ROSAS DOS VENTOS

Laerte Antonio

 

 

                    Bem Gago

 

Não escrevas, que não leio

a não ser depois que apago.

Se me falas com o seio,

te respondo com afago.

Se queres uva, dou-te um bago —

que, se muito, corto ao meio.

Se a luz machuca, apago.

Se não for muito, gostaria

de um chilique bem gago —

claro que não aqui

à beira-lago

com esse vento rouco e vago,

      clitoriando a rosa

com tremeliques de mago...

Um chilique que não tem pressa

em prensar as três uvas...

e totalmente sem luvas.

Sim: um chilique

num gesto pasmo-chique...

      e longamente bem gago.

 

                      Bilhete

 

Te mando, amada,

estes cachimbos, estas rosas de pano,

estes garfos, do tempo do Império,

duas ceroulas do meu avô

( peças para o museu da família )

para que vás, querida, te enfronhando

com a família cujo Brasão pretendes

doravante defender.

Seguem também uma binga, quatro espartilhos,

um cinto de castidade

( este, pelo tamanho, deve servir-te ),

um relógio de bolso da marca

Roskoff Patent —

para usares no pescoço

quando estiveres fazendo amor ( comigo ).

Vai também uma bela cadeira de defecar,

toda em óleo-cabriúva, trabalhada

por finas mãos da terra de Ronsard —

para dela te servires, amor,

quando estiveres inspirada

a conceber poemas metafísicos.

Mandamos-te outrossim o pito de barro

da nossa ''Bisa'', com cabo de junco inglês —

para espantares pernilongos

numa dessas tuas pescarias

pelas águas de bidê do Sena.

Vai também, minha prenda, uma cadeira

com dois pés transversais mais curtos

que se prestava aos meus tataravós

na deliciosa arte de se amarem.

Nossa ''Bisa'' contava que fora gerada

nessa gangorra que cutucava o soalho

três vezes por semana e que só cessava

quando os galos, indignados,

misturavam os seus cantos com protestos.

Enviamos a aliança da ''Bisa'' — arremessada

na cara do ''Biso'' por 37 vezes:

quando aqui se instalou, com labutas do prefeito,

a mais formidável casa de tolerância ( francesa ) — com cancã

de aperitivo, e de iguarias

aqueles pratos

que o mundo inteiro conhece e se arrepia

só de pensar que existem.

Dizia minha avó que os homens, no geral,

ficavam verdadeiramente enfermos,

doentes de verdade,

a ponto de muitas consortes, compreensivas,

levarem, elas mesmas, seus amados a serem medicados.

Inclusive o então padre Hortênsio... toda a cidade

se comoveu tamanhamente com suas febres e olhos vidrados —

que o levavam de sete em sete dias

a entabular com o indizível...

Voltava sempre agradecido —

disposto como um saci.

Dizem que seus sermões foram-se tornando

cada vez mais amenos e brilhantes

( Kundalini subiu-lhe pela espinha —

segredavam-se os místicos... )

e sua própria pessoa fazia-se mais e mais fraterna,

dona de um sorriso que era um céu

pela ternura-enlevo que emanava.

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Desculpa-me, querida, se me alonguei com o cancã —

é que até eu ( bem menino ) tinha problemas sérios

quando ouvia um pouco de sua história:

contada de soslaio,

de modo sincopado e reticente —

a meio-tom, à meia-voz, à meia-boca —

o que, para mim, não deixava nunca

de ser um strip-tease narrativo,

fazendo-me subir em paredes ensaboadas...

 

Por hoje é só, minha comparsa. Amanhã

te mando mais. Assim vamos montando

o nosso Museu de Família.

 

                                  Um beijo na tua pinta.

 

 

                Espera

 

Lá longe o vento

desenha seus croquis de poeira.

Faz um dia bonito

como lembrar os seus olhos.

 

O mais é pobre

como a gente ter tudo —

menos o que nos falta.

 

Junho chove azul nas colinas,

enquanto bem lá longe o vento

( outra vez ) faz fantasmas de poeira

que correm pelo acostamento

da longa estrada preta...

em quietudes de domingo.

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A brisa puxa a orelha

de cada folha.

Aos poucos a tarde esfria.

E a solidão é linda

porque sei que você virá.

 

 

            Eterno Como A Rosa

 

O inverno ( lembras? )

era tão quente em nós

que freqüentemente saíamos

com roupa leve

para sentirmos pelo corpo

a afrodisia do frio.

 

Ardia em nós

um sentimento numeroso

de que a vida era boa e bela,

e assim sentindo —

todo o mundo cabia em nossas mãos,

porque nada existia

além de nos querermos um no outro.

 

Um inverno flambado.

Viver um sonho assim

fez muito bem —

e foi eterno como a rosa.

 

 

                 Festa

 

Fiéis, só os enganos.

O mais é vento-veleidade

com saudade

das canções que não dançou

e daquilo-amor que não foi.

 

A realidade é um boi.

Se a quisermos andorinha —

demora só um pouco.

Se a sonharmos liberdade —

isso só lá em alma.

Se a ambicionarmos maior —

já é um trabalho de consciência.

Constantes,

só os que nos detestam

e se esquecem “clicados”

em seu ódio charmoso.

 

Não é que o mundo é leviano —

seu peso é que se sente mal

e quer rolar e voar.

 

E olho vivo

( já dizia Ibraim, hoje dos anjos... ):

Jacaré que morde o próprio rabo

nunca foi jacaré, mas cachorro.

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E o homem tem sido o cachorro

de suas próprias mordidas.

 

Mais que fiéis,

só mesmo os desenganos —

irmãos mais novos dos enganos.

E o mais é festa

( de debutantes ).

 

 

          Longe/Perto

 

Lá em pensar em você

brilha um jardim

de onde colho as flores

que lhe mando

e que você ( por vezes )

acha tão lindas.

 

Só não lhe digo de onde as colho

pra você não ficar

convencida demais.

Mas se ficar

lhe digo que ( não sei por quê )

lá em pensar em você

às vezes é mais bonito

do que estar com você.

Se ficar brava, argumento

que isto também se dá

com relação

ao misterioso deserto,

às fantásticas geleiras,

aos altíssimos picos —

ao grandioso, enfim.

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E por falar em flores,

tome mais estas...

Estas colhi atrás do inverno.

 

 

                Melhor Só...

 

Um amor que passou

pelo vinil,

peloK-7,

pelo CD

e agora, sabe Deus

por que outras diabruras internáuticas —

um amor desses

é coisa chique, amada:

por nada se bota fora —

vinho da aurora

bebido na corola

de um sonho... que eis aflora

com gosto tinto de amora

entre manhãs de domingo,

domingo zonzo de lembrar...

 

Melhor que um amor assim

só paçoca de gergelim.

Mais belo?

Só os sapatos do arlequim.

 

 

                 Prêmio

 

A morte da consorte

entortara-lhe o sorriso,

o ânimo,

a vida.

Até que surgiu Rute —

jeito de bailarina

e profetisa hebréia.

E bela: bela e adorável

como agiota desmemoriado...

ou gato surrando cachorro

que já nos mordeu.

 

E a doce Rute

alevantou-lhe o sorriso

      e tudo o mais.

 

 

            Um, Dois E...

 

Não chores não. Senta aqui,

vamos cantar ( de raiva )

uma canção qualquer.

Nem que seja pelo nariz, cantemos.

 

Não chores não, que a vida

não é do lado dos que choram —

não é do lado dos fracos

ou delicados.

A vida é um marujo

sempre de porre com os próprios sonhos —

fingindo sempres

e simulando apegos.

No fundo, esse marujo gosta mesmo

é do seu navegar

e parecer diverso em cada porto.

 

Vamos lá: um, dois e... cantemos juntos

uma canção qualquer.

Qualquer canção é boa

pra descentralizar o coração

e dizer a quem chora ou ri

que a beleza de tudo

é tudo estar passando —

enquanto vamos aprendendo

a ser eternos.

 

        

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