esse fazer-criar em que quem faz ou cria se suplanta naquilo que construiu num recriar-se e refazer a cada sonho corporificado. A vida elabora a crise e ocorre a transformação num processo de essencialização a superar-se em ganhos-consciência — o ser em sua oficina de infinito. LA 99/01
Por Ora
Aqui, sim, no meu porto inseguro, ensaiarei para ser feliz — feliz por tudo ser tão fluido, tão provisório sobre a haste daquela rosa azul a desfolhar-se na ante-sala do coração com os pés ainda seduzidos por sua jornada de herói — entre a sombra do monomito e a sua estrada interior de ser.
Por ora é gozar o provisório desse porto inseguro chamado vida — sonho de talvez-sim.
Por ora é só saber que o não saber é toda a força para materializar lá no poscênio o sonhar alucinado da ribalta. LA 99/01
Silêncio De Taças
Cerrando as pálpebras do medo, vemos nossos fantasmas. Abrindo-as para a luz, já os vemos tragados por si mesmos. Nesse pedaço de caminho nossas mãos já não seguram... As estações já não desfilam por nossas almas preocupadas em tecer as suas vestes... As estações já não dão frutos de apaixonadas esperanças. Muito silêncio pela estrada que passa dentre nossos medos lá pelas sombras da tarde a caminho da noite. Não uma noite qualquer, mas aquela da fusão do ser com ele mesmo — na angústia-renascer de sua própria consciência.
Um silêncio de taças vazias, sujas de vinho. Todos se foram deitar... inclusive os anfitriões.
Só um vento pelos corredores e varandas e calçadas, gemendo pedaços de um poema — fiapos de vozes que se agarram aos arbustos do tempo. LA 99/01
E Agora?
Agora que tudo foi feito e refeito e desfeito, e que as cãs são apenas cabelos brancos — confiar em quem, a não ser na criança que fomos ainda há pouco ( ali na infância ) e lembrar que ela sabia ser alegre e se espantar com a loucura dos adultos?
Que fazer, senão reaprender a não saber?
Que fazer, senão ver que a rosa é sabiamente bela porque nada sabe sobre a sua beleza? E se viesse a saber, quem sabe a rosa não se admirasse de ver que o que chamamos belo nela é só uma transferência do nosso medo de morrer? LA 99/01
Preservação
A persistente banalização de tudo torna a vida sem graça — cara de pedra, lavada de sonhos.
Só quem pode redescobrir a própria infância — seu não-saber... ( ou preservou seu coração das moedas deste mundo ) é que terá condições de ousar aquela alegria, aquele sentido maior que recebeu da vida orvalhadamente de graça. LA 99/01
Após Pronunciamento Em Rede
Assim sem molho e a seco, querem que engulamos o pão duro de cada dia. Assim a seco e sem molho.
Assim sem molho e sem graça, só se o almoço for virtual — então pode ser sem sal e, em vez de peixe, o seu espinho. Caso contrário, Excelência, é bom um pouco de molho, algum cheiro-verde, etc. e uma pitada de respeito. LA 99/01
Esquema Vitalício
Há muitas atividades-hábitos que nos mantêm miseráveis: nossa “carreira” social e os relacionamentos malsãos vão nos assegurar o nosso eterno quebrar lanças e a nossa não-felicidade. Muito difícil romper tais hábitos-avós, quebrar o esquema vitalício. Se concitarmos alguém a fazê-lo, em geral, cometemos o pecado de vê-lo sem saber o que fazer consigo. Mudar é biológico... Mudar-se é para poucos. LA 99/01
Viver
Há os que são tão inteligentes, tão brilhantes, tão sensíveis que não sabem o que fazer com isso. São tão tão... que para tontões só falta ajeitar os sons.
Tantos estudos, tantas experiências, tantas qualidades, tantas tantidões — que tudo isso nem é nada, pois não sabem o que fazer, não com isso, mas com a própria vida.
Tantas universidades. Tantos mestrados e doutorados. Aprenderam tudo, menos que o ofício de construir o homem se chama ( sem nenhum mistério ) viver. LA 99/01
De Porta Entreaberta
Bebereis daquele vinho cuja videira fica no centro do reino. Daquele vinho cujos eflúvios vos transportarão a outras gamas de consciência.
Bebereis do vinho do Espírito, que vos dilatará os odres do entendimento e vos conduzirá de verdade em verdade. Por essa estrada seguireis de fé em fé, de esperança em esperança, de transcendência em transcendência — até aquelas varandas banhadas pelo amor do Pai, de cuja casa partimos com os pés do nosso coração e a que só podemos retornar pelas trilhas do próprio coração — pois é aí, bem dentro de nós, que brilha — de porta entreaberta — a Casa do Senhor. LA 99/01
Gajos Malvistos
Há o entendimento complicado, o entendimento torto e aquele que caminha para a possibilidade. À medida que entendemos, vamos acumulando entendimentos — assim como uma mentira ( ou uma semiverdade ou verdade — contada em cima de outra e outra e outra... ( Claro que há a experiência, métodos de verificação e toda uma aparelhagem lógico-formal-noético-dialética, etc. ) E assim vamos colecionando coisas que pensamos estarem para sempre entendidas, deveras conhecidas e provadas — acumulando-acumulando-acumulando... e enquanto se acumulam surgem aqueles indivíduos incômodos ( com espírito de criança que nos perguntam: É assim mesmo? E por quê? Mas e se não fosse assim?... E se enveredam por outros lados do conhecer-entender. Esses gajos ( quase sempre malvistos ou batizados de “malditos” ) é que nos sacodem do nosso auto-engano. LA 99/01
Peter's Mother
Em geral nos programamos — sentimos e pensamos restritivamente: nós mesmos nos castramos com o canivetinho enferrujado dos nossos medos e autopreconceitos. Pela sua própria mãe, Pedro pode conhecer todas as mães do universo ou só a sua mãe. Se alguém nos barra, a barreira está em nós — senão a atravessamos como um fantasma. Se Fulano constrói um muro à nossa porta, é porque demos a entender que não havia ninguém em casa.
Quem reduz os próprios sonhos como é que vai fazer-criar algo que não seja restritivo? LA 99/01
Achadores
Você acha que está certo, eu também acho e vamos vivendo nesses achares, amontoando achados — orgulhosos e felizes dos nossos achamentos. E depois de muitos achádegos, heróicos achadaços e achadiços achares e até mesmo achadões ( em pujantes achadouros ) — lá um belo dia nos vemos sem saber o que fazer com tudo aquilo que achamos. LA 99/01
Crise De Tanto
Tinha estudado tanto o meu amigo, tantos esoterismos e metafísicas e magias... tantas cosmogonias e físicas-teóricas... Tantas filosofias e biologias e espiritualidades... Tantos exatismos e intuicionismos... Tanta arte e ciência e religião... Tantos ''ismos'' e ''ias'' — que agora o pobre já nem sabia o que fazer consigo. LA 99/02
Construção
Deficiências físicas, morais e cívicas. Quem não é um deficiente? Sorte desse ... que não é.
A mais terrível das deficiências é a que os homens constroem com cara de inocentes: a deficiência cívica — flores que espiam a sorrir bem à beira das falésias...
Vidas construídas de abismos. O social se alimenta dessas flores como os ruminantes de capim.
A vida parece concordar, mas não aceita... Se existe alguém que não perdoa, é a vida. LA 99/02
Caminhos Do Sublime
Multidões e multidões de eus-outros — todos ávidos de ter um pouco daquele bem supremo que ninguém toca, de que ninguém se apropria... Sabem ( lá em seu não saber ) que “aquele bem” é raro — uma seta no escuro das longidões de ser.
Multidões e multidões procuram uns nos outros um pouco desse bem, que Deus semeou na vida — para torná-la inquieta e com isso fazê-la retornar para Si. LA 99/02
Bobeira
Abençoa, Senhor, nossa bobeira. Bobeira nossa de ontem, hoje e sempre. Bobeira nossa consciente e inconsciente.
Bobeira astuta, onipresente. E aquela ausente, apassivada. Bobeira mansa, calculada. E aquela conivente, “grampeada”. Bobeira honesta. Bobeira ladra. E aquela negligente e aquela serviçal. Bobeira virtual, e a pérfido-leal.
Senhor, perdoa nossa bobeira de cada dia. Que seria de nós, da nossa vida sem essa jóia de uso comum? LA 99/02
Compartes
Compartilhemos, amada, um pouco desse bem supremo que não se atinge nunca e de que não se apropria. Persigamos as trilhas do sublime e nos veremos a caminho daquele céu onde Deus brinca de pique com a nossa infância e oferta rosas de alegria às nossas almas. Ali o coração extrai as pérolas lá do seu não poder — do poscênio onde o Demiurgo ensaia as suas criaturas para o grande final-começo. LA 99/02
Cúpido Cupido
Como cair, amor, na tua fome e deixar-me moer por bagatelas? Ou finjo que és um bicho que não come e te aplaudo por tolas passarelas?
Devo esperar que tua flor retome a posturas de eróticas lapelas, ou ver no teu olhar de pedra-pome a beleza demente das estrelas?
Devo entregar, amor, meu frágil peito aos líricos punhais de inconsciência do teu sublime dom, sempre desfeito?
Por esse preço não, amor faminto. Eu saio pela porta de emergência e dou um nó nos sonhos do meu pé. LA 99/02
Não Cai Do Céu
Felicidade, amor e sexo — aquilo que todos querem, mas ninguém tem. Só quase nada disso é que se tem. E não se tem porque tudo isso vem embalado em medos, preconceitos, proibições, tabus, condicionamentos, ideologias, planejamentos: doenças. É preciso equilíbrio e prévia construção para se ter felicidade, amor e sexo. No moral o homem não possui aquilo que ele não se construiu. ( O homem chega-se um dia, e ele e a Fonte são Um. ) Em sua fase azul o homem cria e faz materializar-se. Então seu reino ( seu campo de ventura ) mora em seu coração — e essa bem-aventurança é ele mesmo, é o próprio homem: um outro em-si. LA 99/02
Eus-Outros
Aquela criança que fomos, aquela criatura adolescente, o jovem que um dia fomos — é preciso amá-los, respeitá-los, ter-lhes gratidão e compaixão. Eles foram o suporte da nossa vida — arcaram com a carga do que fomos e são a plataforma que hoje nos sustém. Coragem eles nos deram. E força! Esses “mutantes” devem ser amados, respeitados e compreendidos. Foram a argamassa do nosso “eu atual” ( feixe de ousadia, e destemor ): propiciaram nossas mudanças — nossa transformação em processo, nessa estrada que hoje percorremos: nesse caminho infinito que é nós mesmos. Isto é o Amor, inerência da vida, que organiza, transforma, une a fé à esperança, a caridade à ação e vai fazendo ( num processo ) o homem transcender-se ( Deus no homem, o homem em Deus ), sempre fazendo o homem transcender-se. A estrada que percorremos é feita de muitos e muitos “eus-outros”, sim: os “eus-outros” nós mesmos. LA 99/02
O Rapto
A esposa dava nele duas vezes: bem de manhã e pelo fim do dia. E assim viveu André cinqüenta meses, moído da jugal pancadaria.
A vizinha, num transe de ousadia, rapta-o durante um desses mil revezes e o instala em sua alcova quase fria, — suturando-o a limpar-lhe o sangue e as fezes...
Convalesceu, sarou. tornou-se um touro: forte, manso e a serviço: um homem de ouro — cama, mesa, cozinha... e charme e o resto.
Ante as visitas, Vera comentava ( enquanto ele, a sorrir, a acariciava ): “Cão repudiado é humilde, grato e honesto”. LA 99/02
Perda
A perda dói, ou mais que dói: nos rala. A perda dói, principalmente quando a vemos ocorrer, escorregando das nossas mãos sem como segurá-la...
Sem como já podermos ampará-la em braços, mãos que vão se transformando em gestos fluidos, fluidos ao comando da vontade sem força já, sem fala...
A perda dói, e fundamente rói a alma e o orgulho... e o nosso ser a sente como algo que podia... mas não foi.
A perda dói e em sua dor presente traz o passado que ainda mais nos dói... E dói, a perda dói perdidamente. LA 99/02
Agora Que Maria...
Agora que Maria “não existe” para fazer das pedras primavera e a vida é quase um nada, um velho chiste, perto daquela luz que era Maria.
Agora que viver já não consiste em esperar Maria e aquela espera de brilho tão alegre se fez triste por já não ter a vida o sol que a era.
Agora que Maria não acende o céu da noite e a rosa não recende seu dom em evocar quem não atende...
Agora que murchou toda a alegria dos sinos que Maria percutia — como ter vida a vida sem Maria? LA 99/02
Bem mal me queres, mal bem me amas. E vá poder, amor, com tantas tramas. LA 99/02
Meio-Orgasmo
Ficou muito feliz quando disseram que o mundo ia acabar, que o Armagedom já permitia ouvir-se trom a trom — para o gozo de todos os que creram...
Ajeitou ( ele e amigos ), reteceram alguns versículos de alto tom e criaram a “Jesus Quer O Seu Dom” — aquele dom que os homens esqueceram...
Marcaram dia e hora para o Fim, sendo que todos ressuscitariam para imporem à Terra o dom feliz...
Veio o dia... cheirando a alecrim... Não vendo os fiéis aquilo que previam, gritam de uma só voz: “Jesus não quis!” LA 99/02
Armagedons
Muitos Armagedons têm ocorrido entre o homem velho e o novo ( lá em nós ). Tal como é fora é dentro: tem havido batalhas e batalhas-pais-avós.
O mundo e o coração têm remoído estados-ser no coletivo e a sós: tudo para encontrar novo sentido — cada alegria ou dor tem seu entrós...
Um reciclar de gamas de consciência vive a lutar por sua transcendência enquanto o ser trabalha a própria essência.
Um renascer traz outro renascer, qualquer morrer é um novo acontecer e a vida marcha entre ser e ser. LA 99/02
Canais
Poucos dos nossos sonhos se realizam. Os mais rolam com os seixos e deslizam para um mar de sargaços, turvas águas de frustrações, ressentimentos, mágoas...
E geramos profusas esperanças em amores suaves com as fianças que a vida e a mocidade, essas atrizes, nos fingem com seu gesto de felizes...
E as águas vão passando e vão levando as desovas dos sonhos que investimos entre os sargaços desse mar ondeando...
Em meio a hipóteses e veleidades, aprendemos que tudo o que construímos é para abrir canais de realidades. LA 99/02
O Ser E O Mundo
Pensamentos-alevinos buscam canais de água mansa e algas, até tornarem-se em idéias com nadadeiras prontas para enfrentar o mar aberto. Tais idéias feitas de outros genes-escamas de eus-peixes os mais diversos vão seguindo em cardumes ao mesmo tempo que já vão fazendo seus exercícios de individualidades: caem, aos poucos, na dialética das ondas e se tornam universais. Aqui começa a responsabilidade maior — que rumo dar àquilo que se é. Trocado em centavos: o que fazer de si? LA 99/022
Se Deixasses...
Se deixasses de me amar nenhuma estrela ficaria no lugar... e os astrônomos iriam reclamar.
Se me deixasses de amar as flores murchariam todas... e a vida perderia os lábios.
Se deixasses de me amar o sol pararia de brilhar... e as pessoas — que não têm nada com isso — iriam virar estátuas.
Se deixasses de me amar a beleza ficaria profundamente doente e os apaixonados e os artistas perderiam o seu êxtase.
Por amor a todos esses que teriam grandes problemas se me deixasses de amar, é que te peço , amada: não faças mal a essa gente, continua como sempre — fingindo que me amas. LA 99/02
Precisa-Se De Um Matador
Quem souber matar um fantasma, queira ligar para 444-33-22. Disponho de armas e munição. O matador deve ser um perito, pois que o fantasma se encontra dentro de sua vítima, com dois reféns — o cônjuge da vitimada e sua amante. Paga-se bem. LA 99/02
Tudo-Nada
Após teologia, fez doutorado. Também filosofia. Religiões comparadas. Ecumenismos. Pesquisas, comparações: apócrifos e outros.
Reestudou a Bíblia. Livro por livro. Parágrafo por parágrafo. Versículo por versículo. Palavra por palavra. Releu e transleu tudinho: do Velho ao Novo Testamento.
Lecionou. Pregou. Fundou a “Sócio-Religião” — a que invés de templos, construiria padarias, moradias... Não gostou. Voltou a lecionar e a pregar. Estudou e reestudou tudo. Leu, releu tudo. E se tornou — honestamente — ( palavra dele ) ateu.
— E a fé, a esperança, o amor? — lhe perguntou alguém. — Esqueci-me de guardá-los: deixei-me perder deles... Quando quis voltar a eles — já não estavam lá ( em mim ). LA 99/02
Quem Te Disse?
Quem te disse, Teresa, que a vida é linda só porque não dura, que o amor é belo só porque não cumpre? Que a beleza da vida é ela nem precisar ser bela, quem te disse?
Quem te disse que o coração acredita, principalmente acredita naquilo que sabe não ser? Que o amor só consola quando unha o que o feriu, quem te disse?
Quem te disse, Teresa, que dizer afaga a face daquilo que nos falta?
Que o sonho veste do avesso o que não somos... Quem te disse? LA 99/02
Saldo
Quando eu contava à minha mãe as minhas dores, ela ficava com metade delas, e eu saía com a sua mão sustentando-me por dentro. Hoje não tenho mais a sua mão, mas lhe ouço na memória a firme voz: “Paga ao homem com a moeda do reino. Ajuda ao pobre sempre que possas. E usa de misericórdia com todas as criaturas. Confia em Deus para que Ele não te falte naquilo que não possas. Só assim vences o mundo.”
Assim tem sido, minha mãe. Deus te abençoe. LA 99/02
Família Unida
Saiu do seu motel, foi buscar a consorte no cassino, a filha no bordel, o filho no seu emprego de garoto de programa. Almoçaram juntos, jantaram. Foram à missa. Ao clube. Depois de mais uns papos, cada um voltou ao seu mister. Afinal, como diziam, viver é um desafio e lutar é preciso. LA 99/02
Sem Véus Nem Eufemismos
Demônios existem? A Bíblia diz que sim. Nem é preciso muito tato para notá-los em nossos corações. Os nossos pensamentos-sentimentos, “ aí ”, os alimentam.
Têm nomes tais demônios: um se chama Maldade, o outro Ignorância. Todos os outros são seus filhos. Os demônios são tudo o que desumaniza. Nosso sentir-pensar-fazer os alimenta em nosso coração — onde em geral procriam, passando de geração em geração em doenças-avós, em hábitos-família.
Por isso mesmo o campo de batalha do ser humano é o seu próprio coração. Batalhas bem difíceis — tais entidades-nós se disfarçam de anjos de luz... Mesmo assim, cada um de nós sabe com quem convive lá em si mesmo.
O homem tem de vencer os seus demônios, ou será devorado por eles. “Sozinho”, jamais poderá com eles. Para vencê-los temos de estar ligados com Aba-Pai, o Filho, o Espírito na água viva da Palavra — n'Eles seremos mais que vencedores. Sem Eles, o homem é destroçado. LA 99/02
Para Chegar
Para chegar não use a dialética — apenas saiba não saber...
Para chegar não pense em obstáculos — caminhe para lá.
Para chegar, apenas rume para lá — e ouse pensar e ver que você já chegou. LA 99/02
Compotas
Perdoa, Senhor, nossas besteiras elaboradas com amor — praticadas com orgulho e guardadas em compotas para repastos especiais.
Se temos ciúme delas, Senhor, é porque são o que mais sabemos fazer.
Tais compotas, Senhor, são a nossa deliciosa fraqueza. LA 99/02
Caso Parapsicológico
Saída de trás do tempo, a cangaceira viu Tião e veio — queria pontuar o desejo. Seus dentes faiscavam, mascando fumo... Suas pernas se torciam como cobra malmatada, os seios latejavam ( meio século sem visitas... ) A mulher mordia a própria respiração com cara de meio-orgasmo. Tião encheu-lhe as vontades e ela urrou a tarde inteira e durante toda a noite. De manhã, pagou a Tião o serviço. Agradeceu muito, deu um grito de guerra, caiu no chão tremelicando e virou um punhal, que Tião passou a usar na cinta para autodefesa. Dizem que uma vez por mês o punhal menstruava — era quando ( sem que ninguém soubesse como ) Tião tinha relações com ele — mas coisa de encher os sentidos, de dar inveja e vontade. LA 99/02
Em Quê... Ou Quem?
Já que a glória do mundo é areia movediça, gloriarmo-nos em quê ou quem, a não ser em nossa herança e no Dono dessa herança que por nós já pagou boa fiança? LA 99/02
Na Barranca
Viver é estar na barranca de todas as situações, enquanto caudalosa ( mais furiosa que mansa ) — a vida rola.
Viver é estar na barranca. Na barranca do sonho. Na barranca da amizade. Na barranca do emprego. Na barranca da família. Na barranca do amor. Na barranca de tudo a que nos apegamos — com as águas do rio solapando os instantes.
Na barranca fazemos tudo e de tudo — inclusive pescamos de espera: armamos muitos anzóis com que contamos fisgar peixes-outras-situações... com as águas do rio solapando os instantes.
Viver é estar na barranca, mas nem por isso aflito — já que estar na barranca é situação de todos, e a maioria vive de-li-ci-o-sa-men-te sem consciência do rio e da sua barranca — enquanto as águas rolam solapando os instantes.
Saber nadar é bom, mas bem melhor é construirmos nosso rumo interior — independente daquele das águas... e sabermos de antemão para onde estamos bracejando bem antes de cairmos n'água... LA 99/02
Entre Os Pés E O Sonho
Quando chegamos ao topo, estamos no meio do caminho — já que a assídua gravidade está sempre a nos mostrar os pés do topo. Mas uma vez subidos trazemos para baixo a altura, de sorte que os pés do topo agora nos sustentam lá em cima... Nossas conquistas interiores são degraus que metabolizamos lá entre os pés e o sonho. LA 99/02
Possibilidade
Foi pelo caminho das pedras, e voltou de helicóptero. — Por quê? — lhe perguntaram. — Fiquei com medo de que as pedras se mudassem. — E isso é possivel? — tornaram. — Sendo impossível, — sim. Já que a possibilidade é o pensamento mágico de a coisa ser. LA 99/02
No Tempo
No tempo, amada, que havemos de redescobrir — serás a minha amante que trai a si própria. Eu, o traído que ama e faz da amante a amada redescoberta. LA 99/02
Estratégia
... até lá estaremos todos mortos. Não você, mas os da minha geração. Aliás, a vida só se faz de bonita por puro ciúme da morte — até que esta lhe tira a máscara em que aquela tenta fingir não ser um bicho que rói — cheio daquela fome que lhe impede de ver nos opostos a unidade conversível e reciclável de tudo. A beleza nos é bela por impingir-nos o medo do seu oposto — talvez uma estratégia do instinto. LA 99/02
Troca
O marido a emprestou para cuidar do vizinho em crucial convalescência. Ela aplicou-lhe tanto esmero e ciência que logo-logo ele já estava a andar.
Logo-logo por toda a adjacência ouvia-se uma voz cantarolar... E entre o brilho de festa em conivência — os dois num abafado gargalhar.
Após três meses de leais cuidanças, o dono da mulher foi lá buscá-la. E falaram de amor e de finanças...
O marido voltou com uma mala contendo coisas que ele precisava. O vizinho ficou com o que sonhava. LA 99/02
Morte Por Ababacamento
Enquanto vaginava com o consorte, a cabocla troncuda — de coxas de baobá e seios de cabaça, sente-se muito ofendida pelo infeliz marido que — num ímpeto romântico — a compara com um animal que aqui não digo não, senhor.
O diabo da mulher, com o “zás” de um raio, mete-lhe as mãos na nuca e lhe enfia nariz e boca lá onde há bem pouquinho, suspiroso, trabalhava. Dá-lhe uma chave de pernas e, comprimindo-lhe a nuca — segura-o qual sucuri engolindo a sua presa. O pobre, assim afogado, luta, arranha, bate palmas e — com a ponta dos pés — batuca desesperado sobre um caixote de borco que servia de criado-mudo.
Tamborila que tamborila ( talvez como índio ou outro gajo, ao mordiscar da lua cheia — chamando a jovem mulher de seu amigo do peito para uma desavença genital sobre a grama do pasto ). .........................................................
Tamborila que tamborila todo afogado, enlaçado por rolos de sucuri. Vem-lhe a mãe, nada consegue. Dois vizinhos, — também nada. Um garotão e um policial — e nada, nada de nada. Acorrem muitas pessoas — a fusão era medonha... Uma velhinha mais o padre conclamam todos a rezar: a pedir ao Santo do Agreste libertação urgente. ..............................................................
O diabo da sucuri mais e mais engole a presa que pouco já esperneia... numa semi-sororoca de roupa sendo ensaboada... Os pés já não tamborilam... A presa já não se mexe... O padre grita: Acabou. A velha: Seja bendito o Santo — Deus libertou sua alma. ...............................................................
Horas depois, no velório, um garotão machudo, machudo e inconformado, com um riso de punhais — dentes medonhos, afiadíssimos, pergunta à mãe do finado: Mas como pôde, senhora?!! A mãe, adivinhando-lhe o final do raciocínio, responde em poucas palavras: Manecão, meu defunto filho, era banguelo, seu moço, de todos os marfins. O garotão, enfim, sossega: “Tá explicado, Mãe de Deus!” LA 99/02
Jeremassis
Machado é um exemplo de sábio desagradável a mostrar ao leitor o que este pensava haver não também em si — mas só nos outros.
Jeremias de alma-coração, mostra o humano do avesso e propõe ( nas entrelinhas ) que esse “desagradável” seja visto em cada um por cada um. Prende-encanta o leitor porque não fala de ninguém a não ser do leitor. LA 99/02
No Mínimo
A melhor trilha é a do bem. Quem não sabe o que é o bem, ou é cínico ou perdeu o sentido da vida — o seu rumo interior e exterior: pois já não sabe procurar nem achar. O homem tem de saber o que é o bem. LA 99/02
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