OS TRÊS LADOS DO RIO

  parte 1

                                     Laerte Antonio

 

 

     Enquanto metáfora de vida, um rio tem tantos lados quantos pudermos ver. Daí, entre outras coisas, este livrinho ser um exercício de ver-rever-transver pelo fazer-refazer, conhecer-conhecer-se, etc., por meio do contar e recontar numa atitude de sonho-mais a garimpar-se nas próprias águas. Viajei como um neutrino escrevivendo-o: já que partir-chegar era chegar-partir... Portos-viagens, viagens-portos de infindo viajar. Um viajar que é ser-em-ser-se. E tudo isso porque existimos uns nos outros e a vida é só o que temos, caro-cara Navegante. Um livro são pontes. Elos de ser a se querer bem mais.

     E o mais, o mais seja viajar.

     Um abraço.

                                                           Laerte Antonio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                               

                             Adultescências     

 

     Ela chega enchendo a tarde quente de brisas frescas a percorrer as varandas e o lá em mim ( vísceras adentro ). Brisas com cheiro, cheiro e gosto de menta. Sorri gostoso com seus suportes ortodônticos: sim, sorrisos rendados que se vão misturando com risos de prata...

     E aí, minha cara? — lhe pergunto.

     Nem “aí ”, nem “ai!” A gente vai: vai até ver que não está indo... Melhor: que nunca foi a parte alguma a não ser a parte alguma.

     E você, “rapaz”? — me pergunta, ainda rindo naquele timbre tilintante. Respondo em tom mimado:

     Eu nem vou, deixo-me ir: como bicho tangido que não quer apanhar...

.......................................................................................................

Aí me apego com os olhos aos seus cabelos cobrindo seu pescoço comprido: me apego aos seus cabelos fartos como folhas de coqueiro que arquejam cor de feno... Seus cabelos: bastantes e compridos, eternamente impecáveis.

      Minha vontade de tocá-los se enrosca toda neles, sedosamente. Um cheiro feliz de anis...

      Abraçá-la no inverno com seu jeito  macio é como morder a orelha de um sonho que é puro mel de jataí. Ah! E beijar-lhe o rosto, então?! E passar-lhe a mão na testa afugentando para os lados o cabelo?! E descer com a mão espalmada roçando-lhe o rosto?! E ter-lhe a ternura de um beijo trabalhado, artesanal, magistralmente molhado?!

      E ouvir-lhe um não seco como folha de outono ante um sonho todo molhado?! Um não  inexorável-inexpugnável...!!

      Abraçar-la em pé? Nem pensar! Sabe que o brim iria ficar bem mais cheio... e...

.......................................................................................................

       Sim, vamos, que é perigoso estar dentro do carro a essas horas.

       E agora: para quatro paredes ou para casas?

       “Para casa, que não entro nesses lugares!”

       Para casa, que ela não entra nesses lugares.

.......................................................................................................

  — E agora, veja: o que faço?!

  —Vá pra casa e afunde a cabeça nas cobertas: com esse frio,                                                      você dorme num instante. Amanhã telefono e lhe falo duas arrobas  de     delicadezas, como todos os namorados que não são namorados...

Não é o que você espera, já que não pode ser ao   contrário?...            

LA 08/04                     

 

 

 

 

                         

 

 

 

              Sim, Me Levem...

 

Bebi tanto, meus amigos,

bebi tanto!

Me levem para casa.

 

Bebi tanto, meus amigos,

bebi tanto da luz

dos olhos dela,

que me ceguei de mim, do mundo —

sim: me ceguei de ver

que a luz dos olhos dela

era um vinho do avesso

que me levava para dentro

do seu sorriso,

sorriso dela —

irmão daquele, meus amigos,

daquele

( terrível )

de Mona Lisa.

 

Bebi tanto, meus amigos,

bebi tanto!

Me levem para casa!

Sim, me levem,

me levem para a luz dos olhos dela.

LA 08/04          

 

 

 

 

          

 

           Entre Compadres

 

... me desculpe a comadre,

mas amor não acaba.

Que esperança!

 

O amor?

Mora entre as mãos.

Bem entre um beijo e outro.

Entre um  abraço e outro.

Entre um olhar e outro.

Um sorriso mais outro.

Aí é que vive o amor:

sempre apertado,

sempre entre entre.

Sempre bem entre —

até se tornar de casa:

então, entra pra dentro.

Cara de pau,

fica de casa. E

ama ama ama ama ama ama ama...

naquela eterna amação:

até esgarçar as vontades,

até vidrar o desejo,

até ficar zonzo-zonzo,

com calorias a menos...

 

O amor é bicho guloso —

quanto mais prova mais quer

e nunca que acaba não.

Só acaba de faz de conta,

mas acabar de vez —

chegar num fim final?

Ah, isso nunca de nunquetas!

Se foi pro brejo aqui,

procura ali

terra mais firme.

Mas findar, amor não finda.

Pode ( repito ) quando muito migrar

se um dos lados que o prensa

( como foi o caso,

pobre comadre!

do droga do seu marido... )

se esquece de fazer a sua parte

que é: amar amar amar amar amar...

até cansar o beiço,

até ...

Se um se esquece ( dizia ),

aí, sim, as uvas já não dão vinho —

só vinagre dos brabos.

........................................................................

Mas morrer? Amor dos bons

nunca que morre não —

vai mais é trabalhar,

trabalhar noutras vinhas.

LA 09/04

       

 

 

 

 

E Esse Vento O Que Diz...

 

E esse vento o que diz pela caatinga

em reza seca, quebradiça e tão chorosa?

Já nem sei se blasfema, ou chora, ou xinga...

ou se só faz da noite uma glosa: uma glosa

 

furiosa a desfolhar rosa por rosa —

loucas, bem loucas a cantar em língua

morta uma tal canção, que de nervosa

dá íngua em escutá-la, muita íngua...

 

e faz gemer de solidão o escuro

que arranha e morde o musgo desse muro

ao pé do qual Maria lava roupa...

 

Maria? Mas Maria não morreu?

Aquela, sim! Mas esta toma sopa,

namora o Zé, e acha chatice o céu...

LA 09/04

              

 

 

 

 

             

Primeiro/a

 

Abençoados os que se esquecem —

têm sempre o primeiro orgasmo

e sempre pela primeira vez

( sem saber, portanto, o que é )

ouvem a palavra “não”.

Abençoados os que se esquecem —

estão eternamente prontos

a se enganar pela primeira vez.

LA 09/04

       

 

 

 

 

          

 

Mete A Cara!

 

No amor-paixão?

Claro que és um babão.

E sem amor, nem paixão?

És apenas um quase:

um lambão —

a perguntar aos outros

se o doce é bom.

 

Com paixão ou não,

isto é: com o diabo que for —

mete a cara, meu velho,

ama do jeito teu —

antes que o tempo assopre

o punhado de pó que és.

LA 09/04

     

 

 

 

 

         

 Se Serve Nunca

 

As pessoas nos vêem

de fora para dentro.

À medida que vão nos vendo

de dentro para fora,

em geral, não nos aceitam

e se empenham em nos ir mudando —

à imagem-semelhança delas,

ou de seus interesses.

Sim: de seus interesses.

 

Nunca servimos como somos,

nunca nos querem assim...

Pra canalha

não falta nada a ninguém.

LA 09/04

         

 

 

 

 

         

Sábia É A Rosa

 

Deus acaba de fazer esta manhã,

e ela é tudo o que temos.

Sábia é a rosa

que esplende

sem nenhum medo da tarde

nem da noite.

 

Sábia é a rosa

que esplende

e seu rápido brilho

lhe é toda a eternidade.

Sábia é a rosa,

que nem sabe de si,

e é toda brilho e graça.

LA 09/04

                       

 

 

 

 

                  

            A Margem De Lá

 

Tudo o que é bom

está na margem de lá:

os pígios de Deolinda,

o sorriso ( puro orgasmo )

da Francisquinha cheirosa

e frágil

que vende lingerie,

o busto da juíza Severina,

os coelhinhos de Regina,

sempre olhando para cima...

( vontade de pegá-los

pelo focinho!... )

De Regina com suas pernas

a bordar quaisquer panos...

 

Sem dúvida, tudo o que é bom

está na margem de lá.

Inclusive Rosinha —

apocalipticamente em riste

com suas lanças mamárias...

 

Sim: tudo o que é bom

está na margem de lá.

O andar saltitante

de Laurinha

que delicadamente,

divinamente leve-leve,

levitandante

( com aquele olhar e sorriso

entre o choro e o gozo )

faz deliciosas omeletes

batendo ovos

com saltos finos saltos finos...

 

Ah, meu Deus, e Teresa,

que enrosca no gingado

o pensamento dos rapazes

( e os da gente, claro! )

e os faz girar na cabeça,

nos pés, nas pernas, no umbigo...

até lhes dar tonturas?!...

 

E Biláudia, Minha Nossa?!

Essa tal então mia...

Mia?

Sim: mia, ela mia sobre o muro

chamando os seus muitos gatos —

e começam a derrubar tijolos...

Seu miado lacera

e faz chover.

Chover?!

Chover e relampear.

 

E tudo na margem de lá,

tudinho.

Sim, senhor: nada pro nosso bico,

pra nossa mão,

pro nosso beiço,

pro nosso sonso

sempre sofrendo de coriza...

E viva,

viva a outra margem,

nossas secretas                                        

alternativas.

LA 09/04

       

 

 

 

 

 

 Ponto-Encontro

 

Hoje é o dia

que Deus acaba de fazer —

nele podemos: causamos.

 

Hoje é o fruto nas mãos

( fruto tríplice ):

a polpa do presente,

o sumo sazonal,

as sementes do amanhã.

 

Hoje é o ponto-encontro

de todo fazer-criar:

o ponto em que se apóia

nosso crer que podemos.

   

Sim: o hoje borbulha

a alegria do Senhor —

que é a nossa força.

 

E a frágil flor da vida

sorri confiante

e calma

na fustigada haste

do hoje.

LA 09/04

                

 

 

 

 

 

 Distribuição

 

A quem levaste o trigo que era meu,

o vinho ( meu e teu ) todo alegria —

pra quem os deste tu, ó minha Lia,

se na mão tinhas quanto Deus nos deu?

 

A quem deste o consolo que era meu,

nossa ternura antiga: essa alegria

pra quem as deste tu, ó minha Lia,

se te confiei o quanto Deus nos deu?

 

Com quem amaste o amor que já não posso?...

Não me juraste amar dia após dia

o amor que era nós dois, ó minha Lia?

 

A quem levaste a íntima alegria

cuja força era em nós medula e osso?...

Te fez bem presentear o que era nosso?

LA 09/04

          

 

 

 

 

 

Pois É

 

O charme das coisas

é elas estarem acabando.

Sim: a vida é bela

porque é chama entre cera.

Fosse eterna,

seria insuportável.

LA 09/04

              

 

 

 

 

 

 Leãozinho

 

O bonito dos cabelos,

leãozinho,

é eles serem desmanchados

por mãos que dialogam com as brisas...

 

O belo de toda vida,

leãozinho,

é inventarmos sua beleza.

 

O mágico dos sonhos,

leãozinho,

é eles trazerem em si

suas sementes.

 

A verdade da mentira,

leãozinho,

é sabermos ( de lado )

que ela podia ser verdade.

 

A glória do coração,

leãozinho,

é ele pensar

( com calmo sentimento )

que é amado e esperado.

LA 09/04

 

 

 

 

 

 

Ah!...

 

Se o saldo

for uma gargalhada,

pediremos a Deus

nos dê uma garganta bem sonora

e alvos dentes.

LA 09/04

 

 

 

 

 

 

Entre espinhos e pétalas

a mão aprende a pensar.

LA 09/04

               

 

 

 

 

 

               Verdadeiro Relax

 

Até que lero-lero é bom.

Chato mesmo é coisa séria —

sem riso nem humor,

jeito formal:

cara de fim de mundo,

rictus de poderosa,

prendadamente babaca.

 

Falar do tempo?

Não é pobreza não.

Pobreza é pensar que somos ricos

de assuntos

e que isto e aquilo

interessam.

Interessam não, senhor!

Não, senhora!

Falando bobagens sobre o tempo,

ao menos nos livramos de dizer

tolices deslumbrantes

ou coisas que entediam

até as pedras lambidas de mariscos.

 

Tolo é pensar que se pode preencher

o vazio extremo dos sentimentos

que a realidade escavada entre as pessoas

torna cada dia mais arenosa...

 

Falar do tempo

é urbanidade

e boa educação.

E uma maneira de ouvir vozes.

 

Chove?

                                               O jornal diz que sim...

Que poeira, não?

                                               Terrível!... Mas logo temos chuva.

Sol pra ninguém pedir mais!

                                                Delícia! Faz bronzear até...

 

Comentar do tempo

é falar gostosamente

sem dizer nada —

enquanto cada coisa gira

no competente Universo.

Verdadeiro relax

no inútil de cada dia.

LA 09/04

        

 

 

 

 

 

O Que Este Vento Diz... 

 

O que este vento diz é que está frio,

muito frio ( talvez tenha chovido

lá pros lados do norte ). Ouça o gemido:

seu gemido transido de arrepio...

 

Parece mais um grito, um assovio

a esburacar a noite num zunido

de asas tão ríspidas que seu sonido

tem mais o chiado, o som de um largo rio...

 

Ouvindo-o aqui na sala, fecho os olhos

e me deixo levar no seu rugir...

Sim, me deixo levar lá em ouvi-lo

 

escuro adentro... longe a refugir

num singrar ríspido por entre abrolhos —

seu violino vibra feito um grilo...

LA 09/04     

 

 

 

                  

 

            A Gente Faz Como O Vento...

 

Viver é estar enganando a morte,

enganando a morte...

E este é o nosso maior tesão:

enganar a morte.

Claro, nosso maior tesão —

com pena e tudo.

 

Por isso e por aquilo

( que não se compra por quilo ) —

aproveitemos, amada,

aproveitemos sempre

pra não dormir.

Sim: muito gostosamente

a gente vai enganando,

não só a morte,

mas sobretudo a vida,

que finge

não ter nada com isso.

 

Coisa boa seria

a gente não estar lá

quando a Bruxa chegasse...

Mas não tem jeito não, minha Amiga,

vem um dia em que o instante

nos falta aos pés...

                                   e ela nos pega .

E adeus-me as tuas pernas!

......................................................................

Mas até lá, minha cara,

até lá, quer dizer:

até aqui  virar lá,

a gente faz, minha Rosa,

a gente faz como o vento —

passa, sim, passa sempre,

mas despetala despetala despetala...

LA 09/04

         

 

 

 

 

 

Davar

 

Realizada pelo verbo,

o verbo é a coisa.

E qualquer coisa

é mais que si mesma:

traz nela um estado

que quer ser... ou mais:

quer ser-se.

Sim, para ser-se

tem que partir-chegar-chegar-se:

lá em si chegar-se.

 

Sonado pelo verbo,

o nada se torna coisa —

e esta ganha um lugar

que será seu —

bem antes de Abraão

e do riso de Sara...

 

Tem seu lugar no espaço —

porque é.

Tem seu lugar em si —

porque se é.

Tem seu lugar no devir —

porque é seu próprio transcender.

 

Verbo-coisa

real-virtual:

antes-depois,

ontem-agora-sempre —

deseternamente eternos.

LA 09/04

      

 

 

 

 

 

Sejamos Irrazoáveis!

 

Se a vida pouco apresta,

sejamos irrazoáveis:

fiquemos de bem com ela.

Não é o viver um modo de lograr a morte?

Pois então tenhamos paciência,

inclusive com nós mesmos —

o que é que ganharíamos

naquela terra gorda de esperanças,

jamais realizadas?

E além do mais, vivendo,

podemos continuar mentindo

para a infelicidade

aquilo que nunca foi —

que nunca foi mas tem passado,

tem passado por baixo da catraca,

seguido viagem

e até feito acreditar.

 

Sim: sejamos irrazoáveis

toda vez que a razão

se vangloriar ao lado da fé,

ou do amor,

ou da bondade...

e agradeçamos,

agradeçamos a Deus

pelo viver

que é um modo de O irmos hospedando

em nós

e ao mesmo tempo  de Ele ir nos sendo...

até que O sejamos igualmente em nós.

LA 09/04

           

 

 

 

 

 

Convivência

 

Sim, metabolizei a solidão —

anos e anos depurando-a... anos

e anos esfregando raros panos

em seus cristais: tinindo em fina mão...

 

Sim, metabolizei a solidão —

transmutei seus delírios mais insanos:

vivi meus sonhos, meus fiéis enganos,

e me deixei filtrar até o porão...

 

De lá subi com ela e, hoje, nós dois

somos um só nesse cangar de bois

por mesma estrada em plácidos mugidos...

 

E já não dói seu doer de alcoviteira...

Apenas uma dor já companheira —

doeres que nem são mais doloridos.

LA 09/04

           

 

 

 

 

 

A Minha Madalena...

 

A minha Madalena ia e vinha.

Ficava um pouco e, ardendo de saudade,

tinha lá seus chiliques-ansiedade —

e corria lidar em outra vinha...

 

E eram vindimas e vindimas: tinha

o impulso, o amor pela diversidade...

Trazida pelo deus-necessidade,

voltava com o anjo-carochinha...

 

A minha Madalena era prudente —

voava, sumia... mas voltava à casa:

amava avulso e era mãe decente...

 

A minha Madalena era uma brasa

que cozia a picanha lá da alta...

e erguia velhas najas com a flauta.

LA 09/04      

 

 

 

 

 

 

 

Soneto Brega ( Para Pessoas De Classe )

 

Olarila! Que mulherada boa!

Boa demais. Tão boa quanto à-toa.

Gostosamente à-toa, e que se diga:

louquinhas pra livrar-se da loriga...

 

e enfrentar dardos, flechas, lanças com a

graça e satisfação de uma canoa

águas abaixo em que o singrar periga

mas dá maior prazer: a história é antiga...

 

Olarila! Que cheiro de xereca

recém-lavada, cheiro bom de uvaia

a povoar os nasais por toda a praia...

 

Olarila! Pendura esta cueca

na palma do coqueiro, minha nega,

e vem, chega pra cá, nuinha, chega!

LA 09/04

         

 

 

 

 

 

Pernas Pra Quem Te Gosta!

 

Corre! Pernas pra quem te quer! Não cases,

a não ser com a filha do padeiro

que morreu de saudades do leiteiro

que era vizinho e sofria de antrazes...

 

Sim, vivia deitado com os atrases

para as telhas, suando qual guerreiro

virtual ( de vídeo game ): trapaceiro,

porém, disposto a refazer as pazes...

 

Pernas pra quem te gosta, meu amigo,

mas corre segurando o teu umbigo

que, se desparafusa, adeus anel...

 

Corre, pernas pra quem te quer! Te esconde,

na igreja, corre e espera-as... pois mais onde

podes fazer amor perto do céu?

LA 09/04

     

 

 

 

 

 

Cheiro Feliz

 

Era um cheiro feliz

de anis.

Alguma coisa,

por fora esquecida,

fazia recender assim.

 

Sempre que passava

por aquela ruela

algo em mim

desprendia alegria

com aquela tal fragrância

( discreta )

de lavanda.

 

Uma brisa interior

conversava pruridos

de um relembrar pelos fiapos —

uma lembrança quase a parir

os sonhos gestados

naqueles dias...

Ao mesmo tempo

em que um cheiro de anis

trazia ao senti-lo

um lembrar esgarçado,

mas, mesmo assim, feliz.

 

Sei lá o que é que outrora

fizera percutir

( em mim )

a sombra da lembrança

desse perfume —

um cheiro feliz

de anis.

LA 09/04

                       

 

 

 

 

 

                  Tô Que Tô!

 

    Tô nem aí!

    Nem aqui?

    Não. Nem lá,

nem mais longe

ou acolá.

Hoje estou virtual —

sou sem estar:

inespaçado.

 

Hoje sou

sem um espaço

que oferecesse um porto —

um partir sem chegar

nem aí

nem aqui

nem lá.

 

Tô nem em mim!

Nem em ti, minha nega.

Nem em nada.

Apenas tô.

Tô-não-tô.

Uma vontade, amor,

de comer goiaba

e tirar as sementes

com teus beijos.

LA 09/04

        

 

 

 

 

 

Solilóquio Sem Fim...

 

Solilóquio sem fim, gorgolejante,

arrepiado de medo, medo e frio —

molhado solilóquio desse rio

a correr por nós dentro obnubilante...

 

Chiado sob bruma circundante

em que o ser se viaja no alvedrio

de saber-se uma luz no próprio cio

de recriar-se em seu rumo caminhante...

 

Solilóquio entre a alma e o coração

em que aquela se diz a tapeceira

e este o material do tecelão...

 

Aquela a se tecer a própria asa

com a luz que este lhe deu a vida inteira

por jamais se esquecer do caminho de Casa.

LA 09/04

      
 
 
 
 
 
Amálcol

 

A amizade,

como o álcool —

uma alegria,

uma euforia,

amenidades,

empolgações...

Logo depois —

um vazio doído,

um nada arrependido,

um ruído infeliz...

..........................................................

Mas assim mesmo

sempre pensamos

num outro encontro,

numa outra dose.

LA 09/04

       
 
 
 
 
 
Sancta Mediocritas

 

A própria vida exibe

uma dor insolente

entre o olhar e o sorriso

da criatura humana.

 

A vida nos profetiza

seus condicionamentos —

e os vamos revivendo

por clichês culturais,

por hábitos

e comodidades...

E assim vamos costurando

uma camisa de força

para a nossa liberdade.

 

Ou seremos os donos

das rêmiges

de sentimentos que pensam,

de pensamentos que sentem —

ou viveremos conforme

a santa mediocridade

de cada dia.

LA 09/04

             

 

 

 

 

 

Cialis

 

Suba,

veja lá de cima:

a cidade iluminada,

entrecruzando-se,

caminhando —

a cidade à procura de si mesma...

A noite arde no entre pernas.

 

E o que se vê daí?

Que a gente é mais um entre os muitos —

um pobrezinho um: só mais um...

entre pobres eus inúmeros —

buscando meios de não estarem sós...

 

Máquinas indo e vindo —

a cidade gemendo:

a cabeça erotizada

com seus sonhos quentinhos

feito pães...

Pães não: feito seios crocantes...

Feito pernas que metralham

( ainda bem que estamos

com coletes de aço... )

Feito bocas que devoram

com seus dentes de lanças —

arrasadoras...

Feito bundas trabalhadas

a cinzéis-pincéis-estiletes...

Feito xotas cujas vulvas

olham caolhas,

desbeiçadas,

amarfanhadas após aposes.

Rios ribeiras riachos...

LA 09/04

         

 

 

 

 

 

Se Me Vires Andando...

 

Se me vires andando por aí

atrás de coisa alguma, atrás de nada —

olha do Carmo: diz que és minha amada

e que me gostas como o bem-te-vi

 

que ama dizer que viu o que não vi,

seja num fim de tarde menstruada

ou por sedas da alba em hora chuviscada

da beleza feroz que vem de ti.

 

Sim, do Carmo: confessa num segundo

que não te importa fosse eu Raimundo

ou André, nem herói ou vagabundo...

 

mas, sim, do Carmo, que te importa muito

todo sonho preserve um belo intuito,

já que amar nunca deve ser fortuito.

LA 09/04

       

 

 

 

 

 

Tiques-Manhas

 

A felicidade é um produto

que azeda à toa —

e não tem anticoalho não.

Azeda à toa —

principalmente aquela

que é batalhada a dois.

Mais que depressa é preciso

( conselho do meu compadre )

aprender quando e como

fazer uso da geladeira...

No verão das relações

as coisas estão sempre

naquele ponto

do azeda-não-azeda...

Descuidou, leva o diabo.

Se bem que há tiques-manhas

tão melindrosos, tão de seda,

que azedam mesmo

no freezer.

.............................................................

Meu compadre é que tá certo:

“Enjoamento, André,

nunca ajudou ninguém —

o amor a gente aceita e consome

mesmo meio coalhado...”

LA 09/04

                                       

 

 

 

 

 

    Por Um Triz     

 

     Sabe quando a solidão quase te engole e você escapa dessa anaconda apenas por meia volta de pensamento? Pois eu estava meio engolido ( só da cintura para baixo fora da boca da bicha ), quando tocou o telefone. Espirrei ensaboado para o fone, mas antes que alguém me respondesse ao “alô!”, me veio à mente, ou melhor, a todas as minhas células o quanto pode a voz humana: a beleza e o poder do timbre humano. Quando sua voz de contralto abriu em flor aquele “oi Fulano!” ,toda untada de cremes afetivos e sonhos das arábias, e me disse: Vamos sair?, então a vida ganhou novamente sentido. Tomei um banho, enfiei uma roupa, e mergulhei de cabeça naquelas águas termais: cheirosas, claro-escuras, erótico-divinas. E aí vivi: divinizei a noite, que já girava nos seus eixos: graças ao seu sorriso de jasmim.

      É sempre assim: estamos sempre por um triz.

     LA 12/ 04                         

 

 

 

 

           

 

 

             De Repente

 

 

De repente, a velha casa

já não era em casa...

A gente já não era em nós,

era só o avesso

de uma voz que já não se ouvia,

de um amor que já não amava.

Sim: tudo assim tão de repente

como estrada que desbarranca...

ou grito coberto de água pesada...

Todos os velhos fantasmas

corriam a se esconder por entre os juncos

com água até a cintura...

..............................................................................

As crianças cantavam na grande área,

cantavam e jogavam a amarelinha...

...............................................................................

“Venham comer! Venham comer

( era a voz da minha mãe ),

que a vida ainda não acabou...

e só acaba quando Deus quer’’.

A gente então levava um tranco

e ia pondo o nariz

no nível de costume.

Tínhamos que reaprender rapidinho:

a vida não é do lado dos fracos

e nem sempre passa geléia

no nosso pão.

LA 10/04

           

 

 

 

 

 

Felizmente                                                        

 

E lá se foi

pirambeiras abaixo

o cabriolé

do amor.

Ainda bem

que não estavas junto.

 

A amada?

Havia saltado fora

muitos e muitos anos

antes da viagem...

........................................................

Sim, felizmente,

só a metade de um amor

( que já nem existia )

morreu.

LA 10/04

        

 

 

 

 

 

Um Novo Modo

 

Também eu

nunca aprendi a viver.

Sempre que estava quase,

a vida apresentava

um outro esboço —

novo jeito e brilho interiores...

A lagarta virava borboleta

num ritual de asas

entre as flores e a lama

da chuva da noite passada.

E quietos, sem alarde, eu e Rosa

bebíamos nosso vinho

pelo avesso do sonho...

Sempre sobrava meia taça

da nossa última conversa.

E esse era mais que o princípio,

bem mais,

de outra nova aventura —

mais uma triste ventura

reincidência cor de amora...

já rindo de infelicidade

de seus fiéis enganos —

desventuras felizes,

esperança esfiapada,

como quem vê os olhos da vizinha

conversando com os girassóis...

Mas nem por isso tínhamos o condão

de convencer os duendes a bater

a corda do arco-íris

para as ninfas e as fadas

que tremiam de medo

do atrevimento dos sátiros —

sempre desabusadamente prontos...

E apesar do preconceito,

o Saci nos ensinava

um novo modo de andar

por trilhas interiores

que nos liberta ( dizia ele )

de ser escravos dos passos deste mundo.

LA 11/04

           

 

 

 

 

 

Não Muito

 

O inimigo do nosso inimigo

é sempre gente boa.

Se bem que a gente sempre vende mais

do que pode entregar.

Aprendamos com calma,

e ( claro! ) também desaprendamos...

Com calma.

Porém, não muita —

que não dá tempo.

Sejamos irrazoáveis...

pero no mucho,

no mucho.

Sobretudo não tenhamos a pretensão

de lançar pérolas...

Nem aos porcos,

nem aos poucos.

Antes façamos delas

um colar pra nossa nega,

que há de — agradecida —

caprichar mais, bem mais

lá em suas perícias....

LA 11/04

          

 

 

 

 

 

Novas Espécies...

 

É do caos que se vai puxando

todo criar.

O cosmos é arte pura —

harmonia constelada

com vertigens de infinito.

A perfeição imperfeita,

a verdade jamais verdadeira,

a beleza que nunca foi bela —

tudo um esboço de devir

a transcender-se e transcender-se...

 

É nos entrelugares da vida

que plantamos novas espécies

de um sonhar que se abre em nós...

e lá em veredas de fazer-criar

transmutamos nossa angústia

em realização

e auto-realização.

 

Fazemos arte

sempre que organizamos

a desordem do instante em nós.

LA 11/04

          

 

 

 

 

 

Nau Sem Rumo

 

Te dão um porre

de idéias,

de sonhos

e te fazem dançar

a dança da esperança —

esperança que murcha

como o pão que amanhece.

Esperança que o povo leva ao fogo

a ver se lhe recobra a alma

para lhe ouvir o crocar...

Esperança ressuscitada

em cabeças pensadas,

em corações sonhados —

por rotas já desenhadas

e caminhos já traçados

a cujas margens acenam

prêmios premeditados.

Sempre uma nave chegada antes

de haver o porto...

..............................................................................

E quase nem se percebe

esse andar-correr-voar

lá para lado nenhum

de um refazer a realidade

à imagem-semelhança

dos espelhos que o homem tem quebrado...

Finalidade sem fim:

zonza de um rum pirata —

Nau sem Rumo...

Saúde!

Tim-tim.

LA 11/04

          

 

 

 

 

 

Bicho Feio

 

Família? Bicho feio,

mesmo pra quem não a tem.

A quem a tem, — por tê-la.

A quem não tem, — por não tê-la.

Sim, não é bicho

de se pegar com a mão.

Melhor que tê-la

não é não tê-la —

mas tê-la como aquele

que não a tem.

LA 11/04

       
 
 
 
 
 
Pobres Canalhas

 

Aquele diabo velho

que guardas na garrafa

e que fazes subir

nos momentos em que é melhor

uma má companhia

do que estar sozinho —

ainda bem que o tens:

muitos há que jamais se deliciaram

com o seu modo podre

de fazer despencar

do seu plácido sorriso

todo o Universo —

sem esperança.

Aquele diabo velho

foi o amigo que não te deixou

quando os dias eram maus

e os teus cínicos amigos

te beijaram no rosto —

sinal para sua mulher

molhar-se décadas e décadas

com  esses pobres canalhas.

LA 11/04

      
 
 
 
 
 
Belas e Amaras

 

As coisas belas

não deixaram seqüelas —

antes, são aquarelas

a nos pintar as telas

com as suas formas nuelas.

 

As coisas raras

e nem um pouco amaras —

serão caras, muito caras

ao coração em suas aras

pedindo graças tão claras.

 

E a vida de mãos avaras

há de beber das procelas

enquanto, amor, tu me saras

de suas dores tão belas —

tão belas quanto amaras.

LA 11/04

       
 
 
 
 
 
Tempos

 

Maus tempos,

bons tempos.

Nem tão maus,

nem tão bons:

não durar

é toda a sua beleza.

 

Maus tempos,

como éreis bons!

Não, nem tanto,

nem tanto —

também os bons

vão se tornando maus.

 

Maus para uns,

bons para outros,

ou, se quiseres,

bons e maus.

LA 11/04

           

 

 

 

 

 

Cantoesia

 

Canto porque cantar é o ar

que inspiro

e quando o expiro

já não é ar —

é pneuma-poesia.

 

Sim,

a vida que respiro

é transubstanciada

em algo paralógico,

multiversal —

a poesia.

 

Escrever é uma mania

como ser triste ou ser alegre.

Escrever é atravessar do outro lado

e voltar com as mãos

cheias daquele barro constelado...

que rápido vamos moldando

segundo imagem-semelhança

do que sonhamos.

 

Escrever faz a alma abrir em flor

sobre o branco do sulfite                       

e vai dando sentido

ao seu vazio.

 

Escrever é a gente

ir-se reconstruindo em algo mais...

com a consciência lúcida

de que a vida

não é isso que vivemos.

LA 11/04

                       

 

 

 

 

 

Concientes

              ( Para o casal de quem fui um dos padrinhos,

                  há poucos dias )

 

Passaremos por entre as estações

a palmilhar a dois a mesma estrada

que de há muito vem sendo reiventada

pelos passos de belos corações...

 

Transmudaremos caos e escuridões

em gorjeios de luz em clarinada —

nossa vida há de ser abençoada!

Sim: faremos correr assombrações...

 

Saberemos que o mundo é só uma ponte...

e a vida, um dom que faz cada horizonte

reinventar-se na próxima paisagem...

 

Saberemos que bem à nossa imagem

é o quanto construímos entre os dias:

nossas ações nos deixam suas crias...

LA 11/04

           

 

 

 

 

 

Ah... Aquela Vaca!

 

A vaca só falava em ordenhês

e branqueava a boca das crianças...

A vizinha perdera as esperanças

de ela lhe dar iogurte em tons xadrez...

 

O seu John, que a tangia, era um inglês

que lhe ensinava a língua com nuanças

de anjos cantando bem-aventuranças

a deixar quem as ouve seu freguês...

 

Dorothy, sua filha, se agarrava

ao rabo da mimosa, e balançava

bem gostoso: daqui pra lá, de lá pra cá...

 

E a vaca tinha um tom tão alvo no mugido

que tingia de branco o velho ingá

com cara de ricota e um tronco embranquecido...

LA 11/04

        

 

 

 

 

 

Gesto Comunitário

 

Ficava segurando um estopim

sempre que o cônjuge pegava o trem...

Então abria a ducha até o fim

e entoava mantras num estilo zen...

 

Cantava até espalhar prurililim

que esvoaçava e traduzia bem

alto ( para a vizinha ) o seu esplim —

o duro suspirar por quem não vem...

 

E a boa da mulher, tão-logo ouvia

seu túrgido gemer, escapulia

e vinha lhe trazer a compreensão...

 

E a pobre orava, orava: em tom ungido

de compungir o pobre do marido

que a ficava esperando no portão.

LA 11/04

             

 

 

 

 

 

E Há Uma Outra...

 

E há uma outra, uma outra margem,

lá no avesso das outras duas...

Sim: a interior,

a que tem sempre meio copo de vinho

para a próxima conversa...

Esta de certo modo traz em si

aquelas duas normais-invisíveis

que, aliás, também a são —

mas não se sabem:

sim, as três se são

sem se saberem interexistentes,

nem ( muito menos ) introviventes.

 

Tais margens dependem

dos olhos das pessoas

que as têm para se ver —

sim, como seus espelhos,

multiversais.

Esta margem

é o caminhar de muitos

lá por veredas de si mesmos —

o humano a escavar-se

na luz que traz em si

a construir aquele estado-ser

de transcender-se.

Sim, esta margem

só é existente no âmago da luz,

e poucos, poucos têm acesso a ela.

LA 01/05

           

 

 

 

 

 

Nesta Hora...

 

Nesta hora da noite

os grilos dizem coisas niqueladas

tentando seduzir as estrelas.

Se soubessem que estão tão longe,

por certo fariam como nós —

perderiam a esperança.

Mas não: não são homens, são grilos,

por isso vibram tranqüilos

sua rabeca para o infinito —

não sabendo ( a não ser de lado )

estarem, como as estrelas,

dentro de seu brilho e canto.

LA 11/04

 

 

 

                      

 

                        

               Basta Um Pedaço...

 

Basta um pedaço de papel,

uma caneta

e o percutir de uma nota —

e chovem sons em palavras

que dizem exatamente

que esta madrugada é bela

porque é apenas

a antecipação do dia,

e o dia —

somente mais um giro

dentro de um tempo a passar

de mão dada comigo

( ele e eu por nós dentro...):

com a diferença

de que ele vai para trás

e eu para a frente —

a fim de nos encontrarmos

num mesmo porto

onde muitos de nós mesmos

fomos nos desdobrando

em bandos de entes-eus

sempre em busca de nós-eus

para uma redenção final —

por nosso eu-consciência atual

(se) renascido em Cristo.

LA 11/04

          

 

 

 

 

 

Lembrança Em Flor

 

Entre as folhas a brisa é um soneto —

um bisbilho arrepiado... ( Um manso e leve

chiar pelo papel: lápis que escreve... )

dentro da tarde quase em longo preto...

 

E vai e volta um murmurar discreto

pelo jardim e a área... e até se atreve

a dançar com a folha em giro breve —

o amarelo a acenar o último afeto...

 

E agora um vento frio, e mais ligeiro,

traz um perfume como companheiro,

um perfume a lembrar um tal chiquê...

 

Sim, e insiste em lembrar, não sei por quê,

um jasmineiro em flor, um jasmineiro

que se parece muito com você.

LA 11/04

 

 

 

           

 

 

A Ave, Por Dentro Do Seu Vôo...

 

A ave, por dentro do seu vôo, passou

em busca de si mesma, além do muro

que separa ontem-hoje do futuro

e muda em somos, nosso pobre eu sou...

 

Em suas penas a ave ultrapassou

seus limites, seu rumo e o lado obscuro

do seu destino e entrou no nascituro

sentido que é seu cio além do vôo...

 

E adentrou as origens do seu ovo

lá em si, e nasceu, nasceu de novo

de um renascer em si de um outro alar-se...

 

De sorte que a tal ave se faz nave

lá em seu trans-sonhar: um além-ave,

além-vôo lá no seu ultrapassar-se...

LA 11/04

                    

 

 

 

 

 

Encarecidamente

 

Um verniz, só um verniz.

Raspa-o,

e logo achas o primata —

rugindo em todos nós.

 

Nascer de novo, meu caro,

é algo que balbuciamos ...

Beber o vinho do avesso,

comer o trigo pelo sonhá-lo

e metabolizá-los por espelho —

quem sabe não é esse o caminho?

 

Sim, quem sabe não é esse

o ingrediente cultural,

o rumo, a estrada, a arte:

o ingrediente trabalhado em humano

que há de permear o que somos

e nos plasmar em nós lá dentro

um querer dúctil, moldável

que haverá de constelar-se...

e ser  — já verniz não — mas brilho,

brilho de dentro para fora —

que se torna uma luz que ilumina

e que nos vá mostrando aos pés

aonde devemos ir...

Sim, podemos processar em nós

essa luz

e um dia a sermos...

Amá-la encarecidamente —

é processá-la.

Teremos recordado

que sempre fomos essa luz —

e que devemos deixá-la

brilhar de nós para o mundo.

LA 11/04

       

 

 

 

 

 

Confiante Desconfiança

 

Quem é que me assegura que seguro

estou aqui, ali ou mesmo em mim?

Ou detrás desta grade, ou deste muro —

ciberfeudos virtuais ou coisa assim?...

 

Quem me garante que esse meu seguro

cobre chulé e pé e pingolim?

E o molejo da amada e seu futuro

empenho pela casa e amor por mim?

 

E quem pode jurar-me que esse juro

de manter meu seguro não é puro

fingir de uma promessa-segurança?

 

Sim, senhor: a confiante desconfiança

de que nosso mais certo e real seguro

é viver em eterna insegurança.

LA 12/04

          

 

 

 

 

 

Esquentes Não, Que Podes...

 

Esquentes não, que podes muito bem

evaporar ou derreter: és água,

quase só água e, dentro dessa frágua,

viras nuvem por esse céu além...

 

Olha o nível da caixa! E roda sem

ultrapassar o risco dessa mágoa,

desse ódio charmoso... antes enxágua

a ira abrasada num tranqüilo bem.

 

Dentre os vilões solertes que hospedamos

a autopiedade, em seus liriais recamos,

tem feito muito estrago por aí...

 

Não deixes nada doer que não suportes...

já que a vida tem renasceres de per si —

num só viver morremos várias mortes.

LA 12/04

                

 

 

 

 

 

Alegria

 

Amo a alegria por ser como a luz —

ilumina sem demandar motivo:

além de ser um dom, alento vivo

que não cobra ou exige nem reduz...

 

Amo a alegria que de si conduz

a força do Senhor a nós: um crivo

de bênçãos a esparzir seu redivivo

gesto de sons e dons vindos da luz...

 

Amo a alegria porque nada pede:

sim, não depende de nenhuma rede

de nadas: nem de prosa ou poesia...

 

Amo a alegria como quintessência

de um rumo-nexo em ciente travessia...

Amo-a como sentido da existência.

LA 12/04

            

 

 

 

 

 

Bem Provável Me Vá...

 

Bem provável me vá antes de ti,

mas me podes ouvir na voz de agosto —

o vento dialogando de dar gosto

com os ramos deste bosque e o bem-te-vi...

 

Aquela paz alegre que vivi,

a percorrer-me, da alva até o sol-posto, —

hás de senti-la na alma e pelo rosto

sob folhas dançando aqui e ali...

 

Já terei me abraçado com a luz,

feito da vida a minha travessia...

achado o meu tesouro em Quem o pus...

 

Você? Ah! Sem chiquê: busque outra mão

com quem tenha a poesia-companhia —

e façam do caminho uma canção.

LA 12/04

       

 

 

 

 

 

O Bem Mais Próximo

 

O mais belo entre nós,

minha Rosa,

é a distância —

que nos conserva a delícia

deste afeto

e o anseio

de sempre novos encontros.

 

Sim, a distância

é o nosso bem mais próximo

e belo:

assim como o grandioso —

fantásticas geleiras...

terríveis furacões...

picos rarefeitos...

oceanos revoltos...

vertigens abissais...

Tudo belo, demais belo —

quando visto na tela.

................................................................

Por isso estar com você

é a arte

de ir bebericando

uma taça ( só uma )

de um vinho que a cada gole

vale um delírio —

no atempo de degustá-lo.

LA 12/04

        

 

 

 

 

 

Sim: Deixá-la Brilhar

 

A luz é o conforto de Deus

por fora e dentro das pessoas.

A luz diz à criatura

que ela não está só.

Mais que isto, diz

que somos luz

e devemos deixá-la brilhar.

 

A luz e a alegria

é o caminho de volta...

que passa pelo coração

e o faz lembrar

o rumo de Casa.

LA 12/04

             

 

 

 

 

 

Velhos Fantasmas

 

Quantos pés, pés descalços e em sapatos,

não deixei pelas ruas deste mundo!

Continuam andando a passo oriundo

de ecos passados: sérios e insensatos...

 

Não sobrou deles rastros nem retratos —

nada senão segundo após segundo

de um lembrar que seria algo fecundo...

mas não, são só fantasmas de sapatos...

 

E lá vão eles pelo meu mental —

pequenos, juvenis, moços e adultos:

e cada passo tem seu virtual...

 

Hoje, vejo que alguns foram estultos...

Mas que é que adiantaria ser sensatos?...

São só velhos fantasmas sem sapatos.

LA 12/04

                      

 

 

 

 

 

Cena

 

Bom como conversar com nossa mãe

é o vento andorinhando pela tarde

a adoçar o calor, num tom, num ar de

quase escuro, macio como pai-

 

na... O dia em suas perdas, perdas-ga-

nhos no ígneo horizonte onde arde

a vitória e a derrota ( sem alarde )

a cegar-se na luz em que se ba-

 

nha... Um frio de crepom, todo franzido

de brisas, põe surdina num gemido

por entre os frágeis ramos, onde espia

 

o céu já todo olhos... E eis que a vária voz,

da igreja cá ao lado, principia

a unir o humano com o divino em nós.

LA 12/04

        

 

 

 

 

 

Pelo Branco Do Papel

 

As entrelinhas mentem,

não por terem inveja das linhas,

mas por amor à verdade

das esbranquiçadas mentiras

que dão coerência

às nossas nunca virgens

vertigens —

de que despenham verdades

do sujo fazer humano.

Daí o branco do papel

cheirar àquela bosta que Spielberg

conseguiu industrializar

no Parque dos ( seus ) Dinossauros...

 

Conheci um casal cuja relação

durou quanto os cônjuges quiseram —

conseguiram viver

nas entrelinhas de cada dia

sujamente rabiscado pelas mãos dos homens.

................................................................................

Sim, conseguiram viver

nas entrelinhas de cada dia —

para não serem pensados nem sonhados

pelas linhas...

.................................................................................

E o branco do papel

nos mostrará o sentido

e toda a possibilidade

do humano ( sujo humano )

poder construir(-se) e criar.

LA 12/04

         

 

 

 

 

 

Também Isso

 

Realidade é aquele queijo

que a gente põe na sopa

ou na macarronada

e que cheira-sabe a chulé?

Realidade é isso?

          —Também isso, uma delícia!

 

Realidade

é o que lemos nos jornais

e vemos na tevê —

essas coisas descoiséticas

que os homens e as mulheres

reinventam a cada dia

e se tornam necessidades?

E que os atores e os/as modelos

mais a meninada prendada,

amauriciada-apatriciada

ditam ao povicréu ( em lágrimas )

tão sabiamente?

              — Sim, também isso: um chique-charmoso

              clicado no sempre-agora

              do me-engana-que-eu-gosto...

 

Realidade

é isso que ao nascermos

já nos pespegam,

nos botam pra ser pensados

e sonhados —

e a dizer “sins” pra isto,

“nãos” para aquilo

e “améns” —

sempre que alguém

de algum ramo do Sistema

recita alguma coisa?

É isso a realidade?

Sim, toda essa delícia

fast-food,

pré-digerida e eternamente

metabolizada —

sim, tudo aquilo fabricado

e consumido

ativa-e-passivamente.

Isto todo mundo faz sem saber

que o faz...

Nós fornecemos a argamassa

( quase sempre orgulhosamente... ),

a argamassa que liga

as pedras e os tijolos

das situações que vivemos

e viveremos...

e que por — tolice ou veleidade —

chamamos de realidade.

E é quase ( se não o for de todo ) cômico

saber sem saber que se sabe.

E isto é bom porque ter razão

muitas vezes significa não tê-la...

enquanto não tê-la

pode presumir ter.

E claro:

entre o irrazoável e o razoável

a gente vai pelo raso a pé,

ou pelo fundo a nado —

mas sempre de colete salva-vida.

LA 12/04

           

 

 

 

 

 

Em Forma De Asa

 

Aquela parte em nós,

que era universal,

perdeu-se?

Shakespeare

já não nos mostra o homem,

o amor,

a vida

como dramas e tragédias

de grandezas e vilanias?

Já não nos vemos em Shakespeare?

Já não sabemos

que em todas as suas personagens

ele fala de nós?

 

E Freud,

sua voz já não nos alcança?

Não a deixamos mais dizer

que todos os filmes são nós-mesmos,

inclusive o lanterninha do cinema?

Já não lhe permitimos nos dizer

que todos os sonhos são nós-mesmos,

sobretudo os que nos falam dos outros?

Que amarmos o outro

é amarmo-nos no outro?

Que o faquir é o Narciso

que mora em nossos olhos?

.........................................................................

Nosso eu,

nosso eu já não é o outro?

 

E a arte já não fala

àquela parte em nossa humanidade

que sabe ( mesmo dormindo )

que a vida é mais,

é sempre mais que isto e aquilo?...

Sempre mais do que está sendo?

A arte já não nos acrescenta?

 

E a nossa fé?

Já não move montanhas

nem anda sobre as águas?

Já não bebe da Rocha

nem aprende com o deserto?

Já não faz o placebo

ter todas as possibilidades?

Os nossos pensamentos e sentimentos

já estão mais próximos de nós

que o nosso Deus?

As nossas sensações já não O vêem?

Ele já não se parece

com os nossos amigos e inimigos —

com os bons e os maus?

Já não queremos que Ele seja

amado

em espírito e verdade

no coração de todos?

 

Sei lá... Por vezes até parece

que tais valores,

tais conquistas,

tais esforços

de uma força olímpica

do ser humano através dos tempos —

parece uma luta perdida...

....................................................................

Sim: parece uma luta perdida...

....................................................................

Mas não: sempre que isso ocorre

é que estamos cansados —

doentes de cansados.

Isto porque os nossos inimigos

são os mesmos

e bastantes e antigos:

misérias, guerras, doenças,

e catástrofes naturais.

E que bom que é

o ser humano incubar em sua alma

o sonho: o sonho-mais

que empresta à criatura humana

uma vontade e um destino em forma de asa...

LA 12/04