OS TRÊS LADOS DO RIO
parte 1
Laerte Antonio
Enquanto metáfora de vida, um rio tem tantos lados quantos pudermos ver. Daí, entre outras coisas, este livrinho ser um exercício de ver-rever-transver pelo fazer-refazer, conhecer-conhecer-se, etc., por meio do contar e recontar numa atitude de sonho-mais a garimpar-se nas próprias águas. Viajei como um neutrino escrevivendo-o: já que partir-chegar era chegar-partir... Portos-viagens, viagens-portos de infindo viajar. Um viajar que é ser-em-ser-se. E tudo isso porque existimos uns nos outros e a vida é só o que temos, caro-cara Navegante. Um livro são pontes. Elos de ser a se querer bem mais.
E o mais, o mais seja viajar.
Um abraço.
Laerte Antonio
E aí, minha cara? — lhe pergunto.
Nem “aí ”, nem “ai!” A gente vai: vai até ver que não está indo... Melhor: que nunca foi a parte alguma a não ser a parte alguma.
E você, “rapaz”? — me pergunta, ainda rindo naquele timbre tilintante. Respondo em tom mimado:
Eu nem vou, deixo-me ir: como bicho tangido que não quer apanhar...
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Aí me apego com os olhos aos seus cabelos cobrindo seu pescoço comprido: me apego aos seus cabelos fartos como folhas de coqueiro que arquejam cor de feno... Seus cabelos: bastantes e compridos, eternamente impecáveis.
Minha vontade de tocá-los se enrosca toda neles, sedosamente. Um cheiro feliz de anis...
Abraçá-la no inverno com seu jeito macio é como morder a orelha de um sonho que é puro mel de jataí. Ah! E beijar-lhe o rosto, então?! E passar-lhe a mão na testa afugentando para os lados o cabelo?! E descer com a mão espalmada roçando-lhe o rosto?! E ter-lhe a ternura de um beijo trabalhado, artesanal, magistralmente molhado?!
E ouvir-lhe um não seco como folha de outono ante um sonho todo molhado?! Um não inexorável-inexpugnável...!!
Abraçar-la em pé? Nem pensar! Sabe que o brim iria ficar bem mais cheio... e...
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Sim, vamos, que é perigoso estar dentro do carro a essas horas.
E agora: para quatro paredes ou para casas?
“Para casa, que não entro nesses lugares!”
Para casa, que ela não entra nesses lugares.
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— E agora, veja: o que faço?!
—Vá pra casa e afunde a cabeça nas cobertas: com esse frio, você dorme num instante. Amanhã telefono e lhe falo duas arrobas de delicadezas, como todos os namorados que não são namorados...
Não é o que você espera, já que não pode ser ao contrário?...
LA 08/04
Sim, Me Levem...
Bebi tanto, meus amigos,
bebi tanto!
Me levem para casa.
Bebi tanto, meus amigos,
bebi tanto da luz
dos olhos dela,
que me ceguei de mim, do mundo —
sim: me ceguei de ver
que a luz dos olhos dela
era um vinho do avesso
que me levava para dentro
do seu sorriso,
sorriso dela —
irmão daquele, meus amigos,
daquele
( terrível )
de Mona Lisa.
Bebi tanto, meus amigos,
bebi tanto!
Me levem para casa!
Sim, me levem,
me levem para a luz dos olhos dela.
LA 08/04
... me desculpe a comadre,
mas amor não acaba.
Que esperança!
O amor?
Mora entre as mãos.
Bem entre um beijo e outro.
Entre um abraço e outro.
Entre um olhar e outro.
Um sorriso mais outro.
Aí é que vive o amor:
sempre apertado,
sempre entre entre.
Sempre bem entre —
até se tornar de casa:
então, entra pra dentro.
Cara de pau,
fica de casa. E
ama ama ama ama ama ama ama...
naquela eterna amação:
até esgarçar as vontades,
até vidrar o desejo,
até ficar zonzo-zonzo,
com calorias a menos...
O amor é bicho guloso —
quanto mais prova mais quer
e nunca que acaba não.
Só acaba de faz de conta,
mas acabar de vez —
chegar num fim final?
Ah, isso nunca de nunquetas!
Se foi pro brejo aqui,
procura ali
terra mais firme.
Mas findar, amor não finda.
Pode ( repito ) quando muito migrar
se um dos lados que o prensa
( como foi o caso,
pobre comadre!
do droga do seu marido... )
se esquece de fazer a sua parte
que é: amar amar amar amar amar...
até cansar o beiço,
até ...
Se um se esquece ( dizia ),
aí, sim, as uvas já não dão vinho —
só vinagre dos brabos.
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Mas morrer? Amor dos bons
nunca que morre não —
vai mais é trabalhar,
trabalhar noutras vinhas.
LA 09/04
E Esse Vento O Que Diz...
em reza seca, quebradiça e tão chorosa?
Já nem sei se blasfema, ou chora, ou xinga...
ou se só faz da noite uma glosa: uma glosa
furiosa a desfolhar rosa por rosa —
loucas, bem loucas a cantar em língua
morta uma tal canção, que de nervosa
dá íngua em escutá-la, muita íngua...
e faz gemer de solidão o escuro
que arranha e morde o musgo desse muro
ao pé do qual Maria lava roupa...
Maria? Mas Maria não morreu?
Aquela, sim! Mas esta toma sopa,
namora o Zé, e acha chatice o céu...
LA 09/04
têm sempre o primeiro orgasmo
e sempre pela primeira vez
( sem saber, portanto, o que é )
ouvem a palavra “não”.
Abençoados os que se esquecem —
estão eternamente prontos
a se enganar pela primeira vez.
LA 09/04
Claro que és um babão.
E sem amor, nem paixão?
És apenas um quase:
um lambão —
a perguntar aos outros
se o doce é bom.
Com paixão ou não,
isto é: com o diabo que for —
mete a cara, meu velho,
ama do jeito teu —
antes que o tempo assopre
o punhado de pó que és.
LA 09/04
de fora para dentro.
À medida que vão nos vendo
de dentro para fora,
em geral, não nos aceitam
e se empenham em nos ir mudando —
à imagem-semelhança delas,
ou de seus interesses.
Sim: de seus interesses.
Nunca servimos como somos,
nunca nos querem assim...
Pra canalha
não falta nada a ninguém.
LA 09/04
Sábia É A Rosa
Deus acaba de fazer esta manhã,
e ela é tudo o que temos.
Sábia é a rosa
que esplende
sem nenhum medo da tarde
nem da noite.
Sábia é a rosa
que esplende
e seu rápido brilho
lhe é toda a eternidade.
Sábia é a rosa,
que nem sabe de si,
e é toda brilho e graça.
LA 09/04
Tudo o que é bom
está na margem de lá:
os pígios de Deolinda,
o sorriso ( puro orgasmo )
da Francisquinha cheirosa
e frágil
que vende lingerie,
o busto da juíza Severina,
os coelhinhos de Regina,
sempre olhando para cima...
( vontade de pegá-los
pelo focinho!... )
De Regina com suas pernas
a bordar quaisquer panos...
Sem dúvida, tudo o que é bom
está na margem de lá.
Inclusive Rosinha —
apocalipticamente em riste
com suas lanças mamárias...
Sim: tudo o que é bom
está na margem de lá.
O andar saltitante
de Laurinha
que delicadamente,
divinamente leve-leve,
levitandante
( com aquele olhar e sorriso
entre o choro e o gozo )
faz deliciosas omeletes
batendo ovos
com saltos finos saltos finos...
Ah, meu Deus, e Teresa,
que enrosca no gingado
o pensamento dos rapazes
( e os da gente, claro! )
e os faz girar na cabeça,
nos pés, nas pernas, no umbigo...
até lhes dar tonturas?!...
E Biláudia, Minha Nossa?!
Essa tal então mia...
Mia?
Sim: mia, ela mia sobre o muro
chamando os seus muitos gatos —
e começam a derrubar tijolos...
Seu miado lacera
e faz chover.
Chover?!
Chover e relampear.
E tudo na margem de lá,
tudinho.
Sim, senhor: nada pro nosso bico,
pra nossa mão,
pro nosso beiço,
pro nosso sonso
sempre sofrendo de coriza...
E viva,
viva a outra margem,
nossas secretas
alternativas.
LA 09/04
Hoje é o dia
que Deus acaba de fazer —
nele podemos: causamos.
Hoje é o fruto nas mãos
( fruto tríplice ):
a polpa do presente,
o sumo sazonal,
as sementes do amanhã.
Hoje é o ponto-encontro
de todo fazer-criar:
o ponto em que se apóia
nosso crer que podemos.
Sim: o hoje borbulha
a alegria do Senhor —
que é a nossa força.
E a frágil flor da vida
sorri confiante
e calma
na fustigada haste
do hoje.
LA 09/04
A quem levaste o trigo que era meu,
o vinho ( meu e teu ) todo alegria —
pra quem os deste tu, ó minha Lia,
se na mão tinhas quanto Deus nos deu?
A quem deste o consolo que era meu,
nossa ternura antiga: essa alegria
pra quem as deste tu, ó minha Lia,
se te confiei o quanto Deus nos deu?
Com quem amaste o amor que já não posso?...
Não me juraste amar dia após dia
o amor que era nós dois, ó minha Lia?
A quem levaste a íntima alegria
cuja força era em nós medula e osso?...
Te fez bem presentear o que era nosso?
LA 09/04
O charme das coisas
é elas estarem acabando.
Sim: a vida é bela
porque é chama entre cera.
Fosse eterna,
seria insuportável.
LA 09/04
O bonito dos cabelos,
leãozinho,
é eles serem desmanchados
por mãos que dialogam com as brisas...
O belo de toda vida,
leãozinho,
é inventarmos sua beleza.
O mágico dos sonhos,
leãozinho,
é eles trazerem em si
suas sementes.
A verdade da mentira,
leãozinho,
é sabermos ( de lado )
que ela podia ser verdade.
A glória do coração,
leãozinho,
é ele pensar
( com calmo sentimento )
que é amado e esperado.
LA 09/04
Ah!...
Se o saldo
for uma gargalhada,
pediremos a Deus
nos dê uma garganta bem sonora
e alvos dentes.
LA 09/04
Entre espinhos e pétalas
a mão aprende a pensar.
LA 09/04
Até que lero-lero é bom.
Chato mesmo é coisa séria —
sem riso nem humor,
jeito formal:
cara de fim de mundo,
rictus de poderosa,
prendadamente babaca.
Falar do tempo?
Não é pobreza não.
Pobreza é pensar que somos ricos
de assuntos
e que isto e aquilo
interessam.
Interessam não, senhor!
Não, senhora!
Falando bobagens sobre o tempo,
ao menos nos livramos de dizer
tolices deslumbrantes
ou coisas que entediam
até as pedras lambidas de mariscos.
Tolo é pensar que se pode preencher
o vazio extremo dos sentimentos
que a realidade escavada entre as pessoas
torna cada dia mais arenosa...
Falar do tempo
é urbanidade
e boa educação.
E uma maneira de ouvir vozes.
Chove?
O jornal diz que sim...
Que poeira, não?
Terrível!... Mas logo temos chuva.
Sol pra ninguém pedir mais!
Delícia! Faz bronzear até...
Comentar do tempo
é falar gostosamente
sem dizer nada —
enquanto cada coisa gira
no competente Universo.
Verdadeiro relax
no inútil de cada dia.
LA 09/04
O Que Este Vento Diz...
O que este vento diz é que está frio,
muito frio ( talvez tenha chovido
lá pros lados do norte ). Ouça o gemido:
seu gemido transido de arrepio...
Parece mais um grito, um assovio
a esburacar a noite num zunido
de asas tão ríspidas que seu sonido
tem mais o chiado, o som de um largo rio...
Ouvindo-o aqui na sala, fecho os olhos
e me deixo levar no seu rugir...
Sim, me deixo levar lá em ouvi-lo
escuro adentro... longe a refugir
num singrar ríspido por entre abrolhos —
seu violino vibra feito um grilo...
LA 09/04
A Gente Faz Como O Vento...
Viver é estar enganando a morte,
enganando a morte...
E este é o nosso maior tesão:
enganar a morte.
Claro, nosso maior tesão —
com pena e tudo.
Por isso e por aquilo
( que não se compra por quilo ) —
aproveitemos, amada,
aproveitemos sempre
pra não dormir.
Sim: muito gostosamente
a gente vai enganando,
não só a morte,
mas sobretudo a vida,
que finge
não ter nada com isso.
Coisa boa seria
a gente não estar lá
quando a Bruxa chegasse...
Mas não tem jeito não, minha Amiga,
vem um dia em que o instante
nos falta aos pés...
e ela nos pega lá.
E adeus-me as tuas pernas!
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Mas até lá, minha cara,
até lá, quer dizer:
até aqui virar lá,
a gente faz, minha Rosa,
a gente faz como o vento —
passa, sim, passa sempre,
mas despetala despetala despetala...
LA 09/04
Realizada pelo verbo,
o verbo é a coisa.
E qualquer coisa
é mais que si mesma:
traz nela um estado
que quer ser... ou mais:
quer ser-se.
Sim, para ser-se
tem que partir-chegar-chegar-se:
lá em si chegar-se.
Sonado pelo verbo,
o nada se torna coisa —
e esta ganha um lugar
que será seu —
bem antes de Abraão
e do riso de Sara...
Tem seu lugar no espaço —
porque é.
Tem seu lugar em si —
porque se é.
Tem seu lugar no devir —
porque é seu próprio transcender.
Verbo-coisa
real-virtual:
antes-depois,
ontem-agora-sempre —
deseternamente eternos.
LA 09/04
Se a vida pouco apresta,
sejamos irrazoáveis:
fiquemos de bem com ela.
Não é o viver um modo de lograr a morte?
Pois então tenhamos paciência,
inclusive com nós mesmos —
o que é que ganharíamos
naquela terra gorda de esperanças,
jamais realizadas?
E além do mais, vivendo,
podemos continuar mentindo
para a infelicidade
aquilo que nunca foi —
que nunca foi mas tem passado,
tem passado por baixo da catraca,
seguido viagem
e até feito acreditar.
Sim: sejamos irrazoáveis
toda vez que a razão
se vangloriar ao lado da fé,
ou do amor,
ou da bondade...
e agradeçamos,
agradeçamos a Deus
pelo viver
que é um modo de O irmos hospedando
em nós
e ao mesmo tempo de Ele ir nos sendo...
até que O sejamos igualmente em nós.
LA 09/04
anos e anos depurando-a... anos
e anos esfregando raros panos
em seus cristais: tinindo em fina mão...
Sim, metabolizei a solidão —
transmutei seus delírios mais insanos:
vivi meus sonhos, meus fiéis enganos,
e me deixei filtrar até o porão...
De lá subi com ela e, hoje, nós dois
somos um só nesse cangar de bois
por mesma estrada em plácidos mugidos...
E já não dói seu doer de alcoviteira...
Apenas uma dor já companheira —
doeres que nem são mais doloridos.
LA 09/04
A Minha Madalena...
A minha Madalena ia e vinha.
Ficava um pouco e, ardendo de saudade,
tinha lá seus chiliques-ansiedade —
e corria lidar em outra vinha...
E eram vindimas e vindimas: tinha
o impulso, o amor pela diversidade...
Trazida pelo deus-necessidade,
voltava com o anjo-carochinha...
A minha Madalena era prudente —
voava, sumia... mas voltava à casa:
amava avulso e era mãe decente...
A minha Madalena era uma brasa
que cozia a picanha lá da alta...
e erguia velhas najas com a flauta.
LA 09/04
Soneto Brega ( Para Pessoas De Classe )
Boa demais. Tão boa quanto à-toa.
Gostosamente à-toa, e que se diga:
louquinhas pra livrar-se da loriga...
e enfrentar dardos, flechas, lanças com a
graça e satisfação de uma canoa
águas abaixo em que o singrar periga
mas dá maior prazer: a história é antiga...
Olarila! Que cheiro de xereca
recém-lavada, cheiro bom de uvaia
a povoar os nasais por toda a praia...
Olarila! Pendura esta cueca
na palma do coqueiro, minha nega,
e vem, chega pra cá, nuinha, chega!
LA 09/04
Pernas Pra Quem Te Gosta!
Corre! Pernas pra quem te quer! Não cases,
a não ser com a filha do padeiro
que morreu de saudades do leiteiro
que era vizinho e sofria de antrazes...
Sim, vivia deitado com os atrases
para as telhas, suando qual guerreiro
virtual ( de vídeo game ): trapaceiro,
porém, disposto a refazer as pazes...
Pernas pra quem te gosta, meu amigo,
mas corre segurando o teu umbigo
que, se desparafusa, adeus anel...
Corre, pernas pra quem te quer! Te esconde,
na igreja, corre e espera-as... pois mais onde
podes fazer amor perto do céu?
LA 09/04
de anis.
Alguma coisa,
por fora esquecida,
fazia recender assim.
Sempre que passava
por aquela ruela
algo em mim
desprendia alegria
com aquela tal fragrância
( discreta )
de lavanda.
Uma brisa interior
conversava pruridos
de um relembrar pelos fiapos —
uma lembrança quase a parir
os sonhos gestados
naqueles dias...
Ao mesmo tempo
em que um cheiro de anis
trazia ao senti-lo
um lembrar esgarçado,
mas, mesmo assim, feliz.
Sei lá o que é que outrora
fizera percutir
( em mim )
a sombra da lembrança
desse perfume —
um cheiro feliz
de anis.
LA 09/04
Tô Que Tô!
— Tô nem aí!
— Nem aqui?
— Não. Nem lá,
nem mais longe
ou acolá.
Hoje estou virtual —
sou sem estar:
inespaçado.
Hoje sou
sem um espaço
que oferecesse um porto —
um partir sem chegar
nem aí
nem aqui
nem lá.
Tô nem em mim!
Nem em ti, minha nega.
Nem em nada.
Apenas tô.
Tô-não-tô.
Uma vontade, amor,
de comer goiaba
e tirar as sementes
com teus beijos.
LA 09/04
Solilóquio Sem Fim...
Solilóquio sem fim, gorgolejante,
arrepiado de medo, medo e frio —
molhado solilóquio desse rio
a correr por nós dentro obnubilante...
Chiado sob bruma circundante
em que o ser se viaja no alvedrio
de saber-se uma luz no próprio cio
de recriar-se em seu rumo caminhante...
Solilóquio entre a alma e o coração
em que aquela se diz a tapeceira
e este o material do tecelão...
Aquela a se tecer a própria asa
com a luz que este lhe deu a vida inteira
por jamais se esquecer do caminho de Casa.
LA 09/04
A amizade,
como o álcool —
uma alegria,
uma euforia,
amenidades,
empolgações...
Logo depois —
um vazio doído,
um nada arrependido,
um ruído infeliz...
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Mas assim mesmo
sempre pensamos
num outro encontro,
numa outra dose.
LA 09/04
A própria vida exibe
uma dor insolente
entre o olhar e o sorriso
da criatura humana.
A vida nos profetiza
seus condicionamentos —
e os vamos revivendo
por clichês culturais,
por hábitos
e comodidades...
E assim vamos costurando
uma camisa de força
para a nossa liberdade.
Ou seremos os donos
das rêmiges
de sentimentos que pensam,
de pensamentos que sentem —
ou viveremos conforme
a santa mediocridade
de cada dia.
LA 09/04
Suba,
veja lá de cima:
a cidade iluminada,
entrecruzando-se,
caminhando —
a cidade à procura de si mesma...
A noite arde no entre pernas.
E o que se vê daí?
Que a gente é mais um entre os muitos —
um pobrezinho um: só mais um...
entre pobres eus inúmeros —
buscando meios de não estarem sós...
Máquinas indo e vindo —
a cidade gemendo:
a cabeça erotizada
com seus sonhos quentinhos
feito pães...
Pães não: feito seios crocantes...
Feito pernas que metralham
( ainda bem que estamos
com coletes de aço... )
Feito bocas que devoram
com seus dentes de lanças —
arrasadoras...
Feito bundas trabalhadas
a cinzéis-pincéis-estiletes...
Feito xotas cujas vulvas
olham caolhas,
desbeiçadas,
amarfanhadas após aposes.
Rios ribeiras riachos...
LA 09/04
Se Me Vires Andando...
atrás de coisa alguma, atrás de nada —
olha do Carmo: diz que és minha amada
e que me gostas como o bem-te-vi
que ama dizer que viu o que não vi,
seja num fim de tarde menstruada
ou por sedas da alba em hora chuviscada
da beleza feroz que vem de ti.
Sim, do Carmo: confessa num segundo
que não te importa fosse eu Raimundo
ou André, nem herói ou vagabundo...
mas, sim, do Carmo, que te importa muito
todo sonho preserve um belo intuito,
já que amar nunca deve ser fortuito.
LA 09/04
A felicidade é um produto
que azeda à toa —
e não tem anticoalho não.
Azeda à toa —
principalmente aquela
que é batalhada a dois.
Mais que depressa é preciso
( conselho do meu compadre )
aprender quando e como
fazer uso da geladeira...
No verão das relações
as coisas estão sempre
naquele ponto
do azeda-não-azeda...
Descuidou, leva o diabo.
Se bem que há tiques-manhas
tão melindrosos, tão de seda,
que azedam mesmo
no freezer.
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Meu compadre é que tá certo:
“Enjoamento, André,
nunca ajudou ninguém —
o amor a gente aceita e consome
mesmo meio coalhado...”
LA 09/04
Por Um Triz
Sabe quando a solidão quase te engole e você escapa dessa anaconda apenas por meia volta de pensamento? Pois eu estava meio engolido ( só da cintura para baixo fora da boca da bicha ), quando tocou o telefone. Espirrei ensaboado para o fone, mas antes que alguém me respondesse ao “alô!”, me veio à mente, ou melhor, a todas as minhas células o quanto pode a voz humana: a beleza e o poder do timbre humano. Quando sua voz de contralto abriu em flor aquele “oi Fulano!” ,toda untada de cremes afetivos e sonhos das arábias, e me disse: Vamos sair?, então a vida ganhou novamente sentido. Tomei um banho, enfiei uma roupa, e mergulhei de cabeça naquelas águas termais: cheirosas, claro-escuras, erótico-divinas. E aí vivi: divinizei a noite, que já girava nos seus eixos: graças ao seu sorriso de jasmim.
É sempre assim: estamos sempre por um triz.
LA 12/ 04
De Repente
já não era em casa...
A gente já não era em nós,
era só o avesso
de uma voz que já não se ouvia,
de um amor que já não amava.
Sim: tudo assim tão de repente
como estrada que desbarranca...
ou grito coberto de água pesada...
Todos os velhos fantasmas
corriam a se esconder por entre os juncos
com água até a cintura...
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As crianças cantavam na grande área,
cantavam e jogavam a amarelinha...
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“Venham comer! Venham comer
( era a voz da minha mãe ),
que a vida ainda não acabou...
e só acaba quando Deus quer’’.
A gente então levava um tranco
e ia pondo o nariz
no nível de costume.
Tínhamos que reaprender rapidinho:
a vida não é do lado dos fracos
e nem sempre passa geléia
no nosso pão.
LA 10/04
E lá se foi
pirambeiras abaixo
o cabriolé
do amor.
Ainda bem
que não estavas junto.
A amada?
Havia saltado fora
muitos e muitos anos
antes da viagem...
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Sim, felizmente,
só a metade de um amor
( que já nem existia )
morreu.
LA 10/04
Também eu
nunca aprendi a viver.
Sempre que estava quase,
a vida apresentava
um outro esboço —
novo jeito e brilho interiores...
A lagarta virava borboleta
num ritual de asas
entre as flores e a lama
da chuva da noite passada.
E quietos, sem alarde, eu e Rosa
bebíamos nosso vinho
pelo avesso do sonho...
Sempre sobrava meia taça
da nossa última conversa.
E esse era mais que o princípio,
bem mais,
de outra nova aventura —
mais uma triste ventura
reincidência cor de amora...
já rindo de infelicidade
de seus fiéis enganos —
desventuras felizes,
esperança esfiapada,
como quem vê os olhos da vizinha
conversando com os girassóis...
Mas nem por isso tínhamos o condão
de convencer os duendes a bater
a corda do arco-íris
para as ninfas e as fadas
que tremiam de medo
do atrevimento dos sátiros —
sempre desabusadamente prontos...
E apesar do preconceito,
o Saci nos ensinava
um novo modo de andar
por trilhas interiores
que nos liberta ( dizia ele )
de ser escravos dos passos deste mundo.
LA 11/04
O inimigo do nosso inimigo
é sempre gente boa.
Se bem que a gente sempre vende mais
do que pode entregar.
Aprendamos com calma,
e ( claro! ) também desaprendamos...
Com calma.
Porém, não muita —
que não dá tempo.
Sejamos irrazoáveis...
pero no mucho,
no mucho.
Sobretudo não tenhamos a pretensão
de lançar pérolas...
Nem aos porcos,
nem aos poucos.
Antes façamos delas
um colar pra nossa nega,
que há de — agradecida —
caprichar mais, bem mais
lá em suas perícias....
LA 11/04
Novas Espécies...
É do caos que se vai puxando
todo criar.
O cosmos é arte pura —
harmonia constelada
com vertigens de infinito.
A perfeição imperfeita,
a verdade jamais verdadeira,
a beleza que nunca foi bela —
tudo um esboço de devir
a transcender-se e transcender-se...
É nos entrelugares da vida
que plantamos novas espécies
de um sonhar que se abre em nós...
e lá em veredas de fazer-criar
transmutamos nossa angústia
em realização
e auto-realização.
Fazemos arte
sempre que organizamos
a desordem do instante em nós.
LA 11/04
Te dão um porre
de idéias,
de sonhos
e te fazem dançar
a dança da esperança —
esperança que murcha
como o pão que amanhece.
Esperança que o povo leva ao fogo
a ver se lhe recobra a alma
para lhe ouvir o crocar...
Esperança ressuscitada
em cabeças pensadas,
em corações sonhados —
por rotas já desenhadas
e caminhos já traçados
a cujas margens acenam
prêmios premeditados.
Sempre uma nave chegada antes
de haver o porto...
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E quase nem se percebe
esse andar-correr-voar
lá para lado nenhum
de um refazer a realidade
à imagem-semelhança
dos espelhos que o homem tem quebrado...
Finalidade sem fim:
zonza de um rum pirata —
Nau sem Rumo...
Saúde!
Tim-tim.
LA 11/04
Família? Bicho feio,
mesmo pra quem não a tem.
A quem a tem, — por tê-la.
A quem não tem, — por não tê-la.
Sim, não é bicho
de se pegar com a mão.
Melhor que tê-la
não é não tê-la —
mas tê-la como aquele
que não a tem.
LA 11/04
Aquele diabo velho
que guardas na garrafa
e que fazes subir
nos momentos em que é melhor
uma má companhia
do que estar sozinho —
ainda bem que o tens:
muitos há que jamais se deliciaram
com o seu modo podre
de fazer despencar
do seu plácido sorriso
todo o Universo —
sem esperança.
Aquele diabo velho
foi o amigo que não te deixou
quando os dias eram maus
e os teus cínicos amigos
te beijaram no rosto —
sinal para sua mulher
molhar-se décadas e décadas
com esses pobres canalhas.
LA 11/04
As coisas belas
não deixaram seqüelas —
antes, são aquarelas
a nos pintar as telas
com as suas formas nuelas.
As coisas raras
e nem um pouco amaras —
serão caras, muito caras
ao coração em suas aras
pedindo graças tão claras.
E a vida de mãos avaras
há de beber das procelas
enquanto, amor, tu me saras
de suas dores tão belas —
tão belas quanto amaras.
LA 11/04
Maus tempos,
bons tempos.
Nem tão maus,
nem tão bons:
não durar
é toda a sua beleza.
Maus tempos,
como éreis bons!
Não, nem tanto,
nem tanto —
também os bons
vão se tornando maus.
Maus para uns,
bons para outros,
ou, se quiseres,
bons e maus.
LA 11/04
Cantoesia
Canto porque cantar é o ar
que inspiro
e quando o expiro
já não é ar —
é pneuma-poesia.
Sim,
a vida que respiro
é transubstanciada
em algo paralógico,
multiversal —
a poesia.
Escrever é uma mania
como ser triste ou ser alegre.
Escrever é atravessar do outro lado
e voltar com as mãos
cheias daquele barro constelado...
que rápido vamos moldando
segundo imagem-semelhança
do que sonhamos.
Escrever faz a alma abrir em flor
sobre o branco do sulfite
e vai dando sentido
ao seu vazio.
Escrever é a gente
ir-se reconstruindo em algo mais...
com a consciência lúcida
de que a vida
não é isso que vivemos.
LA 11/04
( Para o casal de quem fui um dos padrinhos,
há poucos dias )
Passaremos por entre as estações
a palmilhar a dois a mesma estrada
que de há muito vem sendo reiventada
pelos passos de belos corações...
Transmudaremos caos e escuridões
em gorjeios de luz em clarinada —
nossa vida há de ser abençoada!
Sim: faremos correr assombrações...
Saberemos que o mundo é só uma ponte...
e a vida, um dom que faz cada horizonte
reinventar-se na próxima paisagem...
Saberemos que bem à nossa imagem
é o quanto construímos entre os dias:
nossas ações nos deixam suas crias...
LA 11/04
Ah... Aquela Vaca!
A vaca só falava em ordenhês
e branqueava a boca das crianças...
A vizinha perdera as esperanças
de ela lhe dar iogurte em tons xadrez...
O seu John, que a tangia, era um inglês
que lhe ensinava a língua com nuanças
de anjos cantando bem-aventuranças
a deixar quem as ouve seu freguês...
Dorothy, sua filha, se agarrava
ao rabo da mimosa, e balançava
bem gostoso: daqui pra lá, de lá pra cá...
E a vaca tinha um tom tão alvo no mugido
que tingia de branco o velho ingá
com cara de ricota e um tronco embranquecido...
LA 11/04
sempre que o cônjuge pegava o trem...
Então abria a ducha até o fim
e entoava mantras num estilo zen...
Cantava até espalhar prurililim
que esvoaçava e traduzia bem
alto ( para a vizinha ) o seu esplim —
o duro suspirar por quem não vem...
E a boa da mulher, tão-logo ouvia
seu túrgido gemer, escapulia
e vinha lhe trazer a compreensão...
E a pobre orava, orava: em tom ungido
de compungir o pobre do marido
que a ficava esperando no portão.
LA 11/04
E Há Uma Outra...
E há uma outra, uma outra margem,
lá no avesso das outras duas...
Sim: a interior,
a que tem sempre meio copo de vinho
para a próxima conversa...
Esta de certo modo traz em si
aquelas duas normais-invisíveis
que, aliás, também a são —
mas não se sabem:
sim, as três se são
sem se saberem interexistentes,
nem ( muito menos ) introviventes.
Tais margens dependem
dos olhos das pessoas
que as têm para se ver —
sim, como seus espelhos,
multiversais.
Esta margem
é o caminhar de muitos
lá por veredas de si mesmos —
o humano a escavar-se
na luz que traz em si
a construir aquele estado-ser
de transcender-se.
Sim, esta margem
só é existente no âmago da luz,
e poucos, poucos têm acesso a ela.
LA 01/05
Nesta Hora...
os grilos dizem coisas niqueladas
tentando seduzir as estrelas.
Se soubessem que estão tão longe,
por certo fariam como nós —
perderiam a esperança.
Mas não: não são homens, são grilos,
por isso vibram tranqüilos
sua rabeca para o infinito —
não sabendo ( a não ser de lado )
estarem, como as estrelas,
dentro de seu brilho e canto.
LA 11/04
Basta Um Pedaço...
Basta um pedaço de papel,
uma caneta
e o percutir de uma nota —
e chovem sons em palavras
que dizem exatamente
que esta madrugada é bela
porque é apenas
a antecipação do dia,
e o dia —
somente mais um giro
dentro de um tempo a passar
de mão dada comigo
( ele e eu por nós dentro...):
com a diferença
de que ele vai para trás
e eu para a frente —
a fim de nos encontrarmos
num mesmo porto
onde muitos de nós mesmos
fomos nos desdobrando
em bandos de entes-eus
sempre em busca de nós-eus
para uma redenção final —
por nosso eu-consciência atual
(se) renascido em Cristo.
LA 11/04
Entre as folhas a brisa é um soneto —
um bisbilho arrepiado... ( Um manso e leve
chiar pelo papel: lápis que escreve... )
dentro da tarde quase em longo preto...
E vai e volta um murmurar discreto
pelo jardim e a área... e até se atreve
a dançar com a folha em giro breve —
o amarelo a acenar o último afeto...
E agora um vento frio, e mais ligeiro,
traz um perfume como companheiro,
um perfume a lembrar um tal chiquê...
Sim, e insiste em lembrar, não sei por quê,
um jasmineiro em flor, um jasmineiro
que se parece muito com você.
LA 11/04
A Ave, Por Dentro Do Seu Vôo...
A ave, por dentro do seu vôo, passou
em busca de si mesma, além do muro
que separa ontem-hoje do futuro
e muda em somos, nosso pobre eu sou...
Em suas penas a ave ultrapassou
seus limites, seu rumo e o lado obscuro
do seu destino e entrou no nascituro
sentido que é seu cio além do vôo...
E adentrou as origens do seu ovo
lá em si, e nasceu, nasceu de novo
de um renascer em si de um outro alar-se...
De sorte que a tal ave se faz nave
lá em seu trans-sonhar: um além-ave,
além-vôo lá no seu ultrapassar-se...
LA 11/04
Encarecidamente
Um verniz, só um verniz.
Raspa-o,
e logo achas o primata —
rugindo em todos nós.
Nascer de novo, meu caro,
é algo que balbuciamos ...
Beber o vinho do avesso,
comer o trigo pelo sonhá-lo
e metabolizá-los por espelho —
quem sabe não é esse o caminho?
Sim, quem sabe não é esse
o ingrediente cultural,
o rumo, a estrada, a arte:
o ingrediente trabalhado em humano
que há de permear o que somos
e nos plasmar em nós lá dentro
um querer dúctil, moldável
que haverá de constelar-se...
e ser — já verniz não — mas brilho,
brilho de dentro para fora —
que se torna uma luz que ilumina
e que nos vá mostrando aos pés
aonde devemos ir...
Sim, podemos processar em nós
essa luz
e um dia a sermos...
Amá-la encarecidamente —
é processá-la.
Teremos recordado
que sempre fomos essa luz —
e que devemos deixá-la
brilhar de nós para o mundo.
LA 11/04
Confiante Desconfiança
estou aqui, ali ou mesmo em mim?
Ou detrás desta grade, ou deste muro —
ciberfeudos virtuais ou coisa assim?...
Quem me garante que esse meu seguro
cobre chulé e pé e pingolim?
E o molejo da amada e seu futuro
empenho pela casa e amor por mim?
E quem pode jurar-me que esse juro
de manter meu seguro não é puro
fingir de uma promessa-segurança?
Sim, senhor: a confiante desconfiança
de que nosso mais certo e real seguro
é viver em eterna insegurança.
LA 12/04
Esquentes Não, Que Podes...
Esquentes não, que podes muito bem
evaporar ou derreter: és água,
quase só água e, dentro dessa frágua,
viras nuvem por esse céu além...
Olha o nível da caixa! E roda sem
ultrapassar o risco dessa mágoa,
desse ódio charmoso... antes enxágua
a ira abrasada num tranqüilo bem.
Dentre os vilões solertes que hospedamos
a autopiedade, em seus liriais recamos,
tem feito muito estrago por aí...
Não deixes nada doer que não suportes...
já que a vida tem renasceres de per si —
num só viver morremos várias mortes.
LA 12/04
Amo a alegria por ser como a luz —
ilumina sem demandar motivo:
além de ser um dom, alento vivo
que não cobra ou exige nem reduz...
Amo a alegria que de si conduz
a força do Senhor a nós: um crivo
de bênçãos a esparzir seu redivivo
gesto de sons e dons vindos da luz...
Amo a alegria porque nada pede:
sim, não depende de nenhuma rede
de nadas: nem de prosa ou poesia...
Amo a alegria como quintessência
de um rumo-nexo em ciente travessia...
Amo-a como sentido da existência.
LA 12/04
Bem Provável Me Vá...
Bem provável me vá antes de ti,
mas me podes ouvir na voz de agosto —
o vento dialogando de dar gosto
com os ramos deste bosque e o bem-te-vi...
Aquela paz alegre que vivi,
a percorrer-me, da alva até o sol-posto, —
hás de senti-la na alma e pelo rosto
sob folhas dançando aqui e ali...
Já terei me abraçado com a luz,
feito da vida a minha travessia...
achado o meu tesouro em Quem o pus...
Você? Ah! Sem chiquê: busque outra mão
com quem tenha a poesia-companhia —
e façam do caminho uma canção.
LA 12/04
O mais belo entre nós,
minha Rosa,
é a distância —
que nos conserva a delícia
deste afeto
e o anseio
de sempre novos encontros.
Sim, a distância
é o nosso bem mais próximo
e belo:
assim como o grandioso —
fantásticas geleiras...
terríveis furacões...
picos rarefeitos...
oceanos revoltos...
vertigens abissais...
Tudo belo, demais belo —
quando visto na tela.
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Por isso estar com você
é a arte
de ir bebericando
uma taça ( só uma )
de um vinho que a cada gole
vale um delírio —
no atempo de degustá-lo.
LA 12/04
por fora e dentro das pessoas.
A luz diz à criatura
que ela não está só.
Mais que isto, diz
que somos luz
e devemos deixá-la brilhar.
A luz e a alegria
é o caminho de volta...
que passa pelo coração
e o faz lembrar
o rumo de Casa.
LA 12/04
Quantos pés, pés descalços e em sapatos,
não deixei pelas ruas deste mundo!
Continuam andando a passo oriundo
de ecos passados: sérios e insensatos...
Não sobrou deles rastros nem retratos —
nada senão segundo após segundo
de um lembrar que seria algo fecundo...
mas não, são só fantasmas de sapatos...
E lá vão eles pelo meu mental —
pequenos, juvenis, moços e adultos:
e cada passo tem seu virtual...
Hoje, vejo que alguns foram estultos...
Mas que é que adiantaria ser sensatos?...
São só velhos fantasmas sem sapatos.
LA 12/04
Cena
Bom como conversar com nossa mãe
é o vento andorinhando pela tarde
a adoçar o calor, num tom, num ar de
quase escuro, macio como pai-
na... O dia em suas perdas, perdas-ga-
nhos no ígneo horizonte onde arde
a vitória e a derrota ( sem alarde )
a cegar-se na luz em que se ba-
nha... Um frio de crepom, todo franzido
de brisas, põe surdina num gemido
por entre os frágeis ramos, onde espia
o céu já todo olhos... E eis que a vária voz,
da igreja cá ao lado, principia
a unir o humano com o divino em nós.
LA 12/04
As entrelinhas mentem,
não por terem inveja das linhas,
mas por amor à verdade
das esbranquiçadas mentiras
que dão coerência
às nossas nunca virgens
vertigens —
de que despenham verdades
do sujo fazer humano.
Daí o branco do papel
cheirar àquela bosta que Spielberg
conseguiu industrializar
no Parque dos ( seus ) Dinossauros...
Conheci um casal cuja relação
durou quanto os cônjuges quiseram —
conseguiram viver
nas entrelinhas de cada dia
sujamente rabiscado pelas mãos dos homens.
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Sim, conseguiram viver
nas entrelinhas de cada dia —
para não serem pensados nem sonhados
pelas linhas...
.................................................................................
E o branco do papel
nos mostrará o sentido
e toda a possibilidade
do humano ( sujo humano )
poder construir(-se) e criar.
LA 12/04
Realidade é aquele queijo
que a gente põe na sopa
ou na macarronada
e que cheira-sabe a chulé?
Realidade é isso?
—Também isso, uma delícia!
Realidade
é o que lemos nos jornais
e vemos na tevê —
essas coisas descoiséticas
que os homens e as mulheres
reinventam a cada dia
e se tornam necessidades?
E que os atores e os/as modelos
mais a meninada prendada,
amauriciada-apatriciada
ditam ao povicréu ( em lágrimas )
tão sabiamente?
— Sim, também isso: um chique-charmoso
clicado no sempre-agora
do me-engana-que-eu-gosto...
Realidade
é isso que ao nascermos
já nos pespegam,
nos botam pra ser pensados
e sonhados —
e a dizer “sins” pra isto,
“nãos” para aquilo
e “améns” —
sempre que alguém
de algum ramo do Sistema
recita alguma coisa?
É isso a realidade?
Sim, toda essa delícia
fast-food,
pré-digerida e eternamente
metabolizada —
sim, tudo aquilo fabricado
e consumido
ativa-e-passivamente.
Isto todo mundo faz sem saber
que o faz...
Nós fornecemos a argamassa
( quase sempre orgulhosamente... ),
a argamassa que liga
as pedras e os tijolos
das situações que vivemos
e viveremos...
e que por — tolice ou veleidade —
chamamos de realidade.
E é quase ( se não o for de todo ) cômico
saber sem saber que se sabe.
E isto é bom porque ter razão
muitas vezes significa não tê-la...
enquanto não tê-la
pode presumir ter.
E claro:
entre o irrazoável e o razoável
a gente vai pelo raso a pé,
ou pelo fundo a nado —
mas sempre de colete salva-vida.
LA 12/04
Aquela parte em nós,
que era universal,
perdeu-se?
Shakespeare
já não nos mostra o homem,
o amor,
a vida
como dramas e tragédias
de grandezas e vilanias?
Já não nos vemos em Shakespeare?
Já não sabemos
que em todas as suas personagens
ele fala de nós?
E Freud,
sua voz já não nos alcança?
Não a deixamos mais dizer
que todos os filmes são nós-mesmos,
inclusive o lanterninha do cinema?
Já não lhe permitimos nos dizer
que todos os sonhos são nós-mesmos,
sobretudo os que nos falam dos outros?
Que amarmos o outro
é amarmo-nos no outro?
Que o faquir é o Narciso
que mora em nossos olhos?
.........................................................................
Nosso eu,
nosso eu já não é o outro?
E a arte já não fala
àquela parte em nossa humanidade
que sabe ( mesmo dormindo )
que a vida é mais,
é sempre mais que isto e aquilo?...
Sempre mais do que está sendo?
A arte já não nos acrescenta?
E a nossa fé?
Já não move montanhas
nem anda sobre as águas?
Já não bebe da Rocha
nem aprende com o deserto?
Já não faz o placebo
ter todas as possibilidades?
Os nossos pensamentos e sentimentos
já estão mais próximos de nós
que o nosso Deus?
As nossas sensações já não O vêem?
Ele já não se parece
com os nossos amigos e inimigos —
com os bons e os maus?
Já não queremos que Ele seja
amado
em espírito e verdade
no coração de todos?
Sei lá... Por vezes até parece
que tais valores,
tais conquistas,
tais esforços
de uma força olímpica
do ser humano através dos tempos —
parece uma luta perdida...
....................................................................
Sim: parece uma luta perdida...
....................................................................
Mas não: sempre que isso ocorre
é que estamos cansados —
doentes de cansados.
Isto porque os nossos inimigos
são os mesmos
e bastantes e antigos:
misérias, guerras, doenças,
e catástrofes naturais.
E que bom que é
o ser humano incubar em sua alma
o sonho: o sonho-mais
que empresta à criatura humana
uma vontade e um destino em forma de asa...
LA 12/04