OS TRÊS LADOS DO RIO

parte 2               (Laerte Antonio)

 

 

Conclusão...

 

Muito pé no chão resfria.

Nem levitante,

nem assentado.

Muito no ar,

colide.

Muito no chão,

vegetaliza.

( Também não como o tiziu

cantando:

nem no ar

nem no arame... )

O ideal... Não, não sei

o que seria o ideal...

[ Lá nos anos (19)60

todos tínhamos um Ideal

com uma trempe

de ideaizinhos... lembram?

E também lembram

o que ganhamos?!!...

Ótimo, assim não preciso

desbocar-me.]

De modo que não sei

o que seria o ideal,

já que este também é

irmão das nuvens

e das vertigens.

( Falando sério:

muita seriedade

espanta —

espanta crianças,

os cachorrinhos,

os nervinhos...

e assusta o espelho. )

Sim: nem tanto no ar,

nem no afamado chão.

              — Onde então?

              — Sei lá.

.........................................................

Conclusão: nenhuma.

LA 12/04

       

 

 

 

 

 

Era Só Coçar

 

Quem caminha

nem sempre chega.

Quem fala

nem sempre diz.

Quando diz não assina.

Quem espera

nem sempre alcança.

Ou, se alcança,

logo vê que não é...

Mas por ser,

por ser assim mesmo

é que, em não sendo assim,

fica até parecido.

E o que parece

em geral já não é

aquilo que estava sendo...

pois...

Pois é assim. E se não é,

parece ser e acaba sendo

pela insistente parecença...

( Só a mulher de César — lembra? —

é que tinha de ser e parecer honesta.

Caracas! )

...........................................................

E eu, que conheci um cara

dono de um cachorrão

( bicho doido por gatinhas! )

que aprendeu a miar em inglês...

Juro!

Te juro pelas pernas da finada

Monroe: naquela cena do respiradouro

na calçada...

a lhe refrigerar o éden!...

..........................................................................

Mas o que dizia mesmo?

Ah! Que o diabo do cachorro

aprendera a miar em inglês...

Mas de nada lhe valeu —

a gataria

só entendia francês.

De modo que a única expressão

para o sexo

era o sexo.

Delícia! Cada qual miava,

aliás, gritava em sua língua

coisas unhas miogemidas...

E o cara, o dono do cachorro,

achava tudo tão normal,

que o chamava de Félix vitoriano...

Isto é... Não, não é. Só

seria...

Ah! Quase me esquecia:

a mulher desse  cara era tão bela,

tão malucamente hormonal,

que não restava ao pobre

senão trancá-la

a muitas chaves e trincos.

         — Já sei: ela fugia

              pelo buraco das fechaduras,

              pelas frestas das...

              Errou. Ela fugia

              pelos corredores de um chip

              que o farmacêutico

              ( amigão da família )

              lhe implantara

              na face esquerda dos detrases:

              lá embaixo,

perto, bem perto do desfiladeiro

das Termópilas...

Era só coçar o tal diabinho

( o chip, lembra? ),

que ela se invisibilizava

e transitava

como um neutrino...

.................................................................

 

Ah!  Não adianta você buscar saber

desse tal farmacêutico —

o cara foi arrebatado

( literalmente arrebatado! )

dentre uma roda de amigos

num happy-hour

enquanto engolia a nona caipirinha...

LA 12/04

               

 

 

 

 

 

Astrocorpia

 

Rosilady, a mulher do açougueiro,

que brandia facas incisivas

e afiadíssimas

e incidiam igual coriscos

( sim: facas relampejantes )

e tinha um vozeirão

que lhe alçava o bigode

de duas voltas...

Essa tal Rosilady era tão bela,

que todos os mancebos da cidadela

( e os de meia-idade e os velhinhos )

tinham as suas lunetas

a espetar-lhe o corpo

( quando ela se esquecia de fechar

as cortinas dos lados...)

Sobretudo quando ela se massageava os pígios

e os míjios,

os peitos e o ventre,

as coxas e os detrases...

dentro das lentes cá de fora...

lá ( no oitavo ) atrás dos vidros

numa penumbra

de lingerie evaporando...  

Com o tempo,

por iniciativa ( não lei ) inculcada ( pela Câmara ),

foi obrigatório pôr grades em prédios e janelas altas

porque muitos velhinhos se defenestravam

ao vê-la masturbar-se cheia de cremes

e vibradores de última geração...

naquela dança serpenteada... Se atiravam

de prédios, sobrados, coqueiros, sacadas...

cantando o Glória à Carne, de Erotino,

e se esborrachavam de prazer...

.....................................................................................

As senhoras da 3.ª-idade se indignaram:

“Já não temos machinhos suficientes,

e os poucos que a vida nos usura,

essa putona os mata?!! Ora, ora! Grrrrrrrr!...”

Sim, uivavam, ululavam

de vê-la pinxotando no ar

em movimentos de rotação, translação

em circunvoluções de arder a carne... e...

Muitas senhoras ficaram viúvas,

muitas mães, sem seus ‘meninos’.

Era coisa de navalhar a carne...

espetar a alma...

chicotear o espírito —

coisa de fazer Kundalini

serpentear até a pineal

( diziam-se os esotéricos ).

Tinha um molejo de levar aos páramos...

Dom de constelar a carne,

a alma,

o espírito.

Fazer o vento

desfolhar os jasmineiros,

as roseiras, os hibiscos

até quase matá-los...

 

Rosilady não dava.

Tinha horror de morrer

( às vezes até sonhava )

retalhada pelo aço doído

daquelas facas

que o marido afiava eternamente,

eternamente esfregando-as ( no ar )

num falo de metal: afiava-as eternamente

com o mesmo prazer com que à noite

rachava a sua Rose,

rachava-a carinhosamente ao meio...

Não dava, mas mostrava...

e isso podia: podia mostrar de longe.

Nisso o marido consentia,

era até um entusiasta...

Ele mesmo compartilhava da luneta

dos cinco irmãos solteirões

do prédio ao lado...

e lhes ia narrando —

farto connaisseur e cicerone

daquelas plagas-corpo...

E todos se deliciavam

em catapultar o prazer liquefeito

janela abaixo...

Eram várias lunetas,

diferentes e várias.

Muitos assentos, um cineminha

com duas seções: das 9 às 11;

da meia-noite às 2 da matina.

O primeiro espetáculo, abrilhantava-o

o narrador-consorte.

Ao descer para um descanso

e a última seção,

enfiavam-lhe no bolso os 70%

do arrecadado até ali...

Ah! Antes de descer,

ativava a catraca de entrada.

E a sala ia se enchendo

para dali a pouco ficar repleta

de olhos e farfalhante,

vidrada

feito um manacá em flor.

Nesta última seção,

não entravam menores de 21,

não por qualquer pieguismo

ou moralidade,

mas para fazer latejar mais

a penumbra da saleta

e merecer, assim,

o seu preço dobrado.

E o espetáculo ia até cuspir,

cuspir cuspir cuspir nas lentes...

e os espectadores também cuspirem

lá embaixo,

dez andares abaixo...

LA 12/04

        

 

 

 

 

 

Tudo Tão Nada

 

Tudo a desaguar tão depressa

no nada,

esboços de poeira.

Sim, tudo é tão nada,

que o pouco, minha Amiga,

o pouco em nossas mãos,

há de ser feito bastante

para tornar a vida

suportável e bela —

sim, no mínimo,

suportável e bela.

 

Tudo tão nada,

que do pouco que nos é dado

só nos resta ir extraindo

coisas outras e novas

lá do baú de viver.

 

Tudo tão nada,

tão nada, minha Amiga,

que, ao fim, nada será tudo.

LA 12/04

            

 

 

 

 

 

Tardos

 

Só não foi por água abaixo

o que está vindo logo atrás.

A verdade das coisas depende

do ponto de vista

de sua interpretação.

Velho isto?

Tão velho quanto andar a pé,

mas mesmo assim

só o  “sabemos” de arremedo.

Somos tardos em aprender

que o mundo é construção nossa

e que o nosso direito

não pode excluir o dos outros.

Sim: somos tardos em aprender,

mas temos aprendido.

Sejamos pacientes,

não, porém, displicentes.

LA 12/04

                

 

 

 

 

 

Acha Justo?

 

               Ano passado,

quando as primeiras folhas caíam,

eu perguntei para o meu pensamento

em que  outro outono

eu veria você  de novo.

 

Gostávamos de andar

pelas mãos de outono-inverno

lá em manhãs de brumas

que tornavam fantasmáticos

os pinheiros: um tom solene no ar,

um silêncio feérico...

Magia e vento mantrizando o On...

Nós dois a passos firmes

reverenciávamos tais “entidades”

e penetrávamos veredas

após veredas

em caminhadas

cuja trilha sonora de sua voz

dizia ao coração

que é bela a vida

e pode até nos mostrar seu sentido

e rumo e nexo: que é a alegria...

..........................................................

Sim, perguntava quando outra vez

veria com você

mais uma vez caírem

as folhas mortas...

E as vi,

com você

anos e anos —

até aquela manhã

em que me vieste

( pela última vez )

linda quase incorpórea

( pela última vez )

levitandando ao meu lado

( pela última vez )

como uma fluida entidade

( pela última vez )...

 

Ainda que você tivesse mil

e mil motivos,

acha justo o que fez

comigo

e com você?!

Sim: acha justo

falar-me um tchau

tão horrivelmente lindo?!

LA 12/04

           

 

 

 

 

 

Sim, Mais Ou Menos Assim...

 

Você me chama de amigo:

nossa amizade

deve se ater

aos gestos da amizade...

Nada de coloridos extras,

nuanças em vermelho...

nem...

Podes ter olhos só para mim, é claro!

Elogiar-me a mim

e a nenhuma outra,

a não ser que a quaisquer outras —

elogios do avesso ( pode ):

do avesso e brega,

brega-cafona.

Deves pintar-me a alma

irmã da de São Francisco...

Fazer-me o poema

tão sincero,

que ninguém acredite...

Ter o sorriso honesto

como aquela que abortou.

Dizer  “ não ” ao padre

e “ sim ” ao coroinha...

Perguntar aos macacos

por onde é que se vai a Roma.

              Mais ou menos assim.

              LA 12/04

          

 

 

 

 

 

A Margem De Cá

 

A de cá

a gente acha que conhece —

a margem do dia-a-dia,

a das coisas que pensamos entender,

sim, tudo o que juramos conhecer.

A margem do tédio,                                          

porque aos nossos pés,

demais às nossas mãos —

sempre entre a língua e o céu da boca...

É a margem de casa

com seus afetos e abraços,

o papo nas esquinas,

seus bolinhos de chuva

com cafezinho fresco.

É a margem do “ninguém é profeta em sua terra

e muito menos em sua casa”...

As venturas infelizes,

as desventuras estóicas,

os deliciosos enganos...

..........................................................................................

A margem de cá

é a nossa, sim: é a que temos,

por isso mesmo só se faz interessante

quando a pensamos do outro lado:

sim, quando a avaliamos

lá na margem de lá.

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

E Viva A Vida!

 

Quando a saudade

for menor que a distância,

então te lembrarás —

de nada.

Nada que tenhas esquecido

de lembrar —

esquecidamente belo

como voltar de amar amar amar amar...

até ficar leve-levinho...

sim: levezinho-levissimozinho

de humores e desejos —

voltando pela madrugada,

pelas neblinas frias

e no conforto cheiroso

e quente

do carro.

 

Claro, quando a saudade

depender da distância,

então pode até ser

que esta já não exista

e aquela não seja

senão um charme...

 

Mas charme é bom,

muito bom —

é o brilho do começo

ou recomeço...

como esquecer ou lembrar

e lembrar ou esquecer:

esquecer-lembrar

de nada,

lembrar-esquecer

de bananas já passadas...

bananas e pitangas...

 

Claro que , sim, amor:

pitangas e bananas

boas

só o hoje as possui.

E o agora é a hora

do amor e das amoras.

Só sabemos que a fruta é boa,

comendo-a;

só aprendemos o amor,

fazendo-o.

 

E viva a vida,

que é pródiga em oferecer

e fornecer!

Ah! E não se importa a quem.

LA 01/05

        

 

 

 

 

 

             Largo Da Boa Morte

 

O sexo das meninas era tão macio

que os dedos floresciam só de imaginar...

O mais era brincar defronte ao casario

do Largo entre cadeiras a palrar...

 

O “pique”, a “cobra-cega”, o “tia-e-tio”...

eram brinquedos bons de se brincar.

E havia “más corujas” com seu pio

fazendo a gente até arrepiar...

 

Seu Pedro Peidorreiro, no banquinho,

fazia com o cachimbo um céu branquinho...

Mário Secreta era tão fechado

 

quanto a casa cenhuda em que morava...

( Sua mulher tinha uma cara braba... )

E tudo era um viver já enterrado!

LA 01/05

                           

 

 

 

 

 

Perco A Dignidade...

 

Se me traduzem um fato,

se me interpretam um texto

ou me dizem

o que é que está fazendo tal ou qual barulho —

perco a poesia das coisas,

sim: perco a poesia —

perco a dignidade...

e vou virando uma coisa,

uma coisa terceirizada.

 

Não ouvir o que o outro está ouvindo

( por estarmos “em outra”),

ler um texto, e amá-lo,

com o cuidado de não interpretá-lo

além do sonho no instante de lê-lo —

é preservar,

sim, isto é preservar a magia das coisas,

conservar-lhes o mistério

e reter a possibilidade

de i-los entendendo devagar,

saboreando aos poucos:

de outros e variados ângulos.

É como amar a luz

sem precisar das sombras.

LA 01/05

                   

 

 

 

 

 

Os Que Não Fazem

 

Fale nada não.

Nem bem, nem mal.

Deixe que o silêncio fale,

ou não fale.

Toda fala

depende

de quem é o falante.

 

Sim, há os que falam por cima

e os que falam por baixo —

e a gente só os distingue

pelo cheiro da fala.

 

Fale nada em resposta,

nem pra um

nem pra outro —

que nada deles presta:

tanto o que lhes vem de entre os dentes

quanto o que lhes sai de trás.

......................................................................

Esses tais você os conhece

com muita facilidade —

são os que não fazem

e ( se puderem )

também não deixam fazer.

LA 01/05                  

 

 

                               

 

 

 

 

 

Tenho Ainda...

 

Tenho ainda metade de uma taça

da nossa última conversa: o vinho

que vai tecendo e modelando o ninho

de um sonhar lá num tempo que não passa...

 

Sim: tesouro que o tempo nem a traça

hão de comer: guardado num cantinho

em alma-coração, lá no escaninho

de uma lembrança de alegria e graça...

 

Tenho ainda metade de uma taça

daquela madrugada em plena praça

em que tu musicavas um jardim...

 

Tenho ainda metade de uma taça

dos momentos de um sonho que, se passa, —

há de passar sem conhecer um fim.

LA 01/05                        

 

 

                              

 

 

 

Tu Mais Ela

 

Se me vires andando por aí,

por favor, manda-me pra casa urgente.

É só dizer que está ao meu batente

aquela cujo nome acaba em “i”...

 

Sim, porque às vezes, madrugadamente,

podes me ver sonhando aqui, ali...

e até dormindo ( já passei por ti... ) —

então me manda para casa urgente.

 

Se me vires só de camisa e cueca,

repares não: que dentro do meu carro

ninguém me vendo assim, me tira sarro...

 

Mas tu... podes me ver assim da breca —

meio... e pelado... ( tu e ela... ) por aí:

aquela cujo nome acaba em “i”.

LA 01/05

         

 

 

 

 

 

Ah! Vem Pra Cá, Amor...

 

Não sei por que, amor, te vejo assim:

misto de rosa, coelho e saracura.

Rosa e coelho, talvez pela ternura...

Saracura: no andar alto e magrim.

 

Rosa, te guardarás do vento carmesim...

Coelho, da pele e gula —uma loucura...

Saracura, do brejo e vida obscura...

E aos três —chazinho de pruripilim...

 

Perdoa, amor, perdoa pela graça

sem graça! Toma um gole de cachaça,

que já te esqueces dessa brincadeira...

 

Ah! Vem pra cá, amor, vem pra cozinha.

Vamos lavá-la, que ela está sujinha...

Pega a escova e me ajuda com a sujeira!

LA 01/05

       

 

 

 

 

 

Se Me Encontrasse, Hoje...

 

Se me encontrasse, hoje, com Julieta

( aquela do Romeu ), eu lhe daria

com muita polidez, e até alegria,

uma rósea, uma baita de chupeta...

 

E juro, Rosa: não hesitaria

em perguntar à amante tão discreta

se o punhal fora um falo anacoreta

a penetrar-lhe a carne em agonia...

 

Também se o vero amor, agora morto,

pode trazer em si maior conforto

do que a vida se esquece de fazer.

 

Também se o amor é sim maior que a vida —

se com ele podemos transcender

a existência que é fria e dolorida.

LA 01/05

                  

 

 

 

 

 

Patético

 

Se o melhor é sempre o mais caro,

é burrice querer tanto.

Precisa-se da coisa

e não do melhor da coisa.

Se bem que a coisa-mais

é sem dúvida mais coisa —

embora aí se tenha

de pagar aquele preço —

parcelado, é claro,

mas pela vida inteira (!).

 

Comer bem por uma moedinha —

isto nunca foi possível.

Mesmo porque o dar

exige algo em troca:

tudo.

Sim, apenas isto: tudo.

É pegar ou largar...

E em geral, se pega.

E carrega!

É patético o sistema.

LA 01/05     

 

 

           

 

 

 

Hoje: Ponto E Encontro

 

O que é morto

( ou que o parece )

só tem sentido para os vivos.

Nossa tarefa ( a dos vivos )

é a de fazer ressuscitar.

 

Destecemos vários metros

ou quilômetros

do novelo —

e refiamos com os dedos do hoje

um outro texto.

E há tíbias e molares e dentes

e cabelos... dias noites sonhos

nasceres e arderes de impérios

e misérias e luxúrias

nessa refiação  do homem e do mundo

entre existir e ter consciência disso —

lá entre ser e ser-se:

sonhamos e Deus nos é.

.......................................................................

O futuro é o passado recontado

e a narrativa-urdidura é o viver.

E os “eus” que temos sido

poderão ser resgatados

pela vontade-entendimento

( e rendição à verdade )

do nosso “eu” atual.

La 01/05

         

 

 

 

 

 

Inverno Em Sonho

 

Fria, sim.

Mas morna,

morna não:

dói muito.

Já que você não sabe

( para mim )

ser quente,

vá lá:

me seja fria.

Antes fria

do que nem isto

nem o contrário.

Mas morna,

morna não —

que vomito você

apocalipticamente

lá do meu coração

de amá-la fria

ou ( em sonho ) quente.

Sim, antes fria,

pois que o gelo

traz em si a esperança

de — em vindo a grande luz —

ser canto:

soprar a flauta dos riachos

e descer da montanha

para a relva

sedenta...

............................................................

Seja-me fria,

que posso até amá-la

assim.

Mas morna,

morna não:

dói muito.

O meio-termo

nega a esperança

e o sonho.

O inverno só é lindo

porque sabemos

que já virá a primavera.

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

Entre Você E A Tarde

 

Enrolava os cabelos do salgueiro

a lhe roçar as pontas no ribeiro —

o vento, mais lembrando um vão lamento

lá entre o coração e o pensamento...

 

A tarde era um ondeado chuvisqueiro

com seu janeiro a bocejar matreiro

entre três tons: ou temporal violento,

ou sol rasgado, ou chuviscar bem lento...

 

A tarde andorinhava... em seus rasantes

no fictício lago... O casario

alternava compassos gotejantes...

 

E uma brisa, bem morna, arrepiava

minha pele a lembrar seu corpo esguio...

e a esperar por você que não chegava...

LA 01/05

                       

 

 

 

 

 

Aliás...

 

               Por que me ufano

de suas pernas —

se nem são “minhas?”

Por que delas me encanto

e as busco transformar em canto

a musicar os passos

que abrem no ar?

Por que sonhar com você,

se cheguei “bem depois”...

segundo palavras suas?!

Por que sonhar ouvir

a canção do seu corpo

em meus braços?

Por quê, se nem lhe tenho

o aval

de ninar entre as mãos

a sua pele?

Ou ficarei dizendo eternamente

goodbye aos abraços

que nunca tive?

Arrivedérci aos beijos

que lhe arrebato e me usura?

Au revoir aos afagos

que jamais faz?

Hasta la vista à ternura

que me dispensa só aos grânulos?...

Adeus aos sonhos —

pois com o chip queimado

da esperança?

Até quando me gloriarei

com a sua presença?

Me tornarei menino

por estar a seu lado?

( Bobo da corte

dos próprios sonhos? )

Com os seus “nãos”

que teimam em significar

exatamente não?

Exatidão inglória!

Não podia tirar do seu “não”

só o mísero til?... Assim:

nao... Sim: nau —

um lenho a rasgar as águas...

Será medo de navegar?!!?...

 

Sinto em você um gozo

quando eu a visto de meus versos.

Aliás, é mútuo —

já que em vesti-la

também lhe orvalho

sobre a nudez

os meus orgasmos psíquicos.

Perdão. Mas... que fazer sem corpo?

LA 01/05

         

 

 

 

 

 

Em Forma De Sonhar...

 

Vou guardar esse amor,

este brilho que sinto por você,

bem dentro de uma pedra de valor —

em forma de sonhar o que se vê...

 

Em forma de saber ( não sei por quê )

que é um modo de viver e recompor

aquilo que se sente e já se vê

por espelho em quem mira um resplendor...

 

E assim, nesse universo a se expandir,

você mesma verá, em nebulosa,

que a beleza de amá-la não morreu...

 

Mas vive para sempre num devir —

mais eterna que o eterno de uma rosa,

e toda olhos como à noite o céu...

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

Poema Bêbado

 

Querer ser

é sublime.

Pensar que se é

é ridículo.

 

O equilíbrio do dramático

é o cômico.

A contenção do cômico

é o trágico.

 

Querer “iluminar-se”

é louvável.

Dizer-se um “iluminado”

é insano.

 

Ao lado de uma virtude

mora sempre uma fraqueza.

Ao lado de uma fraqueza

mora outra maior.

 

O amor é bom.

No verão, com cerveja

e parmesão.

No inverno,

com vinho e assados.

 

Levar a sério o momento

é andar de ré.

É comer o palito

e jogar fora o filé.

 

Melhor que uma mulher

é nenhuma...

Nenhuma que seja por demais...

 

A beleza

é a outra face da verdade?

Sim, porque é surda-muda.

 

Lavar as mãos evita germes

ou a verdade...

Quantas vezes não somos

Pilatos de nós mesmos!

 

Confiar?

Claro que sim.

Confiemos em Deus,

já que Ele não cobra nada.

 

O amor é pago em dólar,

liberdade

e minhocas culturais

( necessárias, é claro,

às funções do espetáculo

e manutenção do Circo ),

e é sempre assim que funciona —

pois do tamanho que somos.

 

Um poema-cachaça?

É aquele que se faz e bebe

para anestesiar-se da realidade

( não da Vida, mas daquela

construída pelos homens... ).

Um modo de estar bêbado

pra se lidar,

viver,

dançar

com as loucuras-marionetes

da vida nossa

de cada dia.

 

O mundo? Aquele poste

mijado de cachorros.

 

Mais vale um gambá

bebendo vinho

com penas de galinha...

que um leão sem dentes

para o banquete

nem tesão para urrar.

 

O fim do mundo nunca vem...

e a gente nem está cansado

da felicidade de ele não vir.

 

Último trago.

Meu Deus,

me livra da cirrose

da poesia.

LA 01/05

            

 

 

 

 

 

Unidas De Tal Sorte...

 

... apostei minhas fichas na beleza

e alguém as suas ( muitas ) na verdade —

não aquela que jura honestidade,

mas a que mostra o mundo sem surpresa...

 

E fomos pela estrada de incerteza

que é a vida em sua toda realidade —

a que os homens refazem com saudade

e a que recorrem sempre com fraqueza...

 

E em meio ao céu e a terra não achamos

nada mais íntimo do que essas duas —

a luz e a sombra em seus fiéis recamos...

 

Unidas de tal sorte lá em suas

entranhas ( posto às vezes entre a bruma... ) —

que uma era a outra e as duas eram uma.

LA 01/05

        

 

 

 

 

 

Entre O Tímido E O Ousado

 

Nem tanto ao mar, nem tanto ao teu portão —

que teu pai tem no olhar o dom feroz

de poder desvestir cada intenção

e vergastá-la no ar, antes e após...

 

Nem tanto aos lábios e nem tanto à mão —

que a meninada com os seus avós

estão a nos ouvir cada canção,

dessas que não se fazem nunca a sós...

 

Nem tanto ao poste nem tão junto ao muro —

o bom do sonho está no claro-escuro,

lá no aqui e no ali, no sim e não...

 

Nem cinema tão mudo ou tão falado —

há de ser, entre o tímido e o ousado,

um gostoso namoro no portão.

LA 01/05

        

 

 

 

 

 

Um Traquejo Com Manhas...

 

Os ritmos e canções que me compunhas

com tua graça, teu andar esguio,

tinham algo macio como um rio

e o tremular da palma das pupunhas...

 

Um traquejo com manhas e mumunhas

de quem passeia no escorregadio

de sonhos ensaboados no macio

de sedas a ciciar por entre unhas...

 

Um finito a expandir-se no infinito

qual eco a reencarnar-se no seu grito

e voltar por nós dentro, a renascer...

 

Gozo ( pele com pele ) que extrapola

o rito beija-flor com a corola

num gesto a dois ( pianíssimo ) a escorrer...

LA 01/05

 

                

 

 

 

 

Leite Bordado

 

Não se joga o bebê com a água do banho

nem a sua mamãe com os lençóis...

Se o homem fosse só do seu tamanho,

deixava ser feliz pra bem depois...

 

Mas não, sem esse dom, sem esse ganho

até perdera o sonho em seus anzóis...

E a desventura a ungir seu rubro lanho —

se dera por feliz comendo caracóis...

 

( E comer no sentido que os humanos

têm de comer na cama e não à mesa...

sem que tal gesto os torne mais insanos... )

 

Minha mãe me contava, com surpresa,

que a ama que me dera de mamar

ia bordando o leite em seu ninar...

LA 01/05

        

 

 

 

 

 

Sim, Voz De Muitas Águas...

 

Daquilo que pedi e não me deste

agradeço por ter nem a metade,

pois foi nessa angustura e parvidade

que o muito me ensinaste e ofereceste...

 

Enquanto caminhava para o leste

para abraçar-me com a claridade,

sentia Teu olhar de piedade

e Tua voz falar-me no cipreste...

 

Uma voz que plasmava por mim dentro

degraus de transcender-me e renarrar,

a ter o entendimento como centro.

 

Sim, voz de muitas águas a cantar

entre maduras vinhas com o vento

gemendo uma canção de recordar...

LA 01/05

         

 

 

 

 

 

... Um Charme Sonso, Um Ar Ocioso...

 

O esguio andar bordando finos panos —

ondeando em cima, ao meio e já quebrando

em sandálias com toque-e-toque insanos...

vestindo olhos cantando e gorjeando...

 

Ciciando sonhos pelo ar, ciciando

pulsões ( em alma ) de abrasivos lhanos —

passa um corpo-mulher: vai tilintando

gloriosos sonhos, divinais enganos...

 

Seios dramáticos e pernas tórridas

dão-lhe ao andar um jeito, um tom de brasas

a arder os olhos com delícias róridas...

 

No rosto um charme sonso, um ar ocioso...

Um delfim a sonhar... em águas rasas...

No olhar e lábio um quê de choro e gozo...

LA 01/05      

 

 

                  

 

                

 

 

            Sempre O Tempo...

 

Sempre o tempo a engolir o próprio tempo

pela cauda e cabeça e meio a um tempo —

a transformar a vida ( e bem a tempo!... )

de realidade atual em novo tempo.

 

Sempre o tempo que nunca teve tempo

de realizar o que devia há tempo...

E o semear, plantar fora do tempo

a tentar tolo e ingênuo ganhar tempo...

 

Sempre o tempo que engana: mata o tempo

julgando que assim morto, com o tempo,

há um tempo que resgata o perder tempo...

 

Sempre um tempo a gerar-se num atempo —

a vertebrar o ser: andá-lo pelo tempo...

que o vai levando a um tempo de destempo...

LA 01/05

              

 

 

 

 

 

Pinta, Sim, Pinta O Céu...

( Enya, Em: Paint The Sky With Stars )

 

Pinta, sim, pinta o céu de estrelas. Pinta-

nos também o interior do dom-você

que dá sonhos e brilho a qualquer tinta

e dá olhos àquele que não vê...

 

Pinta para que nunca mais se sinta

a vida sem o alento de um porquê...

Verdade alguma, em tempo algum, nos minta

que a graça e a fé não possam ser você...

 

Pinta de estrelas essa pobre argila

de que foi feita a humana criatura...

Sim: constela-a, constela-a de infinito!

 

Pinta de estrelas tua voz tranqüila!

E tu te saibas luz: a luz e a altura

que nos mudam em paz o doer já feito mito...

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

O Reciclar-Se Do Tempo

 

O futuro é a vereda que dá a volta —

sai por trás e se põe à nossa frente...

E daí é que parte, com escolta,

e se constrói do plasma do presente.

 

E desse triplo plasma ainda se solta

a aura de um tempo interno e semovente —

e é dele que nos vem toda a (re-) volta

de futuro a passado até presente.

 

O tempo a devorar-se pela cauda

e o meio... e a renascer da criança que gerou —

que ao velho tempo corre e já o respalda...

 

E do atempo é que vem o movimento

que empurra os Três ao Um que os integrou

e vai recarregar-se no destempo.

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

Lá No Jardim Das Musas...

 

Lá no jardim das musas há cavalos

que relincham tão alto, mas tão alto,

que não entoam nunca: igual o salto

em andar preguiçoso, sem embalos...

 

Andar que já não traz nem mais regalos

a olhos nenhuns, a não ser ao incauto

que confunde nenúfar com cobalto...

e corta paus-de-lei pra ouvir estalos...

 

Sim, no jardim das musas os arbustos

se mostram bem queimados: bem adustos —

de olhos em nossa selva que restou...

 

De olhos no melhorismo dos artistas

que deram vida à flora que frutou...

E vejam: sem a insânia dos nacionalistas.

LA 01/05

     

 

 

 

 

 

Um Perfume De Anis...

 

Bela esta manhã.

Tão bela quando você vinha

a qualquer hora do dia.

 

Esta manhã traz nela dentro

um abraço com cheiro de jasmim.

Parece muito com você esta manhã.

 

A brisa despenteava seu cabelo

enquanto você o ajeitava aos lados —

longos como as palmas

caídas sobre os ombros do coqueiro...

 

Olha o vento: põe um brinco

na orelha de cada folha...

e foge.

 

Tão bela quanto livre

é esta manhã.

Bela como lembrar você

( um perfume de anis... )

sem ser refém de apegos.

LA 01/05

      

 

 

 

 

 

Moça Rosa Pela Tarde

 

Sua beleza a pino,

feita da mesma argila

da rosa —

é Rosa, é Rosa

dando sobre os olhos

da gente.

 

É Rosa, é Rosa

despetalando sobre

a alma,

o corpo da gente.

 

É Rosa, é Rosa

ou Teresa ou Regina

ou Julieta ou Joaquina —

mas sempre rosa —

é rosa, é rosa

sua beleza a pino —

andorinhando pela tarde

em rasantes de sonhos...

pés nus pisando a grama,

iluminando a tarde quase noite

ao som da flauta

engolindo os gorgolejos

do Espraiado....

Sim: é rosa, é rosa —

rosa moça, moça rosa:

beleza a pino,

caminhando pela Avenida

que Carlos Bastos bordou de pedras.

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

Reconstruindo-Se Outro E Ao Outro

 

Se o sonho acabou,

mesmo se bom ou não,

valeu ter acabado —

cumpriu seu tempo-destino:

agora pode ser trazido

do passado para o futuro...

Pela graça do recordar —

sim, pelo recordá-lo e transcendê-lo:

reentendido no crivo da memória —

destecido e a refazer-se

( pelas mãos da mulher de Ulisses em nós,

enquanto empreendemos nosso nosto... ),

albergado em nossa persona heróico-coletiva —

a organizar-se e superar-se

e crescentando-se o seu mais:

re-sonho que agora maisifica

seu sonhador —

porque posto nas mãos do Demiurgo

que é o Deus que quer e que consente

e que nos é no que sonhamos.

E o que sonhamos

é o real que vamos transformando

( pessoal: dentro em nós, e por fora:

legado que retorna — com mais quilates —

ao coletivo ).

Nossa individualidade se cria

para vermos

que o infinito nos é e nós o somos —

magicamente tudo sendo recriado.

LA 01/05      

 

 

 

 

 

 

                                           

Ph-C

( Aos 400 Anos De Dom Quixote )

 

Ah! Phoder Cultural que nos esmaga, —

rá-rá-rá pra você, phoder!

Pra você que detém a mão que afaga

e a um tempo faz morrer.

 

Ah! Phoder Cultural que mói e traga, —

quá-quá-quá pra você, poder!

Quem come muito ( claro! ) muito caga

e do que planta vai comer.

 

Ah! Phoder Cultural que só surpreende,

porque não sabe surpreender-se... e tende

a julgar que o comido não aprende...

.............................................................................

Surpreenser-se é tarefa para poucos.

Por isso, respeitemos só aos loucos! —

capazes de fazê-lo a si e aos outros.

LA 01/05

                        

 

 

 

 

 

De Preferência

 

Fazer e surpreender-se

é bom sinal —

isto é fazer-criar.

Primeiro mostrar a si,

depois aos outros

( se for o caso ).

O mais é pleonasmo:

chover no brejo.

Claro que as várzeas

também precisam renovar-se...

Mas veja: é bem melhor

que o façam

com aquela água que cai lá em cima no seco

e ( molhando-o ) lhes escorre.

Fazer-e-ultrapassar-se.

De preferência —

sempre.

LA 01/05

       

 

 

 

 

 

E Depois De Ler Tudo O Que Puderes...

 

Lê na fresta da janela

o dealbar , o tempo em mudança,

o anoitecer. Lê na luz e no vento.

Lê nos olhos, nos gestos, no timbre,

na voz, no riso, no sorriso,

na risada ou gargalhada,

na letra, nas entrelinhas,

nos borrões, no branco do papel,

no espírito da coisa.

Lê na tristeza, lê na alegria,

no infortúnio, na ventura.

Lê no silêncio, no barulho e surdinas.

No farfalhar, no marulhar, no crepitar.

Lê no trovão, na voz que pede,

na mão que dá.

Lê na pele, na alma, na intenção.

Lê nas linhas tortas de Deus.

Os sins que são nãos, e o contrário disso.

O “não quero” que quer dizer o oposto

e quando não quer mesmo.

Sim: lê tudo, frente e verso ( o multiverso )

e o por dentro de tudo.

Lê o quanto puderes.

Depois relê, translê o lido —

que já não há de ter as mesmas letras.

Leituras, releituras, transleituras

de um real em mudança —

em auto-superação.

Sim, tudo tudo tudo.

E após ter lido tudo

( o que puderes ), joga fora

a pretensão de gente lida.

E começa gostosamente a ler.

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

Uma Dica

 

              O mundo vai acabar.

Mas como não vai ser já,

o mais sensato é aproveitarmos bem

pra viver

apocaliptizados:

isso dobra ( no mínimo ) o tesão —

faz a amada delirar,

o amado arrepiar

e a gente morrer de frissom.

Morrer antes de morrer,

ué!

.....................................................................

Assim, minha Zuleide,

a gente pode optar —

morrer disso ou daquilo.

Mas com Viagra, né amorzão?

Claro, Zuleide, com São Viagra!

Com Viagra

e a dona da pensão a espiar

no buraco da fechadura

pra musicar em surdina

nosso rachar a ostra

para a  extração das pérolas.

LA 01/05

              

 

 

 

 

 

Incentivo

 

Sempre que ela passava

respingando libido e gestos,

o sorveteiro esticava o pescoço

pra frente do balcão

e dizia ao ouvido da consorte,

já um tanto arcada:

“Que tesouro, meu Deus, que monumento!”

A mulher rebatia na hora:

“Imagine, isto é um bagulho...

Quem é ela perto daqueles olhos verdes —

que você conhece tão bem?!...”

O homem olhava triste

para os belos olhos verdes da esposa...

e continuava entre o gelo...

 

E a cena se repetia uma, duas

vezes por semana.

O homem já estava com as coisas

que não cabiam nele...

 

E numa manhã gloriosa,

após divinizar a passante —

a esposa, estilhaçada,

dá-lhe uma bronca discreta

e bem isenta:

“Oh! Homem, pense bem!

Como é que você vai trocar uma lingüiça de bode dessas,

um bacalhau de porta de armazém,

pela Esmeralda,

mulher do detetive,

macia e caudalosa,

gostosa como um pudim,

tenra de tudo e em tudo:

peitos de moranga,

nádegas de cúia e paina,

pernas de embalar sonhos—

com aqueles olhos

de floresta Amazônica

( com quem você convive

há 8 anos, 11 meses e 12 dias...):

ficou leso, é!?

Tá quendo o quê, homem,

se punir, virar faquir?!!

 

Ah, Meu André!

Você acabou de botar Esmeralda

no lugar da Joaninha do açougueiro,

homem!

Esverdeie-se mais um pouco,

meu menino:

saboreie as suas samambaias,

deguste as suas pupunhas...

Depois, sim, homem: troque,

que ninguém é de ferro.

Come mais devagar,

faz melhor digestão. Depois, sim, homem:

mude, aprenda com a vida...

Uma por vez, mas sempre,

que a vida é uma pitanga:

agora tá no pé,

daqui há pouco,

já merdada de chão...

............................................................

Vai, homem!

Que se não for,

nem sei o que te faço!...

Mas uma de cada vez.

Paga o que cada uma pede

e come bem devagarinho.

Uma de cada vez,

e sempre de galocha.

LA 01/05

         

 

 

 

 

 

Los Vientos De La Mancha

( 400 Anos De Cervantes )

 

O Universo é Arte.

E como as falenas à luz,

a vida corre para a Arte

no instinto de imitá-la,

tornar-se, queimar-se nela —

suprafenizar-se

de suas próprias cinzas.

A própria evolução

é o faro da existencia

atrás do fascinante:

o mais a florescer.

Sim: tudo

que o Demiurgo fez é Arte,

e todo o viver a segue —

seduzido em sua essência

pelo reacontecer dos dias

nas entrelinhas da recriação —

o sonho-mais da Vida.

 

Quando lemos Dom Quixote

nós o vemos em nós —

e o vamos sendo a vida toda:

de dentro para fora,

de fora para dentro —

nós e Ele nos somos,

além do tempo e de nós mesmos.

 

Cervantes, ao terminar seu Livro, —

tinha feito  — avant la lettre

toda a literatura-espelho do Ocidente:

Literatura

como interpretação da alma,

vontade e destino humanos.

A persona se recriara —

já saberia ver-se

atrás do som de sua voz:

personando seu conhecer

a si no outro

( e ao outro em si ).

.............................................................................

O Oriente ( já faz um pouco )

veio buscar-se em Cervantes —

viu que usava

as mesmas armaduras-montarias

e eram os mesmos cavaleiros

( embora num mundo já sem cavalos... ),

mas eram —

eram Sancho-Quixote

dentro de um vice-versa.

..............................................................................

O gênio veicula

os propósitos do Cosmo.

LA 01/05

              

 

 

 

 

 

Termômetro...

 

Todo o conforto da amizade é ir

jogando para o outro o que se sente

e vive no momento — soltamente —

sem preocupações de transgredir...

 

Sim: seu conforto mágico é sentir

que se pode tirar tranqüilamente

as máscaras do rosto a delinqüir...

e poder conversar gente com gente.

 

E explodem “nãos” por “sins” e “sins” por “nãos” ...

e o que soou, soou... falou, voou...

E ao fim de ciências-chistes-e-pesares —

 

joga-se para cima o que restou...

E os bugalhos revoam pelos ares

e voltam as sementes para as mãos.

LA 01/05

        

 

 

 

 

 

Sim, Cabem Num Só Verso

 

Se cantas tua aldeia,

cantas todo o universo —

pois não só ela,

mas também ele —

cabem no mesmo verso.

 

Se amas a rosa,

amas todas as flores —

pois não só ela,

como todas as outras —

esperam pelos beija-flores.

 

Quando beijas a amada,

beijas todas as mulheres —

pois não só ela,

como todas aquelas —

são tudo o que mais queres.

 

Portanto, canta —

canta a aldeia.

Ama —

ama a rosa.

E beija —

beija a amada

pensando em todas as outras

num sonho uno e diverso...

Sim: canta ama beija —

que tudo cabe num só verso.

LA 01/05

       

 

 

 

 

 

Deita Sobre Este Mágico...

 

Deita sobre este mágico edredom —

e voaremos com árabes e persas

pelas estamparias mais diversas

de um amar-nos sem tempo ou pontocom...

 

Sim, desse amarmo-nos florindo com

os orgasmos de todas as conversas —

águas e águas em nós e em si submersas

em sonhos a buscar seu nexo e dom...

 

Deita sobre os cansaços avoengos

de retecermos sempre mais maduros

os humanos enganos tão verdoengos...

 

E voaremos de nós por nós lá dentro

de todos os passados e futuros —

na poesia do instante como centro.

LA 01/05

             

 

 

 

 

 

Acréscimos

 

A vida e a morte

são bem mais do que belas opções —

uma é a estrada da outra

por planos e vales e serras e túneis...

Todo o sentido

está entre as coisas

nascerem e morrerem —

de um lado só da vida.

Não perderemos nada —

pois não teremos

a não ser a acrescentar.

LA 01/05

      

 

 

 

 

 

A Busca De Sentido

 

Tudo são máscaras

de máscaras,

ou restará uma face

em nossas pretensões

de termos como causa

interesses dos outros,

veleidades alheias?

 

Se não acho sentido,

quem me prestará socorros?

 

Se não desço por mim dentro,

como posso acender a luz

e espantar os fantasmas

que fui fazendo meus

por pura inadvertência?

 

Se não acho sentido,

o mundo até pensará

que me pode dar um.

 

Se não acho sentido,

quem me pode tecê-lo,

senão aquele em mim

que é quem deve fazê-lo?

LA 01/05

          

 

 

 

 

 

Diferença

 

A importância de ser ninguém

por vezes se ressalta —

torna-se em glória

e ( claro! ) envaidece:

é a coisa do avesso.

 

Muitos devem invejar

a saúde e a paz ingênua

dos pobres molambentos...

O medo, a angústia, o risco,

ante a iminência da brutalidade —

são a maior humilhação,

maior desgraça e terror

do ser humano:

o homem devorando o homem.

 

Usufruí, ó excluídos,

senão como compensação,

ao menos por prazer —

a glória de serdes ninguém,

cuja diferença

está entre a vida e a morte.

LA 01/05

         

 

 

 

 

 

Lavouras

 

Lá vão palhas e sementes...

De vez em quando as jogo para cima

e o que me volta às mãos —

semeio:

acomodo-as de novo lá por mim.

O que eram bugalhos

já se assimila à terra —

fortificando-a.

O que eram sementes,

essas brotam —

sempre novas e belas plantas,

multiplicadas: muitas por uma

em cada núcleo de vida.

 

Para a lavoura ser bela

( e ter sentido ) —

é preciso lá vez ou outra

( seu tempo é em alma-coração ) —

jogá-la para cima

e apará-la

entre as mãos que lhe foram

o corpo, a alma, o brilho...

Sua beleza e verdade

( e, claro: a alegria )

serão sempre o sentido.

LA 01/05

      

 

 

 

 

 

De Gorro E Camisinha

 

O amor está de gorro —

amor cachorro.

Após mijar no poste,

sujar na esquina —

virou coruja

a gozar dos próprios pios,

se bem que perolados...

 

Está calor, aliás:

por isso, está de camisinha

o amor —

sua única lingerie.

Ah, sim, desculpe:

também está de gorro

( no quarto e na avenida )

esse cachorro,

zorro da vida.

 

O amor virou um poste

mijado de homens.

Olha ele: de gorro

e camisinha.

LA 01/05

                         

 

 

 

 

 

Festas Do Largo

 

                 ( Esse Largo é hoje a praça do Fórum, da Cadeia, das bauínias do Percival...

Só tendo o casario que o enquadrava, era palco de quermesses, parques, circos,

palanques, lugar onde a molecada se reunia para  os  briquedos  de época, lutas,

peladas...sobre  e  ao  lado  do  “Areião”,    descantado     por  Ganymèdes. Tais

                   raparigas [ termo que usei para aproveitar-lhe a sensualidade de que se reveste]

eram as moças-meninas, sempre  presentes, suaves  e  ingênuas, a maioria delas

vinda da “roça”  para  os  eventos  festivos, e que vinham refazer a maquiagem,

levantar  as  ligas...  nas casas ao redor  do  Largo. Eram o encanto dos meninos

(eu um deles)  que  lhes  sentiam  o  perfume,  ouviam  o ciciar  e  o  ajeitar  das

roupas...)

 

Mas como não lembrar?... Cresciam flores

pelo corpo lirial das raparigas...

A gente as tinha por fiéis amigas

tais bromélias sensuais suando amores...

 

Como esquecer as suas belas ligas

a prender-lhes a renda e a meia em cores?...

Rápidas sempre em retocar rubores —

trocar por novas tintas as antigas...

 

Como esquecer-lhes a alma saltitante,

o riso claro de asas em rasante

pelo Largo com sua carne em flor?...

 

Circos, parques e festas... laços, figas...

Ah! Tu também guardaste, meu Senhor,

a voz, o riso em flor das raparigas?...

LA 01/05

              

 

 

 

 

 

O Espelho

 

Este rosto que mostras para mim,

que me olha e que olho, não existiria

não fosse a luz já tê-lo na mania

de nos multiplicar seu lado-sim...

 

Seu lado-não é sombra de cetim

cobrindo o dom que há pouco me luzia...

mas que agora se esconde em face fria

esperando lá atrás de um sonho afim...

 

Tens me guardado já faz anos e anos,

a mim e meus assíduos desenganos —

companheiros fiéis de caminhada.

 

Também meu coração reflete a estrada

que se espelha no avesso de narrar-me...

E tudo — à tona — é bela calma e charme.

LA 01/05

         

 

 

 

 

 

Confluências

 

Sei-te ao leste de mim

enquanto rumo para o norte

( em mim ) —

mas a cada pôr-de-sol,

olhando um pouco à esquerda,

te encontro,

posto que és luz

e ali estou a mirar

o olho vermelho do dia

que vai passar a sua pira

para outras mãos...

E é nesta hora

que as sombras dialogam com as sedas

de lembrar-te,

saber-te em alma

num sentimento

cor e gosto de amora.

Sei-te ao leste enquanto rumo

para o norte de mim.

A luz há de cuidar

das confluências.

LA 01/05

                   

 

 

 

 

 

Bises

 

O que contigo fiz e o que não fiz

foi tudo bom igual: o sim e o não.

O sim, porque em lembrá-lo já é bis...

O não, porque, não feito, é vinho e pão...

 

O não-feito com o feito, juntos, são

um não lembrar mas ter a cicatriz...

já que se pode ter em não-ação

o imaginá-la ação bem mais feliz.

 

O que contigo fiz e o que não fiz

têm mutuamente igual compensação —

ser a água de um mesmo chafariz...

 

E entre o feito e o não-feito, um só senão:

o de não tê-lo feito por um triz —

se bem que em recordá-lo já é bis.

LA 01/05

 

           

 

 

 

 

Autocavilações

 

O marido ela amava de verdade,

quanto ao vizinho, apenas de viés...

Àquele por formal fatalidade,

a este por laços cármicos, talvez...

 

A boa da senhora, à meia-idade,

ao espelho, explicava-se ( outra vez! )

que não era por manha ou veleidade

que lecionava em duplo vaginês...

 

Era mais por missão: força-tarefa

que empreendera, em bem moça, por saber

que o destino é destino: nunca blefa.

 

Nem por prazer, nem por necessidade...

muito menos por ato de vontade —

só cumpria o que a vida ousava ser.

LA 01/05

       

 

 

 

 

 

Os Baixos Da Vida

 

Malcotada,

malcontada,

malcantada,

maltransada —

só te falta chamar

Paula Tina:

que rima com divina

e porcina,

com a compensação

( maluquinha de adultescência )

de também lembrar menina.

 

Tem dias, minha amiga,

que o melhor que fazemos

é não fazer... Assim

como o cachorro doente

que se deita enrolado

e só confia as suas dores

pra ponta do próprio rabo...

.....................................................

Vai te benzer, Glorinha,

que a ti só tá faltando

te foderem fiado.

LA 01/05

         

 

 

 

 

 

Não Deve Ser...

 

Não deve ser nada bonito

o que as pedras pensam de nós —

tão tardos sempre em aprender,

tão demorados em ver

que o que vemos já não é

senão necessidade de rever.

 

Não deve ser nada bonito

o que as pedras pensam de nós —

tão baralhados nos próprios passos

que o Saci nos vive a ensinar

novos e úteis compassos

a nos querer desviar

dos penhascos de nós mesmos.

 

Não deve ser nada bonito

o que as pedras pensam de nós —

fazedores de histórias

que se contam de um modo

a não causar vergonha,

não aos que as fazem e fizeram,

mas àqueles que as interpretam.

 

Não deve ser nada bonito

o que as pedras pensam de nós —

seu silêncio é tão terrível

que faz doer os ouvidos

e derreter toda a cera

até não haver mais face

nem o personar humano

que faz haver o teatro.

LA 01/05