SALA DE ESPERA

LAERTE ANTONIO

 

 

          A Chispa-Pensamento...

 

A chispa-pensamento acende a idéia

que incide num cristal que a reverbera

em todos os cristais em derredor,

confluindo ao cristal-mor , — a pineal.

 

Agora a idéia-sonho, a luz-propósito

está nas mãos do Outro, — do gigante

que vai elaborá-la com a força

e o brilho-essência de outras realidades...

 

Mediunizada de outras energias,

a idéia-intento então se ramifica

e sobe por si mesma para o sol...

 

Então explode em flores e sementes

que se geram na árvore do ser

              e dá frutos que saltam para a Vida.

 

 

A Madame E A Lulua

 

Que amor de cachorrinha, a da madame:

clínicas, importados, bom salame...

Dormia-lhe na cama: “Ah, não me peide

nem borre no cetim, minha fair lady!...”

 

Pelo tom dos latidos denunciava

à senhora quem é que lhe chegava.

Só faltava falar, mas se falasse:

“Essa não! Ela que experimentasse!...”

 

Lulua era um romântico perigo:

se madame se enchia de um amigo

e quisesse mandá-lo para o quinto —

         

conversava com sua escudeirinha...

e no momento exato, bem na horinha,

              ela então: Nhac!, lhe mordia a rima.

 

 

A Mulher Do Mocinho...

 

A mulher do mocinho era safada

e andava com coisinhas com o bandido.

Sua vizinha, muito preocupada,

a advertia sempre: Olha, Del Guido,

 

se Ronsualdo te pega peladona

com esse tal de Leôncio Chocolate,

pode até ser que não te mate... mas que bate,

ah, bate! Bate e chama de putona!

 

Disse, benzeu-se e foi-se de tal arte

como quem sabe feita a sua parte —

se lava as mãos, a cara e os principais.

 

.....................................................................................

 

Quem pensou num final de enterro e bruma —

esqueça, que Ronsualdo nem jamais

                        sequer notou coisíssima nenhuma.

 

 

              Ah, Fique Salomão...

 

Ah, fique Salomão com sua glória,

fiquem os sábios com os seus tesouros.

Os ladrões guardem bem seu ouro e louros

e a História a sua quase vã memória.

 

Fiquem os donos com a prata e a escória.

Os notáveis preservem dos besouros

sua fama, seu nome imorredouros —

a glória guarde as palmas da vanglória.

 

E assim: nem tão suaves nem abruptos,

os honestos se façam mais honestos,

os corruptos se tornem mais corruptos.

 

As loucuras se mostrem grandiosas

( os honestos se saibam bem molestos... ),

as verdades se contem mentirosas.

 

 

Amordaço Saudades...

 

               Amordaço saudades já branquinhas

com receio do que elas contariam...

enquanto o vento colhe belas pinhas

que a árvore de Natal enfeitariam...

 

Há quanto tempo tu já não me vinhas

trazer aquelas rosas que morriam

de medo de esquecer as entrelinhas

que normalmente sempre sugeriam...

 

As saudades disfarçam os pieguismos,

as rosas buscam não dizer truísmos...

É tão difícil ser original.

 

O próprio vento sopra natural:

calmo, não geme dores nem modismos...

              brando, já não desfolha o roseiral.

 

 

         Assim, Amor: Com Ares...

 

Assim, amor: com ares de madona

e esse olhar, esse riso de putona...

Assim: olhando longe sobre o ombro —

como se tudo à volta fosse escombro.

 

Assim, amor: com o coração risonho

e o semblante de sombras de um ex-sonho...

Assim: qual uma nuvem que rebate

a luz do esposo morto em bom combate...

 

Assim de lado, assim: jeito de seda,

como se mão jeitosa ( na entretela )

fosse depositar uma moeda...

 

Assim: suando um sonho constelado

e em cada poro um gozo regozado...

              Assim... último toque. E a tela é pronta.

 

 

         Assim Tão Afastados...

 

                    Assim tão afastados e tão longe

daquele pão de Casa, pão cheiroso,

num andar bem obscuro: viver-monge

por esse doer em alma sem repouso...

 

Assim nessa mesquinha claridade

perpassada de sombra enrodilhada

nos pés dessa virtual felicidade

a dizer sim, e a dar de mão fechada...

 

Que fazer a não ser render-se em calma

ao desejo de a luz vir desdobrar

o caminho que temos dentro d’alma?

 

Que fazer a não ser, ó minha Amada,

abrir a porta bem escancarada

                   e deixar essa luz por nós entrar?

 

 

                  Assim Tão Milpartida...

 

Assim tão milpartida e bifurcada,

como seguir, ó alma, o teu caminho —

sempre por ventanias arrastada,

e esquecida do pão, do vero vinho?

 

Assim tão insidiosa e auto-enganada —

bailarina na ponta de um espinho,

acrobata de rede mal-armada

ante os urros de um público mesquinho...

 

Assim tão mal-amada e má amante —

a vida por um fio de barbante,

e o amor sempre bem pago para amar.

 

Estende a tua mão, ó renegada,

que haverá outra mão a ti espalmada

                   dentro do humano sonho de chegar.

 

 

                   Até Que...

 

Candelabro acendi nos apagões,

lamparinas, lampiões, também candeias,

velas a óleo, a gás... Forjei carvões,

queimei um pobre armário e três cadeiras.

 

Isqueiros acendi, soltei rojões,

pus fogo até em sapatos, velhas meias;

fiz arder um estrado e dois colchões,

estalar, no galpão, nobres madeiras.

 

Cento e dez guarda-chuvas da ex-patroa...

panos de prato e toalhas, roupa boa,

com pijamas e cuecas fiz arder.

 

Mas qual! Só fumo e escuro... Até que Dulcinéia,

minha vizinha, e eu tivemos uma idéia:

              plugar o anoitecer no amanhecer.

 

 

Bom Era Quando Nossa Mãe...

 

Bom era quando nossa mãe dizia

que muitas voltas dá o mundo, e a vida

surpreende o arrogante um outro dia —

com a sua maldade já esquecida...

 

Tinha a frase algo de escatologia,

um tom de fim de mundo, uma descida

ao chão, um gosto de geologia...

ou coisa ainda não amanhecida.

 

Proferida num tom que admoestava,

tal frase, em nossa mãe, fortificava

e ressoprava a fé e a confiança.

 

Dizia-nos também que nada dura,

a não ser lá no sonho da criatura

              ( tecida em fios de sombras ) a esperança.

 

           

               Bom Ir Sabendo Quando...

 

Bom ir sabendo quando a festa acaba,

e irmos pondo as coisas no lugar.

Não deixar taça alguma por lavar...

e amar esse desaba-não-desaba...

 

Pôr o fruto maduro em mãos de Aba,

o Pai, para que o possa semear

em volta das varandas do Seu lar.

A vida vermelhinha, qual goiaba...

 

Foi tudo rapidinho. Nem devíamos

ter atirado tanta graça fora...

Coisas que amávamos e não sabíamos...

 

Vinho fino... perfume que evapora...

Fiapos de memória a se agarrar

              ao tempo... com o vento a assoviar...

 

 

Como Esquecer-Te...

 

Como esquecer-te se esse esquecimento

pretendido é algo vivo no meu ser:

algo que aumenta quanto mais o tento

esfumaçar em algo a esmaecer?

 

A própria vida tem o seu sustento

em se lembrar: jamais em se esquecer —

de modo que pra haver o esquecimento

fora preciso haver o desaver.

 

Mas não. O esquecimento mora e vive

do outro lado de tudo quanto tive

à espera do punctual de renascer...

 

É por isso que, em busca de esquecer-te,

o que mais faço é mais encarecer-te

                        a ponto de me seres em não-ser.

 

 

                Criogenia

 

Pobres homens e seus (em)pilhamentos,

sua vida tornada em gana fria —

um amontoar de pós na ventania,

um ajuntar de palhas entre os ventos.

 

Pobres criaturas em seus vis tormentos —

jamais vencendo o muro da teoria,

seu desespero as leva à criogenia —

confundem vida com congelamentos...

 

Por onde passam deixam a exalar

seu triste cheiro de mortalidade —

não transcenderam sua humanidade...

 

Carregados de plúmbea densidade,

como aprender a ir-voltar: saltar

              de um lado ao outro da Realidade?

 

 

    Despensemos ( Porém...

 

Despensemos ( porém, não dispensemos )

o amor, amada: ao menos por enquanto.

Esse safado melodiou o pranto,

inventou sonhos, navegou extremos...

 

Fabulou tanto acerca de si mesmo,

que acreditou no seu eterno encanto —

esquecendo que o lado-desencanto

era a mesma moeda de seu esmo...

 

Agora, Amor já vê, decepcionado,

que para alguém tornar-se realizado

precisa despensar a realidade...

 

e aprender ( rapidinho ) que a verdade

( da mentira ) é extrairmos do ilusório

              a graça de viver no provisório.

 

 

              Dói Ver A Vida, O Amor...

 

Dói ver a vida, o amor banalizados,

feitos coisas ridículas, assim

como fossem legumes já passados

ou como o riso e o flato do arlequim.

 

Dói ver os sentimentos pisoteados

em razão de uma massa bruta a fim

de fazer de doentes arrazoados

a norma, a lei: o seu princípio e fim.

 

Dói ver o ser humano assim tão rés

em seu sonho e motivo de existência —

a compreender as coisas pelos pés...

 

Dói ver o mundo em lírica demência

dentro de uma loucura embevecida —

              caminhando de costas para a vida.

 

 

      Esse Amor Tão Pequeno...

 

Esse amor tão pequeno e pobrezinho,

quase um segredo ou sombra entre nós dois,

com a paciência de asnos ou de bois —

amor sem grife, sem um teto ou ninho.

 

Esse amor vagabundo e pequeninho,

parece, em mesma linha, dois anzóis

pescando, na enxurrada, caracóis

e esperanças de um sonho tão magrinho...

 

Esse amor que inventamos, ó minh’alma,

pra termos o consolo de uma palma

nesse sol quente de só haver areias...

 

Que inventamos para aquecer do frio

vindo dos alvos cantos das sereias

              que cantavam canções de calafrio.

 

 

    Evasão, Não, Ó Musa...

 

Evasão, não, ó Musa! — mas tesão

de descascar sementes transverbais —

a gula de adentrar outros ramais

que tenha ( de algo ) múltipla visão.

 

O charme de pensar com o coração

mil e mil sentimentos racionais

e i-los processando virtuais

em traduções-depois-de-tradução...

 

Evasão, não, ó Musa! — apenas idas

e vindas de uma vida em várias vidas:

o ruído pela coisa, o vôo pela ave...

 

a travessia pelo pensamento

de fazê-la no sonho-sentimento

              de ser a vida nave em outra nave.

 

 

     Há balizas, É claro...

 

Há balizas, é claro, no Universo,

que organizam o ser em sua essência.

Tolo é o homem que julga que a existência

opera num servi-lo sem reverso...

 

Há dois que amarram: são o mais adverso

dos males, — a Maldade e a Irreverência —

mergulhando a criatura na demência

do não-saber pelo saber perverso...

 

Quanto mais simples a criatura, tanto

mais  fácil de permear-se pelo Santo

Espírito a levá-la pela mão

 

através de si mesma e do caminho

cheirando àquele pão, àquele vinho

                        que fazem recordar o coração.

 

 

Há Os Que, Em Si, Mataram...

 

Há os que, em si, mataram a criança

em nome da ambição, do racional:

correram ao acúmulo, à abastança,

e foram empilhando material.

 

Só de viés ouviam a cobrança

de algo maior e muito mais geral...

E foram abafando na lembrança

essa voz, já em timbre transversal...

 

Foram ficando mais e mais sisudos...

Cada vez mais teúdos-manteúdos

de seus próprios sagrados ideais.

 

Empilharam. Subiram nos seus montes:

vales e vales... e nenhuma ponte...

              Aquela voz? Não a ouviram mais.

 

 

                               História

 

               Fora bom, se pudéssemos amar

antes de nos doer por não fazê-lo.

Escalpelar fantasmas... Do cabelo

fazer perucas pra nos disfarçar...

 

Fazer hoje, mais tarde recordar —

sem frustrarmos o tempo nem perdê-lo:

provar do bom, do indizível e do belo...

Sim: antes de sentir saudade, — amar.

 

Então será bem plácida a saudade —

saudade saboreada de memória:

saudade que é lembrar sem ter vontade.

 

Saudade que é bem mais lembrar a história,

sem querer revivê-la, história que há de

              ser tão mais bela quanto mais inglória.

           

 Horas Mediunizadas...

 

Horas mediunizadas pelo sonho

de haver-nos um remanço-afloramento,

em que o tempo é a espiral de um nexo inconho

de passado, porvir e este momento.

 

Horas do rebrotar desse vidonho,

em nós, que veio de Jessé e do vento...

Desse esgalhar por nós, brilho risonho

de vinhas e trigais em sonhamento...

 

Horas cheirando a rosas venturosas

entre manhãs e azuis, gloriosas rosas,

cheias de um sonho-agora-eternidade...

 

Horas de infinitude e de unidade,

em que o Filho comunga com o nexo

              de haver os Seus e a Vida: um só amplexo.

 

 

    Ida E Volta Do Herói

 

Construiu uma torre de capim:

dez andares, rodeados de sacadas.

Nela pôs cem das suas bem-amadas,

e partiu para a Guerra do Alecrim...

 

Andou terras de Alá, Pedro, Joaquim...

Passou por Londres, por Paris, Granada...

Fez tal estrago, deu tanta paulada —

guerreiro algum parou em seu selim...

 

Recobrou o brasão de Alecrinada,

velho símbolo santo na cruzada

contra os infiéis idólatras do Aipim.

 

Voltou pontudo igual a mil talheres...

( Os amigos lhe tinham cuidado das mulheres...)

              Festejaram comendo amendoim.

 

 

 

      Mastros, Gaivotas, Ventos...

 

Mastros, gaivotas, ventos, navegar...

Meu coração constrói a sua nave

que já partiu guiada pela ave

que conhece os segredos desse mar.

 

Mais que segredos: sabe onde encontrar

a corrente que não lhe causa entrave,

propiciando um relembrar suave

lá para os lados de seu fim-chegar.

 

Todo esse mar é dentro em cada ser

e o coração comanda o viajar

que tem por tédio o seu quase esquecer...

 

Quase esquecer aquilo por que veio —

a tarefa que trouxe de permeio:

                   o seu pensar a vida e se ordenar.

 

 

                Mestre/Discípulo

 

Quando a vida me bate, então me aquieto, —

procuro ouvir o que me quer dizer.

Geralmente me traz à consciência

um outro modo de lidar com ela.

 

Lá em alma-coração a vida fala

com voz clara, macia e bem pausada, —

num tom de luz procura discernir-nos

a dor e o gáudio do que estamos criando...

 

Ter ouvido de ouvi-la cria atalhos

que nos livram de doer inutilmente

pela estrada do nosso construir-nos.

 

Ter ouvido de ouvi-la é luz que incide

em alma-coração, e faz saber

              que a vida é o mestre; o viver, — o discípulo.

 

 

         

 Não Faças Sobre O Instante...

 

Não faças sobre o instante em que o não feito

seja sempre mais belo que o fazer,

e de tal sorte, que não tê-lo aceito

resulte num legítimo prazer.

 

De que vale o fazer que é contrafeito

à ventura de o humano se tecer?

Ou aquele que é feito de tal jeito

que o seu fazer vai contra o próprio crer?

 

Sim, não faças, se vês que o fazimento

te vá contra o sentir do pensamento,

ou contra o meditar do teu sentir.

 

Não faças, sobretudo se o fazer,

logo antes de ser feito, te doer —

              te doer por saber não construir.

 

 

                    Não Sabia Votar...

 

Não sabia votar o meu cavalo,

mas tinha um dom mais logical que o meu.

Bastava um mero olhar para notá-lo

não-eleitor feliz e sem liceu.

 

Não sabia votar o meu cavalo,

mas sabia o caminho mais que eu.

Até no escuro via um toco ou valo

mesmo sem lua e estrelas pelo céu.

 

Não sabia votar o meu cavalo,

e não obstante a “ratio” lhe faltasse —

nunca roubou, matou nem se escondeu...

 

Jamais pôde votar o meu cavalo,

mas suponho que o bicho, se votasse,

              acertaria tanto quanto eu.

 

 

         Não Verterei Meu Pranto...

 

Juro: por nada verterei meu pranto,

senão me desidrato e, assim minguado,

não terei forças para não-fazer:

vadiar ou adiar meus fazimentos.

 

Não poderei ouvir ( com Esmeralda )

Simone, Gal, Caetano até às matinas,

em que fazemos um café gostoso

e garipamos sonhos esverdeados...

 

Nem pagar taxas de cidadania,

ou ver aqueles seios venturosos

que a primavera flamba a mil chilreios...

 

Sim: flamba e faz cantar-dançar-saltar — 

saltitar de neurônios a neurônios

         nos beijos cirandados das sinapses...

 

 

                 Noite Branca

 

Sem Madalena estou e a noite é longa

com a solidão ladrando como um cão.

Nem passos de ladrão no imaginá-lo

vindo armado e com pés de bailarina.

 

Já contei quatro mil e cem carneiros

pulando a cerca da vizinha Zélia...

que cuida do marido com tal zelo

de dar água na boca das paredes.

 

Pensei na Júlia, aquela da lojinha,

com seus peitos em riste, — apocalípticos,

cínica a perguntar: O que deseja?...

 

E já nem quero mais dormir: os galos

estão bicando os pígios da alvorada

         que vai saindo — preguiçosa — dos lençóis...

 

 

                       O Amor É Bom...

 

O amor é bom porque, quando não ama,

há de saber ferir e desamar.

E toda aquela trama ( a enorme trama

de Penélope ) sabe destramar.

 

O amor é bom porque já não reclama —

nem mesmo o silicone o faz recuar.

E as quatro bolas, hoje, amor as chama

de contrapeso muito irregular...

 

O amor é bom porque, hoje, é um safado,

e quanto mais safado, mais amado.

O amor é bom porque, hoje, já nem é.

 

O amor é bom porque já nem precisa

ser bom: vive sofrendo de coriza...

                       Sim: o melhor do amor é o seu chulé.

 

 

                         O Nariz Da Menina...

 

O nariz da menina era empinado,

e tanto e tanto, que chovia dentro.

Mas sua mãe tinha o especial cuidado

de tapá-lo com folhas de coentro.

 

A teologia do arceglota era

tão esclarecedora como o berro

de um pintassilgo ou de um canário, e vera

como os chilros e os trilos de um bezerro.

 

Toda filosofia é uma maneira

de dizer elegante o consensual

e desdizer o consensual trivial.

 

Todo o dizer humano é uma canseira

que tem o seu nariz bem empinado

                        e os berros de um canário tresmalhado.

 

 

    Para Glorinha ( Cinco Aninhos )

 

Espantei jataís e borboletas

em torno ao rosto teu, e extraí méis

com que adocei as ágeis piruetas

de um coração em seus fiéis enlevos.

 

Tais favos degustei com as paletas

com que tracei florais nos capitéis

das colunas que aparam as caretas

rechonchudinhas como carretéis...

 

Menina, eu espantei os beija-flores

que bebiam de tuas tenras faces

a doçura rosada e de outras cores...

 

Espantei as abelhas que queriam

arrebatar-te para um céu que fazes

              haver para mil olhos que te espiam.

 

 

              Pensado Por Finórios...

 

Pensado por finórios, possuído

por palavras que tornam impossível

ao homem desprender-se do terrível

processo-de-pensar-já-induzido...

 

Teúdo no pensar, bem manteúdo

no que dizer, deixando ao indizível

e aos sábios todo o lado intelegível

das coisas: “Jamais ser um sabichudo!”...

 

Deixar à classe-dona decidir

o que falar, o que sentir, a que sorrir...

e suas dores ( entre os seus ) balir.

 

E ouvir-ouvir-ouvir ( mas sempre mudo ):

saber ouvir! Ouvir sempre sisudo...

              Querem-te assim: teúdo e manteúdo.

 

 

     Quando Eu Me For...

 

Quando eu me for, hei de chegar ( sozinho? )

e Te dizer: Babu, olha eu aqui.

Venho sujo de humano e do caminho...

Trouxe a esperança, o pio do bem-te-vi

 

e a vida que sei Tua. Ó Pai, me dá

aquele ponto-luz em que a gente se via

( lá no meu coração ) e se falava e ia

pelas Tuas varandas de maná...

 

Me dá um cantinho em Ti. E a graça e o dom

de ver, aqui, as vacas de sabugo

que minha mãe fazia... e algo tão bom

 

como a infância ( em seu não-saber sapeca )

e o pão que minha avó comprava lá no Hugo...

              e me ia molhando na caneca.

 

 

     Quando Quiseres, Vem...

 

Quando quiseres, vem, que te recebo

de corpo, alma e pensamento: ponho

rosas no meu portal, e a flor placebo...

E te recebo à porta do meu sonho.

 

Quando quiseres, vem, que te componho

um soneto que há muito não concebo —

novo, bem novo como o olhar pidonho

da criança ante o sonho de um brinquedo...

 

Quando quiseres, vem, que já te espero

( para ser franco, para ser sincero )

bem antes de Cabral ter cá estado...

 

Como? Pelo futuro do pretérito...

Te espero, independente de ânsia ou mérito, —

              senão à porta do meu sonho, ao lado.

 

 

Que Bom, Meu Deus...

 

Que bom, meu Deus: Tu não me deste nada

além do suficiente que me é tudo.

A calma e a singeleza por escudo

e esse ler-escrever por empreitada.

 

A graça da pesquisa e do estudo

que vai fazendo a vida organizada

e paulatinamente transformada

nessa água que bebo e que transudo.

 

Este brilho, esta paz-simplicidade,

esta floresta dentro da cidade —

canto-água-folhas-brisas pela casa...

 

Obrigado, Senhor, pela pobreza

que me ensinou que a maior riqueza

              é ter o coração em forma de asa...

 

 

Que Encontrareis Na Máquina...

 

Que encontrareis na Máquina do Mundo

senão o nosso não-saber profundo?

Falar nisso, onde estão os esperados,

aqueles: os varões tão sublimados?

 

Feudos e feudos de um falar facundo —

um gargantear solerte e vagabundo.

Ovos de águia gorados ou frustrados:

pintos por águias, sonhos desasados.

 

É hora de deixarmos de ser bobos:

sem autodidatismo e muito estudo —

só há o comerem-se de sujos lobos...

 

Claro que iremos à universidade,

mas sabendo que a arte é, na verdade,

              um dedicar-se teúdo e manteúdo.

 

 

                   Quem Sabe Eu A Beijasse...

 

Quem sabe eu a beijasse àquela hora —

como se beijam lírios, a beijasse

com o mesmo delirar de outrora-agora,

beijasse a pétala de sua face.

 

O mesmo sentimento cor de amora,

o mesmo tremular de tenra alface —

o suor de nossas mãos, em seu enlace,

roxos arrulhos a bicar a aurora...

 

Quem sabe, àquela hora de açucenas,

o nosso coração, aberto em flor,

não se fizesse luz para as falenas ( ?... )

 

Quem sabe, nesse jeito astral de lírio,

você pisasse os dedos desse amor...

              pra dele então cuidarmos com delírio ( ? )

 

 

  Ri, Não Muito, Que...

 

Ri, não muito, que destramela... e cai...

e vais precisar dele mais que o riso.

Há em rir um ponto quase que indiviso —

bem entre a razão, que é nossa, ou de Rai-

 

mundo. É o lado-catarse que te atrai,

ou o aspecto-vingança ( a que não viso )

do riso? Ou ( sabe Deus ) os dois? O piso

( aqui ) é bem cediço... engana e trai.

 

Quem ri por último... ? Sei lá, alguém

já disse que só ri depois. Concordo.

Mas o rir pelo rir faz muito bem.

 

Tenho um parente magro, que era gordo...

Que fez? Escola: Rir Até Cair...

              Pra ele, rir foi bom, e até faz rir.

 

 

                            Rir

 

Ra-ra-rá! A risada desopila.

Seja fazendo amor, seja no Banco,

para quem xinga ou ora em fé tranqüila —

rir é bom, mas um riso de tamanco...

 

Rir da vida, do amigo, do inimigo,

da honestidade ou desonestidade.

Rir do próprio nariz, do próprio umbigo,

da desventura ou da felicidade.

 

Rir é bom, porque rir nos desconcentra

e nos põe na mais vária sintonia —

a do gato que late ou cão que mia.

 

Ra-ra-rá, fariseu! Por que não entra?...

Rir da espera, do ganho, do prejuízo...

              Rir de tudo, inclusive rir do riso.

 

 

               Ruína Em Pé

 

Da velha casa, só um esqueleto.

Toda lagarteada nas paredes —

a fazer crer seus donos e arquiteto

do outro lado das fomes e das sedes...

 

O telhado flutuando entre o afeto

do cupim com a madeira... agora em redes

de trepadeiras invadindo o teto

com a hera a exibir raivosos verdes...

 

Muros de taipa a pajear avencas...

Três bananeiras em mirradas pencas

e o sorriso de dálias doloridas...

 

Porões mofados recordando histórias

de moças “Catarinas” e “Vitórias”—

               contando a primos lendas tão compridas...

 

 

           Se Algo Ficou De Pé...

 

Se algo ficou de pé, foi o Saci —

que não seguiu os passos deste mundo.

Ou achamos, em nós, o Ser-Profundo,

ou confundimos Bach com bem-te-vi.

 

Mais perto do que tudo o que já vi,

está Ele: por dentro do segundo,

atrás do pensamento mais fecundo

e mais perto que tudo o que senti.

 

Para chegar ao topo da montanha

só nos resta subir, ir até lá —

sobretudo se a tal montanha é em nós.

 

Um Amigo fiel nos acompanha

pelo mundo e por nós: esse não há

              de nos faltar: há um rastro em nós de sua voz...

 

 

           

 Sessenta anos lidos...

 

Sessenta anos lidos e vividos,

mas nem por isso multiplicam ver-me...

O mundo, acaso, ainda é do verme

ou já passou aos senhoris bandidos?

 

Sessenta anos cridos e descridos,

e tudo ainda só um sonho em germe —

sonho de transitar de ser a ser-me

lá em tempos roupidos e despidos...

 

Tudo andando num fio de dialética,

essa acrobata físsil... sempre atlética —

do inconsciente ao consciente, e vice-versa.

 

Tudo ontem...  só um pouco mais viajado —

andanças de um sonhar: sonho voado

                        sobre as estampas de um tapete persa.

 

 

              Talvez Alguém Me Diga...

 

Talvez alguém me diga o que fazer,

nessa hora teúda e manteúda

nas mãos da Economia sabichuda

que exalta o rico e ao pobre faz gemer.

 

Talvez alguém me diga o que dizer

nessa hora global que já transuda

o suor gelado dessa angústia muda

de o homem fingir que é, e nada ser.

 

Aliás, dizer o quê, fazer o quê,

quando o homem se desliga da vontade

da Providência para impor a sua?

 

Quem sabe o homem não alugue um videokê

e veja que a canção da solidariedade

              se transformou em desemprego e rua?

 

 

Talvez Um Dia Desses...

 

Talvez um dia desses, Doroti,

encontro em ti coragem pra dizer

que o bom ( pra mim ) seria eu me esquecer

de me esquecer de me lembrar de ti.

 

Seria como ouvir o bem-te-vi

e abrir depressa a porta para ver

quem é que está a nos querer vender

caju, mamão, goiaba, sapoti...

 

Seria bom como pensar que a rosa

durara um mês no vaso e, na verdade,

nem ter havido vaso ou flor geniosa...

 

Seria bom como a felicidade

que de ti não depende... mas, sem ti,

                   como posso inventá-la, ó Doroti?

 

 

   Também A Rosa Tem...

 

                       Também a rosa tem sua beleza

apoiada no sopro da existência,

mas nem por isso nunca nem um maio

deixou de ser o sonho re-sonhado.

 

Uma viagem dentro de outra viagem,

um sonho sempre dentro de outro sonho,

chispas de estrelas a sonhar no barro —

a vida não é esse arder da luz?

 

Se não fosses morrendo em teu invólucro, —

se não morresses, Barro constelado,

quem é que poderia suportar-te?

 

Bicho arrogante! Forte-fraco. Ó homem,

se não cheirasses a mortalidade

                        como é que poderias ser eterno?

 

 

      Um Silêncio De Ardósia...

 

Um silêncio de ardósia... além do vento

mulato sobre areias de um deserto —

que o mental recriou num pensamento

a cavalgar um grito em campo aberto.

 

Lembrança beduína, em tom isento

de medo, a andar por céu a descoberto...

A morte sempre à vista: longe e perto...

A ousadia a zombar do sentimento...

 

Pegadas de saudade no por dentro

do sonho de provar-se bem mais forte

que a fraqueza a querer-se como centro...

 

Um silêncio entre notas de uma flauta

alevantando najas entre a malta

              que ama os laços que a vida tem com a morte.

 

 

           Vítima-Vitimante

 

               Lá em nossa arrogância-Titanic

não é de admirar que naufraguemos.

Trocamos nossas bênçãos pelo chique

luxurioso a faiscar em tons extremos.

 

A carne tem seus tiques e chiliques

e manda que pilhemos e empilhemos...

Nossa alma, de uma gula sem tabiques,

abarca no olho os sonhos mais enfermos.

 

Vive-se na mais santa veleidade...

A vida? Um amontoar de protoplasmas —

sem-nexo-rumo-nem-finalidade.

 

O homem vira uma coisa sem sentido —

vítima-vitimante em torres de aço e vidro.

              Pelas ruas, bandidos e fantasmas...